segunda-feira, março 05, 2018

Intérprete supremo - FERNANDO LIMONGI

Valor Econômico - 05/03

O ministro Luís Barroso publicou longo artigo para defender o Supremo Tribunal Federal. Em "Nós, o Supremo", publicado na Ilustríssima do domingo retrasado, respondeu cada uma das críticas endereçadas por Conrado Hübner semanas antes. Basicamente, com o tato que lhe é característico, o ministro acatou todas as objeções, afirmando que serão resolvidas a seu devido tempo.

Entre as linhas, estava escrito 'serão resolvidas sob minha liderança, quando minhas posições se impuserem a dos demais'. Ao final da semana, contudo, deixando a civilidade, o ministro voltou a trocar 'sopapos verbais' com seu colega de Corte, o ministro Gilmar Mendes. A distância entre o Supremo imaginado por Barroso e o realmente existente é abissal.

Em seu artigo, Barroso defende que Cortes Supremas modernas cumprem três papéis: o contramajoritário, o representativo e o iluminista. O primeiro é o tradicional e os dois outros seriam 'modernos'. O STF vem sendo criticado porque os exerce, diz o ministro. E como os exerce bem, haveria motivos para comemoração e não críticas.

Independente da sua composição e dos problemas organizacionais que comprometem a atuação do STF real, mesmo que todos esses problemas fossem resolvidos, é para lá de discutível que seja recomendável dotar o STF com os poderes vislumbrados por Barroso.

Por papel representativo, Barroso entende a capacidade de atender "demandas sociais que não foram satisfeitas pelo Legislativo". Cita como exemplos do exercício desse papel a proibição do nepotismo, o fim do financiamento empresarial das campanhas e a imposição da fidelidade partidária. Nesses casos, diz o ministro, o Supremo não fez senão "acudir inequívocas reinvindicações da sociedade, não acolhidas em razão de um déficit de representatividade."

O ministro, portanto, reivindica para si e para seus pares a capacidade de identificar 'demandas sociais inequívocas'. As medidas citadas até podem ser classificadas como corretas e acertadas por inúmeros atores. Mas daí a convertê-las em 'demandas inequívocas' vai uma distância enorme.

O papel que confere ao Supremo, como se vê, é enorme, quando não ilimitado. Com base em qual critério pode o Supremo (ou qualquer mortal) identificar quais são as verdadeiras demandas da sociedade? Sinto informar o ministro que este critério ainda não foi encontrado e que esta é a matéria por excelência da política. Discordamos e acreditamos em coisas distintas.

Falar em déficit de representatividade é recorrer a um eufemismo. Os intérpretes da lei, tempos atrás, falavam em sociedade hipossuficiente para reivindicar protagonismo. Em uma palavra, sai 'nós, o povo' e entra 'nós, o supremo'. Para justificar a substituição, os juristas recorrem ao terceiro papel destacado por Barroso, o iluminista.

Segundo o ministro, essa função deveria ser exercida com "parcimônia e autocontenção" em "conjunturas em que é preciso empurrar a história." Grandiloquente, o ministro não economiza na pompa: "Em alguns momentos cruciais do processo civilizatório, a razão humanista precisa impor-se sobre o senso comum majoritário."

Espantoso que um constitucionalista deixe de notar a contradição: pode alguma instituição que acredita representar 'a razão humanista' se 'autoconter'?

O Supremo real está a quilômetros de distância do projetado por Barroso. Mas a construção teórica e retórica pede consideração, pois se baseia em diagnósticos correntes e disseminados sobre a natureza do conflito social e politico que divide a sociedade brasileira. Na visão de Barroso, tudo se resume a um conflito entre iluministas e obscurantistas, ou para usar uma linguagem mais antiga, entre o moderno e o atraso. Nessa visão, o lado que representa o progresso está, por definição, sempre certo, pois conhece as verdadeiras demandas da sociedade e tudo que faz é empurrar a história devida. A oposição é o passado, representa que amparados (ou explorando) o tradicional déficit de representação querem preservar o atraso. Não por acaso, ao se referir aos críticos do Supremo, o ministro Barroso evoca resistências oligárquicas.

Infelizmente, o mundo não é tão simples. Concretamente, as intervenções recentes do Supremo sobre a ordem política desmentem tal visão maniqueísta do mundo.

Tome-se como exemplo a verticalização das coligações eleitorais, imposta para vencer o localismo e dar lugar à nacionalização e ao fortalecimento dos partidos. O resultado foi o inverso. Para os partidos menores, o melhor foi se retirar da eleição presidencial e concentrar forças nas disputas locais.

A derrubada da cláusula de barreira foi justificada a partir da necessidade de defender as minorias contra a força avassaladora da maioria. As minorias (pequenos partidos) agradeceram a proteção e a passaram adiante, vendendo o direito recebido (tempo de rádio e TV) às maiorias (grandes partidos).

O maior exemplo iluminista citado por Barroso, a proibição de que empresas contribuam para campanhas, coloca as mesmas dificuldades. Atores reveem sua estratégia e encontram meios alternativos para fazer valer suas pretensões. Achar que uma penada resolve o problema da influência do dinheiro na política é manifestar ingenuidade colossal. Na realidade, revela completo desconhecimento da realidade que se quer reformar. Mal comparando, a reforma equivale a retirar da sala o sofá em que o adultério era cometido.

Conflitos políticos não se resumem ao confronto entre o racional e o irracional, o iluminismo e o obscurantismo, o moderno e o atrasado. Membros da sociedade divergem sobre o que acham certo e errado e, por isso mesmo, devem desconfiar dos que se acreditam intérpretes autorizados da razão e da história, quanto mais daqueles que se sentam em uma instituição que se intitula suprema. Mesmo se representasse o senso comum, o nós que deve prevalecer é o que emana da maioria. Assim funcionam as democracias.

Fernando Limongi possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1982), mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (1988) e doutorado em Ciência Política - University of Chicago (1993).

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