domingo, dezembro 24, 2017

Ordem dos fatores estava certa - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 24/12

Nelson Barbosa, em sua coluna de sexta-feira (22) neste espaço, argumentou que a equipe econômica de Temer errou ao priorizar primeiro a PEC do Teto dos Gastos e em segundo
lugar a reforma da Previdência.

Se a reforma da Previdência era tão importante, por que motivo a equipe econômica priorizou a PEC que estabelece um teto ao crescimento do gasto público?

Segundo Nelson, houve oportunismo do governo de Michel Temer -deixou a tarefa mais difícil para outros governos- ou, talvez, tenha sido somente um erro de cálculo dos "fiscalistas de planilha do Ministério da Fazenda".

Nelson está errado e parece não ter entendido a lógica de nossa economia política, isto é, como as políticas públicas são criadas e implantadas no contexto da disputa entre grupos com diferentes interesses numa sociedade democrática. Para ele, se a maior pressão sobre o Orçamento é a Previdência, vamos primeiro reformar a Previdência. Essa é, a meu ver, a resposta "de planilha". Infelizmente não é a resposta correta
dada nossa economia política.

A reforma da Previdência ficou perto de ser aprovada em meados do ano, segundo experientes analistas políticos. Não houve falta de capital político para aprová-la. O que ocorreu foi que, quando a aprovação da reforma se materializou, a Procuradoria-Geral da República produziu de forma acelerada denúncia contra Temer.

É evidente que a intenção de Rodrigo Janot foi abortar a tramitação da reforma previdenciária. E o motivo é claro. A reforma, diferentemente do que se alardeia, não é somente do INSS. Ela mexe muito com o serviço público federal. E, após seis meses da aprovação, com o serviço público dos Estados e dos municípios.

Ou seja, a reforma foi abatida pelas corporações do serviço público. Aliás, de longe, o grupo que mais pressionou contra a reforma agora em dezembro.

Nada garante que, se a ordem cronológica entre teto e reforma da Previdência tivesse sido trocada, alguma ação análoga não teria ocorrido.

O gasto público tem crescido além do PIB desde 1992. O diagnóstico da PEC do Teto é que esse crescimento insustentável é consequência de nossa economia política -particularmente, consequência da ação dos grupos de pressão, que, por algum motivo ainda não esclarecido pela ciência política, são particularmente fortes no Brasil.

Adicionalmente, há o diagnóstico de que a manutenção desse estado de coisas nos devolverá ao ambiente econômico da década de 1980, de triste memória.

Ou seja, a PEC do Teto é uma muleta para auxiliar nossa sociedade a disciplinar nosso conflito distributivo. Se o teto for rompido, consequências ocorrerão. E essas consequências -vedam-se alta de salários e contratação de novos servidores, aumento real de salário mínimo, renovação de desonerações etc.- facilitarão a aprovação de outras medidas, inclusive a reforma da Previdência.

O limite constitucional ao crescimento do gasto público visa mudar os incentivos da política e, portanto, o comportamento. Se funcionará ou não, são outros quinhentos. O abismo inflacionário está conosco. Mas certamente o teto do gasto não é fruto de planilha. A planilha indicaria o caminho de Nelson.

Se Nelson deseja ajudar o país, deveria tentar convencer os deputados petistas -partido com o qual tem laços- a apoiar o atual projeto. É bom não esquecer que, se os petistas tivessem apoiado a reforma de FHC -que, como sempre lembra Nelson, perdeu por apenas um voto-, nós não estaríamos nesta situação.

Oportunidade para crescer junto com o Brasil - HENRIQUE MEIRELLES

ESTADÃO - 24/12

Estamos convictos de que teremos boas surpresas com a economia nos próximos anos


Em maio de 2016, ao assumimos a Fazenda, a situação da economia brasileira era gravíssima. Atravessávamos a pior recessão que o Brasil já viveu, maior que a grande crise de 1929. Estávamos no 6.º trimestre consecutivo de queda no PIB e tudo indicava que os trimestres seguintes seriam muito ruins. A produção industrial havia caído 7,3% em 12 meses e o comércio, 10,2%. O índice de confiança do setor de serviços caíra 6,7% em 12 meses, e a do setor de construção, 8%. Já a confiança do consumidor havia caído 6,9%. A inflação acumulada em 12 meses era de 9,6%, em trajetória ascendente. Os juros Selic estavam em 14,25%. O risco Brasil, medido pelo CDS, estava em torno de 360 pontos-base.

Sob ceticismo se as reformas seriam aprovadas e se o Brasil conseguiria sair da recessão, implantamos uma política forte de ajuste da economia.

Um ano e sete meses depois, todas essas dúvidas foram superadas. O Brasil já cresceu no primeiro trimestre de 2017, mas o crescimento esteve concentrado na agricultura. A partir do segundo e terceiro trimestres, houve crescimento em praticamente todos os setores. De acordo com os últimos dados disponíveis, a produção industrial cresceu 5,2% nos últimos 12 meses, o comércio cresceu 7,5%, o PIB subiu 1,4% e a inflação caiu aos menores patamares históricos. O IPCA acumulado em 12 meses está em 2,8% e os juros Selic em 7%, enquanto o risco Brasil está em torno de 170 pontos.

Há cerca de um ano, o desemprego subia em ritmo acelerado, mas o mercado de trabalho reagiu antes do que muitos analistas esperavam. Em termos dessazonalizados, o desemprego começou a cair em abril e vem caindo desde então. O número de pessoas ocupadas cresce fortemente. Nos últimos 12 meses, foram geradas um milhão e seiscentas mil vagas de trabalho.

Com a recuperação já instalada em diversos ramos de atividade, a questão agora é outra: quanto podemos esperar de crescimento da economia nos próximos anos? A média dos analistas projeta crescimento de 2,6% para 2018, convergindo depois para 2,5% nos anos à frente, até 2021. Acreditamos, porém, que será sensivelmente maior que isso, sendo que a nossa previsão para 2018 é de 3%.

O número de 2,5% de crescimento é aproximadamente quanto o Brasil cresceu nos últimos 20 anos, levando em conta dados demográficos. É natural esperar que o crescimento no futuro seja próximo à média do passado. Mas esse raciocínio não leva em conta as profundas transformações que estão ocorrendo em nossa economia, devido às reformas em curso.

Nesse curto espaço de tempo, o governo está aprovando quatro tipos de reformas estruturais, que transformam completamente a produtividade da nossa economia.

Primeiro, o ajuste fiscal e a mudança de paradigma sobre o crescimento do Estado. Desde a Constituição de 1988, o Estado brasileiro cresceu muito mais que a economia como um todo. Os gastos federais, que eram 10,8% do PIB em 1991, chegaram a 19,9% no ano passado. A conta reversa é que o setor privado teve de encolher 10 pontos porcentuais do PIB.

O teto dos gastos, já aprovado, reverterá esse processo. Ao manter as despesas primárias do governo federal constantes em termos reais, como o PIB continua crescendo, o tamanho do governo será reduzido como proporção do PIB. Estimativa conservadora é que em dez anos as despesas da União cairão gradativamente de 20% para 15% do PIB. Isso fará com que o setor privado se expanda, trazendo mais eficiência e produtividade para a economia, com mais recursos disponíveis para investimentos. Para que isso ocorra, é imprescindível que se reforme o sistema de Previdência, que além de corrigir desigualdades e unificar os sistemas de aposentadoria, diminui enormemente o déficit nas contas públicas.

Além disso, a reforma trabalhista também foi importantíssima. A legislação trabalhista do Brasil foi criada por Getúlio Vargas nos anos 40, e as inovações tecnológicas causaram mudanças radicais nas formas de organizar a produção. A lei trará benefícios relevantes para o funcionamento do mercado de trabalho. Os benefícios são óbvios. Aumento da segurança jurídica para empregados e empregadores, e redução do número de conflitos trabalhistas. A consequência é tanto maior emprego quanto menores custos relacionados ao insumo trabalho.

Em terceiro, as várias reformas relacionadas ao crédito, algumas já aprovadas e outras em tramitação. Como a da TLP, que cria um alinhamento no custo do crédito público, aumenta o poder da política monetária, e permite que os juros da economia fiquem mais baixos, de forma sustentável. Outras são a Letra Imobiliária Garantida, que reduz o risco da operação e consequentemente o spread, a duplicata eletrônica, que cria um ambiente centralizado para registro de duplicatas mercantis e recebíveis de cartão de crédito, a permissão de diferenciação de preço entre os meios de pagamento, o cadastro positivo, que é um poderoso instrumento para reduzir os juros aos bons pagadores e, finalmente, a nova lei da recuperação judicial, que visa a reduzir o prazo e os custos do processo de recuperação e liquidação, incentivar o aporte de novos financiamentos, melhorar as garantias do adquirente de ativos e reduzir a insegurança jurídica.

Quarto, as demais reformas microeconômicas. É um projeto em conjunto com o Banco Mundial, simplificando os processos burocráticos que dificultam a vida dos brasileiros.

Alguns exemplos são medidas de desburocratização. O eSocial, que simplifica o pagamento de obrigações trabalhistas, previdenciárias e tributárias, reduzindo o tempo gasto pelas empresas para preenchimento de declarações e formulários. O Sped, um sistema público de escrituração, que unifica a prestação de informações contábeis e tributárias. Implantação nacional da Nota Fiscal de Serviços Eletrônica e do Redesim – Rede para Simplificação do Registro e Legalização de Empresas e Negócios. A expansão do Portal Único do Comércio Exterior e do Operador Econômico Autorizado, que trazem benefícios relacionados à facilitação dos procedimentos aduaneiros, reduzindo o tempo de desembaraço das mercadorias.

Os resultados que estamos obtendo em alguns itens já são impressionantes. Para exemplificar, estamos trabalhando para atingir os seguintes objetivos: o tempo para abertura ou fechamento de empresas irá dos cerca de 100 dias atuais para 7, e depois para 3. O tempo de pagamento de impostos será reduzido em 70%. O tempo de licenciamentos, formulários, burocracia para exportar ou importar mercadorias cairá em 60%.

Tomados em conjunto, esses quatro tipos de reformas estruturais elevarão nosso crescimento potencial para valores bem superiores aos observados nas últimas décadas. É possível que em vez de 2,5%, cresçamos 3,5% ou 4% durante a próxima década.

É fundamental observar que houve transformações importantes em vários aspectos do processo produtivo. Temos de continuar trabalhando, avançando na agenda de reformas, para que não haja desvio desse cenário positivo. Mas estamos convictos de que teremos boas surpresas com nossa economia nos próximos anos. E que há uma grande oportunidade para crescer junto com o Brasil.

*É ministro da Fazenda

Encontro marcado em 2019 - ZEINA LATIF

ESTADÃO - 24/12

O alicerce da atual estabilidade macroeconômica está na confiança de que o País conseguirá estabilizar sua dívida pública como proporção do PIB


É possível que nunca na história econômica do Brasil o curto prazo tenha tido tanta importância para definir o destino do País como agora.

O Brasil passa, possivelmente, por sua mais grave crise fiscal, que vai se agravar com o envelhecimento da população e suas consequências sobre as despesas previdenciárias. A demografia também reduzirá o potencial de crescimento do País, o que exige reformas para impulsionar os ganhos de produtividade, praticamente estagnados desde a década de 1980. Não há espaço para um governo medíocre em 2019.

Os investidores têm dado o benefício da dúvida ao governo e poderão fazer o mesmo com os candidatos à presidência, pois há o reconhecimento de que a reforma da Previdência está na agenda política do País, devendo ser aprovada pelo próximo presidente. Está cada vez mais claro que se trata de política de Estado e não de governo.

O problema é se a reforma não for ambiciosa o suficiente. O alicerce da atual estabilidade macroeconômica está na confiança de que o País conseguirá estabilizar sua dívida pública como proporção do PIB. Se a confiança se for, as consequências poderão ser sérias a ponto de afetar a capacidade do próximo presidente de governar.

O desafio não para por aí. O bônus demográfico (aumento do diferencial entre pessoas em idade ativa e a soma de crianças e idosos), que contribuiu para o crescimento do País desde meados da década de 70, vai se esgotar nos próximos cinco anos. Sem ganhos de produtividade, o aumento do PIB per capita ficará comprometido. A agenda de promoção da produtividade não é simples e enfrenta resistências, como na reforma tributária.

Por tudo isso, os candidatos a presidente estarão sob escrutínio, o que poderá contaminar o ambiente econômico em 2018. Em uma eleição que promete ser disputada e bastante incerta até as vésperas do primeiro turno, é natural uma postura cautelosa dos agentes econômicos. Algumas decisões de contratação de mão de obra e de investimento poderão ser adiadas, bem como a concessão de crédito pelos bancos, especialmente em meio à elevada incerteza jurídica no País que compromete severamente a capacidade de recuperação de ativos.

Apesar disso, 2018 poderá surpreender positivamente. O País vem ganhando maturidade e o governo implementou importantes ajustes na política econômica. Tanto na chamada agenda microeconômica, com medidas que visam a eliminar distorções do sistema econômico e brechas para irresponsabilidade fiscal, como nas reformas estruturais, como a regra do teto, a reforma trabalhista e a criação da TLP.

Nossa história ensina que todas as vezes que seguimos os manuais, perseguindo políticas responsáveis e racionais, a economia reage bem e de forma surpreendente. Foi assim em 2017, com a expressiva queda da inflação e da taxa de juros pelo Banco Central, com impacto na confiança dos consumidores e dos empresários e, portanto, no mercado de trabalho, que iniciou a recuperação antes do esperado.

2018 será o ano de colher a recuperação da economia já iniciada. Empresários e consumidores estarão mais otimistas. Isso porque o corte da Selic tem impacto na atividade econômica com defasagens, sendo que o auge do efeito se dá depois de um ano. A volta da economia está, portanto, contratada. Estimamos 3% de crescimento do PIB, já contando com algum ruído eleitoral. Surpresas positivas não podem ser descartadas.

Importante lembrar que não será possível recuperar rapidamente o desastre dos últimos anos. A crise afetou as condições financeiras de empresas e indivíduos, e sua superação leva tempo. Além disso, o desequilíbrio das contas públicas limita a recuperação. Não apenas pela impossibilidade de usar a expansão fiscal como instrumento anticíclico, mas também porque o risco fiscal é a espada de Dâmocles que ameaça investimentos de longo prazo. Como investir num país em que não se sabe qual vai ser o ambiente econômico no futuro, bem como a carga tributária?

O ambiente externo é elemento de sorte. A economia e o comércio mundial ganham tração, e há razões para acreditar que se trata de um movimento com fôlego. Riscos inflacionários no mundo não são para já e, portanto, para o próximo ano não haveria aperto monetário nas economias avançadas, mas apenas elevação moderada dos juros internacionais. Esse quadro, aliado à baixa volatilidade da moeda americana, fruto do crescimento mais sincronizado dos países em relação ao passado, ajuda a manter a inflação baixa no Brasil e algum interesse dos estrangeiros.

A gestão mais responsável da política econômica e a escassez de recursos reforçam o quadro de inflação baixa, enquanto a elevada ociosidade da economia ajuda a conter correções salariais e de preços. Os riscos inflacionários em 2018 são baixos, o que torna pouco provável a elevação da taxa de juros pelo Banco Central.

O ruído eleitoral poderá ser mais contido do que se imagina e com impacto limitado na economia, pelos fatores econômicos discutidos acima, e também porque há boas chances de a campanha, apesar de agressiva nos ataques pessoais, ser responsável na discussão da agenda econômica. Não há apelo para discursos populistas, ao menos dos candidatos competitivos. Eles terão de pensar no dia seguinte. Como governar se não tiverem discurso responsável na campanha? A campanha de 2014 deixou lições. E a própria sociedade parece mais consciente das dificuldades fiscais.

2018 será provavelmente um bom ano. Um cenário de elevada incerteza eleitoral poderá reduzir o potencial de recuperação, mas não a ponto de abortá-la, sendo que a falha do governo em entregar a reforma da Previdência, que seria seu principal legado, poderá cobrar seu preço.

Na agenda econômica, não será um ano de paralisia. Reformas importantes poderão ser aprovadas no Congresso, como cadastro positivo, recuperação judicial, regulamentação do distrato, medidas da agenda BC+, reformulação do Fies, medidas tributárias, marco regulatório do setor de energia, entre outras.

O ano da verdade será, na realidade, 2019, e não 2018. Assim como foi 2015, quando a confiança se foi ao se constatar que o governo não tinha agenda de ajuste fiscal. A crise fiscal exigirá uma agenda sólida e ambiciosa de reformas. A lua de mel do próximo presidente será curta.

*É economista-chefe da XP Investimentos

Sobre incertezas e sangue-frio - MURILLO DE ARAGÃO

ESTADÃO - 24/12

O novo ano já está em curso, precipitado pela pré-campanha à Presidência


Existem anos que não terminam conforme o calendário gregoriano. Outros começam mais cedo, já plenos de ansiedade e incertezas. O novo ano já está em curso, precipitado pela pré-campanha eleitoral à Presidência da República. E com uma agenda repleta de acontecimentos. Se a campanha será curta – apenas 45 dias –, a atual pré-campanha será a mais longa da história política recente do Brasil.

No campo político, pululam candidatos a candidatos, o que é mais do que esperado. Tanto de esquerda quanto de centro, e isso resulta de três fenômenos: a divisão das esquerdas, a indefinição do centro e a busca pela renovação. Muitos lembram que a campanha de 2018 poderá ser semelhante à de 1989, quando houve 22 candidatos, entre os quais 11 eram políticos de expressão.

Na esquerda, Lula (PT) já tem a companhia da deputada estadual Manuela D’Ávila (PCdoB) e, eventualmente, a do ativista Guilherme Boulos (MTST), além do inoxidável ex-ministro Ciro Gomes (PDT). No centro e na centro-direita, aparecem alguns nomes. Na centro-esquerda estão Marina Silva e Álvaro Dias. Na esfera governista, quem diria, há muitos candidatos a candidatos: o economista Paulo Rabello de Castro (PSC), atual presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o ministro Henrique Meirelles (PSD), o governador Geraldo Alckmin (PSDB), o deputado Rodrigo Maia (DEM), o prefeito João Dória (PSDB) e, quem sabe, o presidente Michel Temer (PMDB).


O mercado teme a divisão do centro em candidaturas diversas e prefere que todos se unam em torno de Geraldo Alckmin ou Dória. Não deseja que se repita o ocorrido na última eleição municipal do Rio de Janeiro, quando o centro, dividido em três candidaturas, ficou fora do segundo turno. Ainda assim, aqui e ali, discretamente, surgem suspiros em favor de Henrique Meirelles e de Michel Temer. A economia poderá viabilizá-los? Talvez sim. Talvez não. A melhora no setor pode ajudar o centro político a se unir.

No campo do folclore político, o deputado Jair Bolsonaro (PSC) lidera com folga e preocupa. Será que encarnará o desejo de renovação? Acho que não, mas a cabeça do eleitor anda meio esquisita. Resta saber se terá fôlego, estrutura e narrativa para uma corrida cheia de obstáculos. No campo dos eventos, a agenda está cheia de temas relevantes. No primeiro trimestre, que costuma ser sonolento até o fim de fevereiro, teremos ao menos dois eventos magnum: o julgamento de Lula no TRF-4 e a votação da reforma da Previdência na Câmara. No fim de março, cerca de 16 ministros devem ser substituídos para poderem concorrer nas eleições de outubro.

Esses são temas que têm o condão de influir o ano inteiro. Caso Lula seja condenado, em que pese os recursos de sempre, ele será ficha-suja e isso atrapalhará seus planos. A radicalização decorrente de sua condenação poderá incendiar o eleitorado a seu favor – o que não acredito –, mas decerto aumentará também sua taxa de rejeição. Ao final, ele poderá ter a pecha de criminoso em seu currículo.

A aprovação da reforma da Previdência na Câmara, seja ela qual for, será música para o mercado e para os investidores. Fortalecerá o governo e seus pré-candidatos. Os efeitos econômicos serão sentidos, ainda que o debate se arraste até o fim do ano. A reforma ministerial poderá espelhar o centro unido em torno de uma candidatura ou a confirmação de que o centro estará dividido entre o PSDB e um candidato governista.

Apesar de as tendências apontarem para uma condenação de Lula e a aprovação de alguma reforma previdenciária, 2018 carrega muitas incertezas. Será um ano de visibilidade curta e estaremos envoltos em nuvens de incertezas nos campos político, jurídico e econômico. Agora, como no âmbito da Justiça tudo é possível, a candidatura de Lula não pode ser descartada.

O pior dos mundos será o ex-presidente agindo como candidato pendurado em recursos ao Superior Tribunal de Justiça, ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal. É um cenário possível. E, em sendo candidato, que versão de Lula teremos: a de 1989, de 1994, de 2002 ou de 2006? Teremos uma nova Carta aos Brasileiros? Continuará ele sendo um encantador de serpentes da direita e da esquerda, como em 2002?

No campo jurídico, a Operação Lava Jato pode trazer à tona fatos que abalem o sistema. Existem delações que ainda podem ocorrer e com elevado potencial destrutivo. Assim, o Supremo, que julga em ritmo lento, pode decidir questões que inviabilizem próceres do mundo político. Nesse campo, a já mencionada abundância de candidatos é, por si só, um carnaval para os analistas. No campo econômico, se a retomada for consistente, o governo ganha autonomia para tentar liderar o centro. Até agora a retomada não foi suficiente para alavancar candidaturas.

Movimentos. No âmbito da sociedade, movimentos buscam incentivar a tão necessária participação na política. Iniciativas como a do Renova BR, de Eduardo Mufarrej, agregam interesse e mobilização pouco vistos em processos eleitorais recentes. Teremos alguma renovação, na certeza de que coisas grandes começam pequenas. Infelizmente, o sistema eleitoral brasileiro não é permeável à renovação na intensidade que a sociedade deseja.

A pré-campanha eleitoral já está posta nas redes sociais e as “fake news” ocupam a agenda. A ponto de o Tribunal Superior Eleitoral ter definido regras duras para o uso da internet na campanha. Nesse campo, temos algumas certezas: as campanhas contarão com menos verba do que as anteriores e, em consequência, as redes sociais serão cruciais para os candidatos, devendo haver uma inundação de “fake news”. Para quem gosta de emoções e volatilidade, haverá os gráficos nervosos de indicadores de bolsa, de câmbio, de juros etc.

Conforme se diz, o Brasil continuará a ser um país para profissionais e para investidores com sangue-frio.

* Sócio-fundador da Arko Advice

O que passa pela cabeça de Lula 2018 - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 24/12

Lula está com ideias. Começam a aparecer na conversa do ex-presidente uns fragmentos de programa de governo, rascunhos de planos de economistas, parece. Os cacos dos projetos ficaram mais evidentes na entrevista coletiva da semana passada.

O que merece atenção?

Lula promete reforma tributária progressista, a que seu governo não fez. Isto é, cobrar mais impostos de ricos, tributar grandes heranças e aplicações financeiras.

Lula acha que a crescente dívida do governo não é empecilho a endividamento extra (governos de países ricos têm dívidas maiores do que o nosso, argumenta): "Se eu elaborar uma política econômica e estou sem dinheiro para fazer investimento, tenho capacidade de me endividar...".

Porém básico: as taxas de juros cobradas de governos ricos são zero ou menos do que isso desde 2008. No Brasil, ainda estão em nível que nos levará à falência. Com mais dívida, subiriam ainda mais.

Lula acha que pode recorrer a outros meios de financiar o investimento público: "...posso utilizar o compulsório, usar parte do dinheiro das reservas ["poupança em dólar", guardada no BC para evitar ou resolver crise de financiamento externo]".

"Compulsório" é o dinheiro que os bancos são obrigados a deixar parado no Banco Central. Mas o governo não é dono desses fundos, não pode mexer nisso. Se Lula pensa na verdade em desobrigar os bancos de deixar tanto dinheiro no BC, não tem muito como direcioná-lo para empréstimos, menos ainda para investimento público.

Tentar usar reservas em escala maciça teria efeitos colaterais graves o bastante para contrabalançar algum efeito positivo, para dizer o menos.

Lula quer voltar a recorrer a bancos estatais a fim de investir e induzir investimentos privados.

Tal política ganhou força no governo Lula 2. Tornou-se desastre ruinoso sob Dilma Rousseff. Serviu para criar oligopólios e conglomerados, financiados e apadrinhados pelo Estado. A esse respeito, escrevia-se o seguinte nestas colunas, em janeiro de 2009:

"A atuação das estatais na reorganização do controle da grande empresa [privada] é um dos aspectos mais relevantes do governo Lula. Os negócios merecem instância ou comissão especial do Congresso para acompanhá-los... Sabemos muito pouco da transferência de renda, direta e indireta, propiciada pelo patronato estatal de fusões & aquisições. Não sabemos se o Estado impulsiona investimentos ou apenas os subsidia".

Lula também parece acreditar que a conta do deficit da Previdência está errada: a Constituição previa recursos bastantes, alega, mas o dinheiro previdenciário teria sido como "desviado", passando a fazer parte de modo indevido do bolo total do Orçamento. É o mesmo argumento de certa esquerda.

Se não há deficit previdenciário, o ex-presidente teria de arrochar ou dar cabo do restante do gasto público (pois o resto do governo teria de "devolver" o dinheiro para a Previdência). O deficit previdenciário equivale a quase tudo que se gasta em saúde, educação, Bolsa Família e PAC, por exemplo.

Se Lula não vai fechar o resto do governo, precisa elevar impostos em quase 3% do PIB (uns R$ 184 bilhões) para cobrir a conta da Previdência (hoje. Em 2019, será pior).

Muitos avanços. Mas está faltando um - JOSÉ MÁRCIO CAMARGO

ESTADÃO - 24/12

É fundamental a aprovação de uma reforma no sistema de Previdência Social


A liberação de recursos do FGTS e a forte queda da inflação fizeram do consumo o motor da retomada da atividae econômica em 2017 Foto: Wilton Junior/Estadão

Após dois anos de profunda crise (2015 e 2016), a partir do primeiro trimestre de 2017 a economia brasileira começou a dar sinais de recuperação. Inicialmente concentrada na agropecuária, a partir do segundo trimestre do ano a recuperação se espalhou para outros setores da economia.

A liberação dos recursos inativos do FGTS e a forte queda da inflação geraram crescimento da renda real das famílias e fizeram do consumo o motor da retomada da atividade. A partir do terceiro trimestre os investimentos começaram a dar sinais de vida, com crescimento positivo, após 13 trimestres de queda.

Diante desse cenário, duas questões se colocam: qual a intensidade da retomada e quanto do crescimento e da queda da inflação se devem a fatores cíclicos, que se esgotarão no curto prazo, e quanto decorre de fatores estruturais que podem ter aumentado a taxa de crescimento do produto potencial e reduzido a inflação estruturalmente.

Desde agosto de 2016, o País passa por um importante conjunto de reformas que deverá mudar o comportamento da economia brasileira no curto, médio e longo prazos.

No curto prazo, o fim da obrigatoriedade de a Petrobrás participar da exploração de todos os poços do pré-sal e a redução da exigência de conteúdo nacional nas plataformas liberaram os leilões e reduziram o custo para a exploração do petróleo no País. A liberalização dos preços dos combustíveis, sua vinculação aos preços internacionais do petróleo, a abertura do capital da BR Distribuidora e o anúncio da privatização da Eletrobrás são todas decisões que melhoram a alocação dos recursos, atraem investimentos em setores estratégicos e aumentam o potencial de crescimento da economia.

No médio prazo, quatro reformas terão efeitos importantes já a partir de 2018: o teto para o crescimento do gasto público, a substituição da TJLP pela TLP como a taxa de juros dos empréstimos do BNDES, a liberalização da terceirização e a reforma trabalhista.

O teto para o crescimento do gasto público vai mudar a forma como o orçamento público é definido. Com o teto, qualquer proposta de aumento de gasto terá de ser compensada por redução em outro gasto. Ou seja, a restrição orçamentária terá de ser respeitada. Com isso, o gasto público como proporção do PIB terá uma redução de 5 pontos de porcentagem em 20 anos. A reação dos investidores foi imediata. Os títulos públicos que, em média, pagavam taxas de juros acima de 20% ao ano no início de 2016, estão hoje pagando juros abaixo de 10% ao ano.

A substituição da TJLP pela TLP, além de eliminar os subsídios implícitos por ser a TJLP menor que as taxas pagas pelo Tesouro para se financiar (em média R$ 50 bilhões por ano nos últimos 10 anos), fará com que o BNDES se torne um “amigo” do Banco Central no combate à inflação. Ao contrário da TJLP real, a TLP real (deflacionada pela taxa de inflação) aumenta quando a taxa de inflação aumenta. Consequentemente, o custo real dos empréstimos do BNDES (que corresponde a 46% do crédito corporativo do País) também aumenta, reduzindo os incentivos para o investimento e, portanto, a demanda agregada. Como consequência, as taxas de juros reais de mercado compatíveis com a estabilidade da taxa de inflação serão menores.

A liberalização da terceirização deverá gerar ganhos importantes de produtividade. Como era proibido terceirizar atividades-fim e a definição de atividade-fim dependia do juiz do Trabalho, as empresas somente terceirizavam atividades claramente consideradas atividades-meio, como limpeza, manutenção, etc. Com a liberalização, as empresas poderão se concentrar nas atividades nas quais são mais eficientes e terceirizar tudo aquilo que será feito de forma mais eficiente por outra empresa. O resultado será aumento de produtividade e queda dos custos unitários de produção.

Os efeitos positivos da reforma trabalhista serão muito relevantes. A nova legislação flexibiliza os salários nominais, valoriza as negociações individuais entre patrões e empregados, reduz a incerteza jurídica, diminui o custo de horas extras, incentiva a formalização, diminui o incentivo à rotatividade, enfim, cria as condições para que os ajustes necessários no mercado de trabalho sejam feitos mais através de variações dos salários nominais e menos em variações na taxa de desemprego, da rotatividade e da taxa de inflação. Com isso, diminui as taxas de desemprego (e de juros) necessárias para gerar estabilidade de preços.

Finalmente, no longo prazo, a reforma do ensino médio, ao diminuir o número de matérias obrigatórias e introduzir eletivas profissionalizantes, aumenta a atratividade do curso médio para os jovens de famílias cujos pais têm pouco capital humano acumulado, reduz a evasão escolar e cria um curso menos voltado para a universidade e mais direcionado para o mercado de trabalho, com significativos ganhos de produtividade.

Em conjunto, essas reformas deverão levar a um aumento do crescimento potencial da economia e uma substancial redução estrutural das taxas de juros reais e da taxa de desemprego compatíveis com a estabilidade de preços. Nossa expectativa é de crescimento de 3,9%, desemprego de 9%, taxa de inflação de 3,5% com taxas de juros de 6,5% em 2018.

Ainda falta muito a ser feito antes de o País entrar em uma trajetória de crescimento compatível com as necessidades de um país emergente como o Brasil (simplificação tributária, abertura da economia, etc). Porém, para que o cenário acima se consolide, é fundamental a aprovação de uma reforma no sistema de Previdência Social. Caso contrário, em 20 anos, 100% dos gastos do governo terão de ser dedicados ao pagamento de aposentadorias e pensões. O teto dos gastos se torna insustentável e a questão fiscal volta a ser dominante. E, como em 2016, os investidores vão antecipar esse resultado, forçando aumento dos juros, desvalorização cambial e a volta das pressões inflacionárias.

*É professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e economista da Opus Investimentos

Lisboa perdida - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 24/12

O Rio de Janeiro encanta pelo contraste exuberante da natureza, com faixas estreitas de terra, delimitadas por morros e duas grandes baías, em meio a lagoas e a incontáveis riachos. Tudo converge para o mar com muitas praias, a não ser o inquieto olhar do carioca, sempre a procurar o Cristo Redentor. A bruta e imensa estátua nos comove como um tio adorável cujos defeitos são esquecidos pelo afeto decorrente da longa convivência.

Lisboa é a irmã mais velha do Rio. Um terremoto, seguido por incêndios, destruiu boa parte da cidade em 1755. Poucas décadas depois, a Família Real aportou na colônia e nela reproduziu muito da capital que deixara às pressas com a chegada dos franceses. Lisboa desperta nostalgia e tristeza pela cidade que perdemos.

O Rio preserva, nas áreas ocupadas até 1960, a arquitetura portuguesa em que a rua se confunde com a sala de visitas, com prédios colados à calçada. A moradia em cima e o comércio embaixo convidam à vida andarilha.

Nas décadas seguintes, as intervenções públicas privilegiaram o deslocamento de carros, afastaram os prédios e inventaram obras monumentais. São Conrado era um recanto de casas que subiam a colina e avistavam o mar, cercado por morros. Em 1982, o governo fraturou o bairro com a autoestrada Lagoa-Barra, transformando-o em passagem em meio ao abandono da cidadania que resultou na imensa Rocinha.

Nos anos 1990, Cesar Maia mostrou que podemos fazer diferente ao recuperar as calçadas largas e ao cuidar do mobiliário urbano da Zona Sul.

Em Lisboa é fácil reconstruir os prédios antigos, mesmo no velhíssimo Chiado. A norma impõe pouco: deve-se restaurar a fachada; a construção interna pode ser inteiramente refeita desde que respeite a altura do prédio original; e as vagas de garagem são limitadas.

No Rio, persistem as velhas regras para o restauro, com demandas por vezes inviáveis, que dificultam o uso dos prédios antigos e resultam na deterioração do patrimônio. A burocracia acredita que a sociedade existe para servi-la, preservando seus privilégios às custas da sociedade.

Portugal, por sua vez, enfrentou uma grave crise fiscal e reagiu com um ajuste severo, inclusive na remuneração dos funcionários públicos. As reformas na antiga metrópole permitiram recuperar a sua economia.
Por aqui, optamos pela burocracia em detrimento do espaço urbano e das contas públicas. Somos cúmplices, ao menos por omissão, da autoestrada Lagoa-Barra e da resistência da elite dos servidores públicos às reformas, como no caso da Previdência.

Voluntarismo no Supremo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 24/12

O ministro Barroso, do STF, tem pressa. Parece considerar desnecessário respeitar os ritos processuais, os regimentos e estatutos e, no limite, a Constituição



O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, tem pressa. Considera que o Brasil está apodrecendo em razão da corrupção e se julga no dever de salvar o País, a qualquer custo, tanto naquilo que está a seu alcance, em seu trabalho no STF, como naquilo que não é de sua alçada, como mostra sua já conhecida disposição de legislar. Para esse fim, parece considerar desnecessário respeitar os ritos processuais, os regimentos e estatutos e, no limite, a própria Constituição. Infelizmente, Barroso não está sozinho – ele é apenas o porta-voz informal de alguns ministros do Supremo empenhados em reinventar a Constituição em nome da luta contra a corrupção e da purificação da política.

Na mais recente manifestação desse vezo, o ministro Barroso decidiu enviar para a primeira instância da Justiça Federal do Rio Grande do Norte um inquérito instaurado contra um deputado federal, o tucano Rogério Marinho (RN). Como parlamentar, Marinho teria direito a foro privilegiado – ou seja, seu processo deveria ter continuado no Supremo. Mas o ministro Barroso entendeu que não é mais o caso, porque o STF já formou, em suas palavras, “maioria expressiva” em favor do entendimento de que os parlamentares só têm direito ao foro privilegiado se o crime do qual são acusados tiver sido cometido durante o exercício do mandato e esteja relacionado ao cargo que ocupam. Como o deputado Marinho é acusado de crimes contra a administração pública ocorridos entre 2005 e 2006, período em que presidia a Câmara dos Vereadores de Natal, então, conforme a interpretação do ministro Barroso, não cabe invocar o foro privilegiado.

O problema é que essa interpretação não encontra respaldo em nenhuma decisão do Supremo. O limite ao foro privilegiado ao qual ele se referiu ainda está sendo julgado naquela Corte. A questão foi trazida ao Supremo pelo próprio Barroso, que considera o foro privilegiado uma das principais fontes dos males na política. De fato, como mencionou o ministro, já há uma “maioria expressiva” a favor da restrição ao foro privilegiado, com os votos de oito ministros. O problema é que o julgamento ainda não acabou – três ministros ainda não votaram.

Pode-se argumentar, como estão a fazer os açodados, que a decisão em favor do limite ao foro privilegiado são favas contadas. Contudo, ainda que faltasse apenas um voto e o placar estivesse em 10 a 0, não é possível considerar que haja entendimento formal do Supremo sobre o tema, uma vez que o resultado ainda não foi proclamado pela presidente da Corte, a ministra Cármen Lúcia – e, em tese, ministros ainda podem mudar seus votos.

Ao basear sua decisão em um entendimento do Supremo que ainda não existe, presumindo, em suas palavras, a “improbabilidade de reversão de tal orientação”, o ministro Barroso usurpou a competência da ministra Cármen Lúcia, pois, na prática, proclamou o resultado de um julgamento que ainda está em curso. Além de atropelar as regras internas do Supremo, o ministro Barroso contrariou a atual interpretação da norma, que é a única que vale por ora. De uma só tacada, o ministro, amparado apenas em sua vontade, criou um novo regimento para o Supremo e uma nova hermenêutica para a questão constitucional do foro privilegiado.

Tudo isso, é claro, com as melhores intenções. Em seu despacho, o ministro Barroso diz que o caso examinado “bem retrata a disfuncionalidade do sistema”, pois o processo contra o parlamentar em questão “já tramitou em quatro jurisdições” e “não há adjetivos suficientes para qualificar o absurdo desse modelo, que causa indignação na sociedade e traz desprestígio para o Supremo”. Para o ministro, a existência do foro privilegiado provoca “a politização indevida da Corte, a criação de tensões com o Congresso e o desprestígio junto à sociedade, por se tratar de uma competência que ele (o Supremo) exerce mal”.

Assim, certamente sem perceber, o ministro Barroso esclareceu que o verdadeiro problema não é o foro privilegiado – necessário para evitar a litigância de má-fé contra certas autoridades –, mas sim a inexplicável lentidão do Supremo para julgar essas autoridades. É isso, antes de tudo, que dá a sensação de impunidade.

Os Poderes são três, mas o Tesouro é só um - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 24/12

No Brasil, separaram a noção de Poder e a de responsabilidade pelo trabalho de governar



Como dizem nos filmes, há boas e más notícias nas projeções para a economia brasileira nos próximos anos. As boas são suficientes, sem ambições irrealistas, para encher uma cesta de Natal. O crescimento econômico deve ficar entre 2,5% e 3% em 2018, superando de longe o desempenho – cerca de 1% de expansão – estimado para 2017. O quadro internacional continua benigno, com os principais mercados em recuperação e dinheiro ainda farto, apesar da elevação de juros iniciada nos Estados Unidos. A retomada se espalha, no Brasil, pelos segmentos da indústria. As contas externas estão sólidas e assim devem continuar, mesmo com o esperado aumento das importações, consequência saudável da reativação nacional. A inflação deve permanecer contida pelo menos até 2020, segundo as previsões do mercado e do Banco Central. O investimento produtivo, embora ainda muito baixo, está em recuperação, depois de quatro anos de queda, e deve seguir em alta. Se isso se confirmar, um ciclo de crescimento seguro estará praticamente garantido. Mas essas previsões, presentes em todos os cenários mais elaborados, são acompanhadas de uma ressalva: o fortalecimento econômico só será duradouro se houver avanço no ajuste das finanças púbicas – incluída a reforma da Previdência. Quem cuidará dessa condição?

Não se pode falar de perspectiva econômica, neste país, sem cuidar da política. Em democracias mais avançadas, mais estáveis e com instituições consolidadas e em bom estado de funcionamento, pode-se tratar de economia sem levar em conta o dia a dia do jogo parlamentar e da articulação entre os Poderes. Isso seria um luxo perigoso no Brasil, embora alguns otimistas continuem a mencionar um descolamento entre o mundo econômico e o político. Acreditar nisso é ilusão ou, no mínimo, distração quase inexplicável. Basta ver como as oscilações na negociação da reforma da Previdência afetam as curvas de juros e a taxa de câmbio no dia a dia do mercado financeiro. Não há como descartar a questão crucial: quem cuidará das condições necessárias à retomada segura do crescimento?

O Executivo pode formular e conduzir a política econômica até certo ponto, mas o jogo envolve o Palácio do Planalto e toda a vizinhança. Governar envolve muito mais que a Presidência da República, os ministérios e seus órgãos auxiliares. É preciso levar em conta a amplitude da palavra governar, geralmente usada no Brasil em sentido muito restrito.

Os gringos falam em ramos do governo (branches of government) quando se referem à divisão de funções entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Falar de governo é falar de autoridade e até de mordomias, mas também de obrigações e serviços devidos aos prezados cidadãos. Muitos cidadãos sabem disso nas democracias maduras e cobram a execução do trabalho. Em vez de ramos do governo, os brasileiros mencionam Poderes da República, fiéis, pelo menos quanto ao vocabulário, à tradição francesa.

Poderes e responsabilidades são termos correlatos na linguagem das democracias avançadas ou, no mínimo, razoavelmente amadurecidas. No Brasil a correlação é muito menos clara. A separação de Poderes nem sempre é invocada em nome da boa operação do sistema. Com frequência é lembrada como argumento a favor de vantagens como auxílio-moradia, auxílio-paletó, transporte e mimos até mais custosos, cobrados como direitos por membros do Legislativo e do Judiciário.

Tudo se passa como se, nesse regime, coubesse a cada Poder fixar a própria despesa sem levar em conta as limitações da receita fiscal ou qualquer critério prosaico de prioridade e, portanto, de uso eficiente do dinheiro público. São três Poderes e um só Tesouro, mas cuidar do Tesouro, dando atenção a restrições financeiras, é atribuição do Executivo. Aos demais Poderes a boa ordem republicana só atribui o direito de gastar. A solidez das finanças é assunto do Executivo. É problema do presidente e de sua equipe descobrir como pagar em 2018 o aumento salarial esperado pelo funcionalismo. Se um ministro do Supremo Tribunal Federal proíbe o adiamento, vire-se o pessoal do Executivo para fechar as contas sem violar a meta fiscal, talvez elevando tributos ou cortando gastos essenciais.

No Congresso, a identificação entre governo e Executivo tornou-se mais desastrosa com a multiplicação dos partidos e de siglas vazias de significado programático. Quem é capaz de citar, ou de citar sem hesitação, todos os grupos da chamada base governista? Em democracias mais arrumadinhas, governistas tendem a apoiar projetos com a marca programática do Executivo, porque essa também é, em condições normais, a marca do partido. As dificuldades de Donald Trump com o Partido Republicano de nenhum modo desmentem essa ideia: nesse caso, o presidente é um ingrediente fora do padrão.

No Brasil, a separação entre as noções de poder institucional e responsabilidade governamental tem produzido, entre outras aberrações, a deformação catastrófica de projetos do Executivo, com perdas de bilhões para o Tesouro. Quem desfigurou o projeto do Refis foi um relator vinculado à chamada base governista. Além disso, nenhum projeto razoavelmente ousado, como o da reforma trabalhista e o do teto constitucional de gastos, foi aprovado sem a distribuição de benefícios bilionários. Cada movimento importante envolve uma negociação dispendiosa com os aliados. Pode parecer piada, mas o Executivo paga muito dinheiro para manter o déficit primário dentro do limite legal. Quanto ainda terá de pagar pela aprovação de mudanças necessárias à redução do déficit e ao controle do endividamento público? Nenhuma das projeções econômicas para os próximos anos cita esses valores. Todas incluem o pressuposto – sem os cifrões das barganhas – do avanço nos ajustes e reformas.

ROLF KUNTZ É JORNALISTA