sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Os juízes são os verdadeiros sacerdotes nas sociedades modernas; nem podem fazer greve nem podem ser líderes sindicais - REINALDO AZEVEDO

REDE TV/UOL - 23/02

É estupendo que a Associação de Juízes Federais (Ajufe) tenha decidido paralisar suas atividades por um dia em sinal de protesto — e advertência — contra matéria a ser votada no Supremo, que pode extinguir o auxílio-moradia da categoria. Se assim decidir o tribunal, é evidente que o benefício para os juízes estaduais estará também com os dias contados. E caberá, entendo eu, que o processo legislativo se encarregue de definir os casos excepcionais que farão jus ao pagamento. Uma coisa é certa: a farra em curso não pode continuar. E isso vale para o auxílio-moradia e todos os outros penduricalhos.

Paralisação de juízes, que corresponde ao aceno por uma greve? É um troço vergonhoso. Mais de uma vez, já afirmei aqui que não consigo nem mesmo conceber associações de magistrados de caráter sindical. Não tem jeito. Acho que a coisa vai contra a natureza mesma da função.

A Constituição e as leis procuram ser claras na sua generalidade — nem sempre conseguem, é verdade. O juiz existe porque lhe cabe ver cada caso à luz da norma, e isso requer sempre dose considerável de arbitrariedade nas duas pontas: seja na interpretação dos códigos, seja na leitura das ocorrências que estão sob sua apreciação. Isso lhe confere um poder fabuloso. É assim é com todos os magistrados, estaduais ou federais, de qualquer instância.

Deveria haver, assim, em todo juiz um ermitão, um homem solitário, torturado — acho que cabe a palavra — pela obsessão de ser justo, para que o arbítrio que ele exerce esteja o mais próximo possível do espírito das leis e da realidade factual e o mais distante possível de suas paixões, de sua ideologia, de sua visão de mundo, de suas idiossincrasias. Um juiz, se querem saber, deveria ser o verdadeiro sacerdote da sociedade. Não por acaso, na origem das culturas, era a autoridade religiosa que exercia esse papel. A evolução das sociedades fez com que os sacerdotes ficassem, então, restritos ao credo que prodigalizam. Restou aos juízes o despir-se das paixões.

Assim, soa-me incompreensível que juízes se juntem em associações, em sindicatos. Com que propósito senão a defesa da própria corporação? Tal prática toca nas raias do absurdo quando uma associação de juízes decide nada menos do que pôr a faca no pescoço do Supremo em defesa de um privilégio tão inaceitável como inexplicável.

A pressão imediata é dirigida contra o Supremo, mas a bucha de canhão ou o boi de piranha dos senhores togados é o povo brasileiro. Repito agora o que já escrevi dezenas de vezes neste blog: numa democracia, a greve de servidores públicos ou de trabalhadores que prestam serviços de natureza pública deveria ser simplesmente proibida, sob pena de demissão sumária. As coisas são simples assim. O patrão do servidor é o povo. Quando funcionários públicos decidem fazer greve, estão chantageando a população, em especial os mais pobres, porque, afinal, são os que têm menos recursos para enfrentar os contratempos decorrentes da paralisação.

Dado que ser funcionário público é uma escolha — e isso vale também para os juízes —, não uma imposição da natureza, não há justificativa possível para a greve. Não se pode chantagear toda uma população em razão de um interesse que não foi satisfeito ou de uma reivindicação que não foi atendida.

É curioso! Até outro dia, boa parte da população estava convencida de que os males do Brasil estavam todos concentrados no Congresso e no Executivo. Esses dois Poderes estariam carcomidos pela corrupção e por interesses mesquinhos, e juízes e procuradores se apresentavam como os demiurgos, os salvadores, a palmatória do mundo. Bastou que viessem a público os privilégios de que gozam os senhores magistrados e os membros do Ministério Público, e assistiu-se, então, a uma explosão de vigarice intelectual e desculpas esfarrapadas.

As duas categorias, sempre tão solertes em apontar o dedo contra a cara de deputados, senadores, ministros, governadores e presidente da República, resolveram reagir da pior maneira possível: tudo faria parte de uma grande orquestração conspiratória porque ambas estariam ocupadas em combater a corrupção.

Assim, que importa que os bilhões torrados em penduricalhos como auxílio-moradia, auxílio-creche, auxílio-paletó, auxílio-alimentação, auxílio-pós-graduação não sejam nem mesmo tributados e superem em muito o tal dinheiro recuperado pela Lava Jato? Os doutores não estão nem aí. Querem aplicar a lei com o rigor de Savonarolas da República, mas só para os membros dos dois outros Poderes. Eles próprios ficariam imunes não apenas à sanha moralista — por esta, não tenho nenhuma simpatia —, mas também à moral.

Consta que a ministra Cármen Lúcia, que costuma fazer a política dos juízes, não gostou da ameaça da Ajufe. A coisa teria caído mal no Supremo como um todo. Já vi e ouvi a doutora a fazer reptos apaixonados contra aqueles que, segundo ela, afrontam decisões da Justiça.

Vamos ver o que diz no momento em que juízes decidem afrontar o próprio Supremo.

E uma nota para encerrar: acho que procuradores e juízes andam indo pouco ao supermercado e não têm recorrido aos táxis e aplicativos — bem, de ônibus é que não andam mesmo. A reputação dos doutores não está melhor que a dos políticos. A sorte é não dependerem do voto popular…


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