domingo, outubro 01, 2017

Vocês são "inútil" - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA

Quem banca o saneamento da máquina pública é ele mesmo, um cacique do velho PMDB


Mais um festival de rock se vai, deixando mensagens no ar. Mas quem quiser decifrá-las para entender, afinal, o que é que muda o mundo, poderá se assustar: mantidas as tendências atuais, logo o rock"n"roll estará servindo para protestos contra a Guerra do Vietnã e em defesa da pílula anticoncepcional. Será que o mundo está mudando de marcha a ré? Existe rock reacionário?

Foi comovente ver aquelas bandas brasileiras caricaturando o passado que nunca tiveram, soltando brados heroicos contra o governo e a política nacional. Se tivessem gritado com metade desse entusiasmo nos 13 anos de rapinagem do PT... Bem, não teria acontecido nada, porque esses rebeldes não fazem mal a ninguém.

A rebeldia empalhada do Rock in Rio não se lembrou de Luiz Inácio Lula da Silva, o comandante do maior assalto da história republicana. Num país mais ou menos saudável, os acordes ensurdecedores do mensalão, do petrolão e das revelações obscenas da Operação Lava Jato imporiam, sobre qualquer outro som, o brado pela prisão de Lula. No entanto, o heptarréu (já condenado em um dos processos) não inspira os revolucionários da tirolesa.

É a onda purificadora mais poluída da história da rebeldia cívica (alô, vigilância sanitária!). No embalo do bordão carne assada "fora Temer", que virou até brinco no festival, os intelectuais de porta de assembleia resolveram classificar o impeachment da senhora Rousseff (que também está solta) como a mera substituição de uma quadrilha por outra. Não, companheiros da limpeza. Não foi isso o que aconteceu.

Notícia em primeira mão para vocês que estão chegando de Woodstock: a Petrobras, maior empresa nacional, jogada na lona pelo estupro petista, foi saneada e reerguida no espaço inacreditável de um ano. A mesma transfusão de gestão aconteceu no Banco Central, no Tesouro e nas principais instituições que comandam a economia nacional. Vocês não poderiam saber de nada disso porque estavam assistindo a Jimmy Hendrix, mas aí vai: o dólar, os juros, o risco país e a inflação despencaram, também em tempo recorde. Portanto, companheiros revolucionários, avisem ao pessoal da limpeza que, no coração do estado brasileiro, não houve a substituição de uma quadrilha por outra. A não ser que a que entrou seja uma quadrilha do bem, como vocês fingem que a gangue do Lula é.

Quem está bancando esse saneamento da orgia petista na máquina pública, contra tudo e contra todos, queridos metaleiros de playground, é o mordomo! Ele mesmo, um cacique do velho e fisiológico PMDB, que tem de ser investigado sempre. Mas o que se viu foram denúncias fajutas montadas por um falso justiceiro para fazer política – ou, mais precisamente, retomar o poder central para a turminha do progressismo trans.

Em outras palavras, os rebeldes de festival que pagam 500 pratas por um ingresso gritavam por uma virada de mesa a favor de quem esfolou o povo. Não esse povo imaginário que eles defendem, mas o povo que jamais passará nem na porta do Rock in Rio, muito menos participará de protesto fashion bem na hora que o emprego começa a reaparecer.

Os heróis dos revolucionários de auditório são personagens como Rodrigo Janot, que alegrou a criançada com sua brincadeira de arco e flecha enquanto conspirava com os açougueiros biônicos do PT. Janot e os rebeldes de festival deram à delinquência de Dilma Rousseff uma anistia comovente. A regente do petrolão, com seus e-mails de obstrução à Lava Jato esfregados na cara do país, não mereceu flechadas verdadeiras nem gritinhos da plateia.

O Rock in Rio 2017, com suas claques colegiais regidas por cantores decadentes – desesperados por um pouco de charme ideológico –, sintetizou a covardia fantasiada de bravura: todos passando aquele perfuminho de rebeldia para pertencer a um levante imaginário da esquerda popular contra a direita elitista. Todos, portanto, atrás do mesmo véu que protegeu o deputado petista flagrado comprando sua eleição no próprio PT – o último milagre da narrativa coitada.

A má notícia, companheiros perfumados, é que essa barulheira demagógica vai morrer dentro de sua própria bolha. A trilha sonora desse festival deveria ter sido cerimoniosamente solicitada ao Roger do Ultraje a Rigor: a gente somos inútil!

Conversa em roda de amigos - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 01/10
Há sempre no ar uma certa nostalgia de um nome, um líder para o processo de renovação


Nas horas de folga, tenho conversado com amigos, quase todos preocupados com o Brasil. Alguns pensam até em se candidatar e contribuir com o processo. Por que não? Em todo o país há um apelo por renovar. Aos que tomam o caminho de concorrer a cargos públicos, lembro apenas que não basta uma troca de nomes. Com as mesmas regras do jogo, o sistema resulta em perversão.

Há ainda os que querem fazer algo, sem deixar o seu trabalho, só como eleitores. O que fazer? Sinceramente a melhor resposta é trocar ideias entre as pessoas que querem fazer algo. Dessa teia de relações, acabam surgindo os rumos e possibilidades.

Há sempre no ar uma certa nostalgia de um nome, um líder para o processo de renovação. No entanto, é é preciso seguir conversando, independente disso. Quanto mais amadurecida estiver a sociedade no seu desejo de renovação, quanto mais tiver clareza do que quer e não quer mais, mais fácil aparecer alguém para liderá-la. Não são necessárias qualidades extraordinárias.

Outra vantagem de uma sociedade mais informada é que pode trocar seus líderes com facilidade. Não depende de um salvador. A recente tragédia da esquerda brasileira foi também ter depositado todas as suas esperanças num líder. Ela não estava preparada para o ocaso de Lula e simplesmente não consegue admiti-lo.

Palocci descreveu, em sua carta, algo que já mencionei em alguns artigos. A necessidade de dar as costas às evidências, a transformação num movimento religioso que cultua o líder e o considera um perseguido apesar dos fatos. Nem sei se a expressão religiosa é adequada. Não faz justiça, por exemplo, ao budismo, que estimula o encontro da iluminação por um caminho próprio e afirma que ela está dentro de cada um.

Na história do budismo, houve momentos em que não havia Buda e, mesmo sem ele, um grupo de pessoas compreendeu todos os ensinamentos por contra própria. São tratados com admiração: os que chegaram ao conhecimento sem a ajuda de um grande mestre.

A política não dispensa lideranças. Mas as virtudes necessárias dependem do momento histórico. O fracasso do populismo de direita abriu caminho para líderes messiânicos de direita.

Lula é uma divindade para os adeptos, Bolsonaro é um mito para os seus. Naturalmente essa emoção domina milhares de pessoas. Mas é crescente o nível de informação da sociedade e, na medida em que amadurece, a tendência majoritária é não acreditar em mitos ou divindades políticas.

Durante alguns anos, presenciei a transformação que o mundo digital nos trouxe. No princípio, a cena política a considerou apenas algo que estava aí, fervilhando, mas correndo em paralelo, sem influenciá-la. Agora, os mecanismos de controle são muito maiores. O próprio governo Temer foi levado a mudar de posições por pressão da sociedade.

Outro fator positivo é o impacto da Lava-Jato. O processo de corrupção pode até continuar, mas hoje se está mais equipado para investigá-lo, e tanto políticos como empresários conhecem o alto risco dessas práticas. Se a maioria moderada conseguir impor um caminho, certamente terá de derrotar o populismo, os futuros luminosos, os amanhãs que cantam, o paraíso prometido. Mais informada e consciente, a sociedade poderá escapar de outras divindades que às vezes se apresentam como absolutas: o mercado e o Estado.

Sem um grande líder messiânico, sem soluções radicais mas apenas um esforço para reerguer o Brasil e deixar que siga os seus passos, a alternativa pode parecer até um pouco monótona. No entanto, não tenho visto ninguém se abalar, nos novos grupos e experiências que, às vezes, mostro na televisão, por ideias fantásticas, fórmulas revolucionárias.

A maioria das pessoas com quem falo está preocupada com a decadência do Brasil, querendo fazer algo para que o país não se derreta no pântano em que foi lançado. São jovens que chegam à política agora, em 2018, com uma grande compreensão de como as pessoas informadas podem influir no processo. Certamente estarão preparadas para concluir que o caminho de consolidar as conquistas será pela educação.

Talvez esteja terminando também, com tantos outras deformações, um tipo de político que não se importa com a educação, que depende de ignorância para se manter na carreira. Reconheço que isso é uma posição otimista: apoiar-se na clássica ideia de que o ser humano pode saber, logo tornar-se livre.

Segundo Karl Popper, existe também o polo contrário: o do descrédito na capacidade humana de achar a verdade. Esses polos estão sempre em confronto e dividem os que querem ampliar a democracia e os que, baseados na sua convicção pessimista, tendem para a busca de uma autoridade forte para evitar o pior. Se estivesse na conferência do general Mourão, aquele que admitiu a possibilidade de intervenção militar, concordaria com suas críticas aos políticos. No entanto, diria apenas que acredito na capacidade de resolvermos nossos problemas, sem recuar na democracia.

O ano que entra é o começo de um novo ato. Um oásis potencial para nossos olhos, voltados hoje para a sujeira do passado e a mediocridade do presente.

O lado oculto do problema fiscal - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 01/10

A reforma mais importante é a da Previdência e ela não deve ocorrer neste governo


Por que, consciente da baixa probabilidade de ser sorteado, alguém decidiria comprar um bilhete de loteria? Afinal, a “renda esperada” pelo apostador é o produto do valor monetário do prêmio pela probabilidade de ser sorteado, e como essa probabilidade é nula, o benefício esperado também é nulo. A decisão se alteraria caso o benefício não fosse a receita esperada, e sim a “utilidade” vinda da ilusão de que, uma vez sorteado, resolveria todos os seus problemas financeiros. Nesse caso, a utilidade marginal pode exceder o custo marginal, e se o indivíduo chegasse à conclusão de que ela é muito grande não compraria apenas um, mas vários bilhetes.

A economia brasileira vem melhorando. Primeiro, o Banco Central teve sucesso no controle da inflação, abrindo espaço para a queda vigorosa da taxa real de juros, que já vem estimulando a retomada do crescimento. Segundo, o País tem se beneficiado da situação internacional, que favorece o comércio mundial e os ingressos de capitais. Terceiro, ocorreram progressos como a reforma trabalhista e o avanço nas reformas microeconômicas, dentre as quais está a redefinição das taxas de juros do BNDES.

No plano fiscal, contudo, ainda há muito a percorrer. A reforma mais importante é a da Previdência, que dificilmente ocorrerá neste governo. Embora o “benefício marginal esperado” de investimentos baseados na sua aprovação seja muito alto, a probabilidade de sua ocorrência é baixa, o que torna praticamente nulos os retornos. Somente os investidores apaixonados pelo risco fariam apostas mais pesadas nessa direção. A atual valorização do real e dos preços das ações não é fruto de uma aposta sujeita a altos riscos, como esta, mas dos efeitos combinados da situação internacional com a melhora da economia brasileira.

O que ocorreria caso a reforma da Previdência fosse integralmente aprovada? Desapareceria o risco inerente à aposta, o que somado à elevada liquidez internacional expandiria fortemente a demanda por ativos brasileiros, levando a uma nova onda de valorização do real.

Nesse caso, qual poderia ser a reação do Banco Central? Como ele ainda conta com um estoque de pouco mais de US$ 20 bilhões em swaps cambiais poderia reduzi-lo, mas esse instrumento seria eficaz apenas para atenuar a volatilidade, sendo insuficiente para impedir uma valorização persistente. Intervenções mais pesadas – acumulando reservas ou ofertando swaps – teriam custos fiscais enormes. Poderia, em princípio, reduzir a taxa de juros, mas esta já está abaixo da neutra, e, se tudo funcionar bem, o hiato do PIB estará se estreitando rapidamente, limitando o uso desse instrumento. Economistas heterodoxos sugeririam o controle de capitais, o que seria um erro em um país que precisa de capitais.

A conclusão é de que nessas circunstâncias dificilmente o câmbio escaparia de nova valorização. Como sou cético com relação à aprovação da reforma da Previdência neste governo, não acredito que esse evento esteja próximo. Mas ele virá quando a reforma for aprovada, e é preciso que nesse ponto o País já tenha avançado em outras reformas que aumentem a competitividade das exportações.

A existência desse dilema ilustra a pobreza dos diagnósticos que buscam a solução do problema fiscal apenas na elevação de receitas. Em importante artigo publicado neste jornal, Bernard Appy (Agenda Tributária, 19/09) mostrou que a única eficácia do sistema tributário brasileiro é a obtenção de receitas, que é o instrumento de última instância utilizado para tratar o desequilíbrio fiscal. Nesse campo, batemos todos os demais países. Porém Appy descreve claramente as enormes ineficiências que estão na base de todas as outras dimensões do nosso sistema tributário, desembocando na queda da produtividade e em uma enorme erosão de competitividade nas exportações.

Além do controle dos gastos, que é fundamental no ajuste fiscal, precisamos de uma reforma tributária racional. Sem isso, os nossos empresários nunca vão parar de pedir mais subsídios ao lado do câmbio mais depreciado, e temo que esta seja a solução fácil à qual no futuro os governos continuarão a se agarrar.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS.

Para a história - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA

Nenhuma futura história da Operação Lava-Jato será completa se não incluir a festa do sexagésimo aniversário do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Nenhuma futura história do Partido dos Trabalhadores será honesta se não reservar lugar de honra à carta de desfiliação do ex-ministro Antonio Palocci. Não é sempre que isso ocorre: em poucos dias, dois eventos para a história.

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Antônio Carlos de Almeida Castro, além de competente, é um advogado pop. Obrigatório é, em seguida a seu nome, pespegar uma vírgula e esclarecer: o Kakay. A barba e os longos e despenteados cabelos acusam um espírito de Rock in Rio. Para comemorar o aniversário, ele reuniu 220 convidados num programa em Lisboa cujos pontos altos foram um jantar, no dia 22, no Palácio de Xabregas, edificação com quase dez vezes a idade do aniversariante, e um almoço no dia seguinte nas vinícolas de Torres Vedras. Os convidados já estavam reunidos antes na capital portuguesa. Na véspera do início das comemorações, Kakay deixou-os por 24 horas para, no STJ, em Brasília, defender seu mais novo cliente, Joesley Batista. Voltou como foi, num jatinho, numa demonstração de poder, riqueza, consciência profissional e saúde para emendar travessia oceânica, trabalho, outra travessia oceânica e prolongada festa. O jantar no Palácio de Xabregas teve show de Carminho, a mais requisitada cantora portuguesa do momento.

Não é intenção do colunista meter sua mal-humorada colher no chantili da festa para a qual não foi convidado. Cada um festeja como quer e pode. A festa entra nestas linhas — e na história — porque desvenda um efeito pouco enfatizado da Lava-Jato, o da bonança que trouxe para a elite da advocacia criminalista no país. A Lava-Jato vem proporcionando ao Brasil uma coleção de recordes. Por múltiplos critérios — extensão, duração, número de participantes, valores envolvidos —, é o maior caso de corrupção desvendado no mundo. Os 51 milhões de reais no apartamento administrado pelo ex-ministro Geddel configuram possivelmente outro recorde. A festa de Kakay, à qual se fizeram presentes vários colegas com atuação na Lava-Jato, celebrava em paralelo o caso criminal que detém, se não a maior, uma das maiores concentrações de réus milionários do mundo, com a consequente transferência de bocados dessas fortunas aos advogados. Se esse dinheiro tem origem em fontes ilícitas, é outra história. Kakay, além de simpático, é interessante a ponto de incluir no discurso aos convidados a frase: “Bem-­vindos ao meu delírio”.

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Entre os muitos trechos capitais da carta de Palocci, fiquemos com dois. O primeiro é a seguinte frase: “Um dia Dilma e Gabrielli dirão a perplexidade que tomou conta de nós após a fatídica reunião na biblioteca do Alvorada, onde Lula encomendou as sondas e as propinas, no mesmo tom sem-cerimônia, na cena mais chocante que presenciei do desmonte moral da mais expressiva liderança popular que o país construiu em toda a nossa história”. As palavras arrasadoras — perplexidade, fatídica, chocante, desmonte moral — reconstroem uma cena de filme. Era a biblioteca do Alvorada, mas podia ser o interior esfumaçado de um bar clandestino, garrafas espalhadas pela mesa, nos Estados Unidos da Lei Seca. O chefão reúne os lugares­-tenentes e determina: mandem comprar os navios, e desde logo avisem qual vai ser a nossa parte. Ao deixarem o bar, os lugares-tenentes entreolham-se, assustados: — Vocês viram a frieza com que ele fala essas coisas? Como chegamos a esse ponto?

O outro trecho é uma pergunta: “Somos um partido político sob a liderança de pessoas de carne e osso ou somos uma seita guiada por uma pretensa divindade?”. A questão nos leva a uma entrevista do historiador italiano Loris Zanatta a Sylvia Colombo, do jornal Folha de S.Paulo. Especializado em América Latina, Zanatta identifica um conteúdo religioso em movimentos como o peronismo, o castrismo e o chavismo, que chama de populistas. “No liberalismo e na tradição ilustrada o povo soberano é o povo da Constituição. Este povo é dotado de direitos e se concebe um pacto racional e plural entre os atores”, afirma. Nos movimentos populistas “se pensa o povo como algo acima do pacto político racional”; vigora a ideia de que “existe um povo mítico acima da Constituição”, “um povo bíblico a caminho da redenção”. Zanatta não fala no PT, mas a identificação dos petistas com os movimentos citados indica que a resposta correta à pergunta de Palocci é: “O PT é uma seita”.

Janot venceu - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO -  01/10

A obsessão da PGR contra Temer deu certo, mas Janot tem contas a acertar com a história

A enxurrada de revelações sobre Joesley Batista e o desgaste da PGR deixaram um rastro de destruição para o próprio Joesley e atingiram a imagem de Rodrigo Janot, mas nem por isso refletiram positivamente no presidente Michel Temer, principal alvo do complô da JBS com a PGR, com beneplácito do Supremo. O estrago feito em Temer está feito e é comprovado pelos chocantes 3% de aprovação na rodada CNI-Ibope.

Assim como o acordo de delação de Joesley explodiu, mas as provas sobreviveram firmes e fortes, a credibilidade da gestão Janot na PGR balançou, mas suas flechadas contra Temer atingiram o alvo e o presidente não consegue se recuperar. Não tira proveito algum, político ou pessoal, da debacle dos inimigos. Implodem todos, denunciantes e denunciados, e o desfecho da nova denúncia contra Temer é esperado, mas vai custar caro – inclusive ao País.

Já estava claro quem era Joesley Batista quando ele gravou Temer no Jaburu e “se pirulitou” para Nova York a bordo de seu jato e do acordo do século com a PGR de Janot, homologado rapidinho pelo ministro do STF Edson Fachin. Agora, é o próprio Joesley quem se declara, em nova gravação divulgada pela revista, como um criminoso – e de diversas organizações criminosas.


Uma questão central das delações da JBS foi Janot e sua equipe se recusarem a classificar Joesley como chefe de quadrilha. Por quê? Porque, se classificassem, ele não poderia se beneficiar do acordo. Não só se beneficiou por sair livre, leve, solto, como aproveitou para embolsar mais alguns milhões na Bolsa e no mercado de câmbio.

Era óbvio, e está cada vez mais ululante, que Joesley era, sim, o chefe de uma das mais poderosas organizações criminosas gestadas neste País, algo que foi debatido nos quatro dias de julgamento do Supremo sobre até que ponto delações são intocáveis como cláusulas pétreas da Constituição. Não são, nem podem ser, como comprova a rebordosa Joesley e já vinha ensinando a PF, onde a perplexidade com a PGR é enorme.

Como diz um velho procurador, ninguém considera Michel Temer um santo, mas não cabe à PGR, ao STF ou à PF trabalhar com “a obsessão” de derrubar quem quer que seja, muito menos o presidente da República. A expectativa é de que a nova procuradora-geral, Raquel Dodge, seja dura no combate à corrupção e na condução da própria Lava Jato, mas sem passionalidade e flechas, só com leis e regras. Vamos rezar.

Uma das mais perigosas cascas de banana no seu caminho é a investigação sobre os procuradores tragados pelo tsunami, a começar de Marcelo Miller e Ângelo Goulart Vilela, preso por favorecimento à JBS. Ambos foram revelados por, digamos, agentes externos, não pela própria PGR. E agora, a PGR vai investigá-los?

Outro fator é que há tempos não damos bola para CPIs, mas a que investiga esse imbróglio tem apoio da PF, está a mil por hora e já produz efeitos, como a quebra dos sigilos de Miller. Podem surgir cobras e lagartos daí, inclusive a resposta para uma dica nas gravações de Joesley com Ricardo Saud: eles diziam que Miller seria só o primeiro da PGR no escritório de advocacia no Rio que defendia a JBS, depois viriam outros – como o próprio Janot, após a PGR.

A bem de Rodrigo Janot, a imagem que ele deixa na PF, na Justiça, no próprio STF, é mais de um equivocado, um justiceiro estabanado, do que qualquer outra coisa mais grave. E deixa uma lição: no furor de combater a corrupção, não se podem eleger seus corruptos favoritos para tratar bem e os corruptos dos outros para flechar mortalmente. Isso costuma ter efeito bumerangue. Dito e feito. A função mais urgente de Dodge é botar a casa em ordem, descartar bambus e flechas e reativar as leis e a imparcialidade.

Velas para Lula e a esquerda no escuro - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 01/10

A pichação velha diz "R$ 3,20, jamais". Está lá desde junho de 2013, no cruzamento da avenida Paulista com a rua da Consolação, centro de São Paulo. Era um mote contra o aumento de vinte centavos das passagens.

O "pixo" tem efeito hipnótico. Sempre me faz perguntar que fim levou tudo isso. Nesta semana, me lembrou dos secundaristas que ocupavam escolas em protesto contra a reforma do ensino médio, a PEC do teto de gastos etc. Quanto tempo faz isso? Dois, três anos?

Faz apenas um ano, neste outubro. A greve grande de abril, contra a mudança na Previdência, parece igualmente remota. Ajudou a plasmar a péssima imagem pública das reformas e a assustar parlamentares, que assim arrumaram um pretexto quase final para não bulir com as aposentadorias. Desde então, a esquerda entrou de vez em coma, no hospício ou fugiu para as montanhas.

O movimento dos secundaristas virou fumaça, como se esvaneceram no ar os jovens do MPL, Movimento Passe Livre, o dos vinte centavos, que riscou o fósforo na casa cheia de gás sem cheiro que era o junho de 2013.

Em outubro, os secundaristas ocupavam mil escolas pelo país, a maioria no Paraná. O movimento pipocava desde o fim de 2015, quando estudantes paulistas tomaram umas 200 escolas, derrubaram um secretário da Educação e o prestígio de Geraldo Alckmin. A história, porém, não poderia render nem rendeu mais do que autocongratulações esquerdistas iludidas sobre o renascimento do movimento estudantil e louvações do idealismo renovado da "garotada", essas cafonices.

As centrais sindicais tentaram reviver a greve de abril nos meses seguintes, o que deu em grande fiasco. A reforma trabalhista passou sem um pio das ruas. Os sindicatos ora se limitam a pedir um capilé a Michel Temer, a volta de alguma contribuição sindical. As centrais se tornaram o Centrão do que um dia foi o movimento dos trabalhadores.

Os trabalhadores se viram. Em 2016, houve mais de 2.000 greves, segundo o Dieese, inédito desde FHC 1. As paralisações haviam minguado para 400 ao ano sob Lula e voltaram a crescer em 2010.

Nos tempos idos da alegria petista, até 2013, a maioria das greves reivindicava reajuste de salário. No ano passado, a maioria cobrava salários atrasados. No entanto, mal se ouviu falar dessas greves de 2016, mesmo da boca de sindicalistas. Para espanto de gente com ideias antigas, a esquerda se divorcia do trabalho.

O PT, entre a rua do hospício e a praça da cadeia, passou os meses recentes a bajular o ditador do horror venezuelano, Nicolás Maduro, e no mais limita a Lula lá sua esperança de evitar ruína ainda maior nas eleições de 2018. Seus parlamentares negociam acordões, como a reforma política salafrária.

Amigos abnegados da militância de esquerda contam que coletivos de periferia e outros movimentos novos estão vivos, embora pequenos, mas se articulando, evoluindo nos casulos para emergirem depois do fim do período de trevas, quem sabe em meia dúzia de anos. Por ora, parecem mesmo na periferia, à margem.

Do centro à extrema-direita, articulam-se novidades ou a ressuscitação de frankensteins das trevas do inferno. A esquerda oficial acende velas para seu morto vivo, Lula. No mais, escuridão.

O atalho não funcionou - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 01/10

Em abril de 2012, os bancos públicos, em função de pressão da então presidente Dilma Rousseff, reduziram as taxas de juros cobradas em seus empréstimos livres, isto é, não subsidiados.

O diagnóstico era de que os elevados spreads do setor bancário brasileiro –diferença entre a taxa cobrada pelo banco ao tomador de empréstimo e a taxa paga ao depositante– deviam-se à baixa competição no setor.

A hipótese era que a estrutura, na prática cartelizada do setor, reduzia artificialmente a oferta de empréstimos e, consequentemente, o custo do crédito e a rentabilidade das instituições financeiras subiam.

Quando um preço é artificialmente elevado em função da operação de um cartel, as empresas que quebram o acordo –seja formal ou tácito– saem na frente e, por meio de ganho de participação de mercado, engordam seus lucros.

Desde 2012, o crescimento dos bancos públicos nos créditos livres foi muito maior do que o dos bancos privados. A política não durou muito. Os bancos públicos aparentemente desistiram da política iniciada por Dilma no final de 2013 e início de 2014.

Para avaliar se o resultado dessa iniciativa (enquanto ela durou) foi positivo, é importante saber o seu impacto no retorno sobre o patrimônio (ROE). Adicionalmente, importa saber se causou ou não elevação substancial da taxa de inadimplência das instituições controladas pelo governo.

Em agosto de 2017, a inadimplência dos bancos públicos nos créditos livres atingiu 8,8% da carteira, comparado a 4,6% nos bancos privados.

Em relação ao ROE, entre 2011 e 2016, o Santander saiu de 10,2% para 12,7%; o Bradesco de 20,1% para 17%; o Itaú de 21,7% para 19,9%; o BB de 21,2% para 9,4%; e a Caixa de 26,5% para 6,5%.

Dessa forma, fica claríssimo que o experimento ou atalho tomado por Dilma no primeiro semestre de 2012 em relação aos bancos públicos não funcionou. A inadimplência nos créditos afetados por essa política tornou-se quase duas vezes maior que a inadimplência correspondente nos bancos privados, o que deve ter contribuído para a forte erosão da rentabilidade das instituições controladas pelo governo.

A grande dificuldade na democracia é que muitas vezes ocorrem grandes defasagens, que podem durar anos, entre a implantação das políticas públicas e seus efeitos em toda a plenitude. No caso examinado nesta coluna, passaram-se seis anos entre a política de tentar baixar o spread na marra e seu impacto sobre a rentabilidade dos bancos públicos.

Além da consolidação fiscal que permitirá a queda mais permanente da taxa básica de juros, o que rebaterá sobre o spread, há uma longa lista de medidas para permitir um novo equilíbrio com menores spreads: queda dos depósitos compulsórios, redução da tributação sobre a intermediação, estímulo à concorrência entre os bancos, instituição de uma rede compartilhada de caixas automáticas, melhorar os cadastros, diferenciar o peso regulatório em função do tamanho da instituição, aprimorar os instrumentos legais de resolução de episódios de falência bancárias, etc.

Como quase sempre na vida, os atalhos de política econômica não têm nos levado muito longe.

Encontro marcado - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 01/10

A nossa história é repleta de tentativas criativas para evitar enfrentar os problemas. Quem sabe o reconhecimento dos fracassos recentes permita que, desta vez, seja diferente.

O aumento do gasto público pode ser eficaz quando há desemprego e deflação. Por aqui, entretanto, achamos que havia outro caminho. Desde meados do segundo governo Lula, tínhamos inflação elevada e, no entanto, optamos por expandir o gasto público. Entre 2008 e 2014, passamos de um superavit de 2,7% do PIB para um deficit de 1%. Conseguimos, apenas, maior inflação.

O mesmo ocorreu com diversas medidas criativas do governo Dilma, como a redução açodada da taxa de juros em 2012, a intervenção no setor elétrico e o resgate das políticas típicas do nacional desenvolvimentismo. Pois bem, mais uma vez a realidade discordou da nossa criatividade. O resultado foi o impressionante desperdício de recursos em projetos fracassados, e não desenvolvimento.

O atual governo desistiu da criatividade e iniciou uma agenda para estabilizar a dívida pública. O resultado não deveria surpreender: queda das taxas de juros e da inflação. Como ocorreu com o ajuste de 2003, a economia começa a se recuperar, com redução do desemprego.

Entretanto, ainda estamos distantes do ajuste das contas públicas. O crescimento dos gastos obrigatórios tem sido compensado pela redução das despesas discricionárias, como o investimento público e programas em ciência e tecnologia, além das atividades comezinhas que permitem o funcionamento da máquina pública.

A boa notícia é que a regra de ouro, como é conhecido o artigo 167 da Constituição, impede a saída populista de aumentar o endividamento para pagar despesas correntes, algo como pagar o aluguel todo mês tomando dinheiro emprestado do banco. Uma hora quebra.

Em 2018, o governo precisará de R$ 184 bilhões emprestados a mais do que o permitido pela regra de ouro para continuar a funcionar. Medidas extraordinárias, como a devolução dos recursos emprestados ao BNDES, podem permitir fechar as contas no ano que vem.

Essas medidas, porém, têm vida curta. Como faremos nos anos seguintes, com o agravante de que os gastos obrigatórios, sobretudo da Previdência, vão continuar a aumentar? Reformas adicionais serão necessárias para equilibrar as contas. Caso contrário, o resultado será a paralisia do setor público.

A campanha de 2018 será um bom teste do que nos espera. Vamos continuar com as reformas necessárias para preservar a rota? Ou repetiremos o hábito de deixá-las de lado quando as coisas se acalmam, optando pela criatividade? Nesse caso, teremos uma encontro marcado com a volta da crise.

Um país engessado por boas intenções - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 01/10

Reativação melhora receita, mas reformas são essenciais para frear deterioração das contas

Campeão da dívida pública entre os maiores emergentes, o Brasil caminha para o desastre, se o governo continuar sem meios legais e políticos para conter a degradação de suas contas. A dívida bruta do governo geral bateu em R$ 4,77 trilhões em agosto. Isso equivale a quase um quarto (73,7%) do produto interno bruto (PIB), o valor dos bens e serviços finais produzidos em um ano. Os brasileiros teriam de trabalhar quase nove meses, sem nada consumir, se fosse preciso pagar de uma vez o estoque de papagaios emitidos pelo setor público. A expressão governo geral indica as administrações da União, dos Estados e dos municípios, mas a maior parte do problema é do poder central. Na média, a dívida bruta dos governos, no mundo emergente, continua na vizinhança de 50% do PIB. No mundo rico há Tesouros muito mais endividados, mas sua classificação de risco é muito melhor que a do Brasil e a rolagem de seus compromissos é feita com juros muito baixos – até negativos, em alguns casos.

Conter o endividamento público é um dos objetivos centrais da estratégia econômica inaugurada em Brasília no ano passado. Mas o peso da dívida crescerá ainda por alguns anos, pelo menos até 2022, se o esforço de ajustes e reformas continuar mais ou menos de acordo com os planos. A recuperação da economia, iniciada neste ano, também ajudará, proporcionando maior arrecadação de impostos e contribuições. Isso já ocorre. Todos os tributos federais baseados em produção, consumo, importação e renda geraram em agosto receita maior que a de um ano antes, descontada a inflação. Reforçada também por alguns itens extraordinários, essa arrecadação superou por 17,7% a de agosto de 2016.

Mas seria imprudente depender apenas da arrecadação e do controle das chamadas despesas discricionárias para consertar as contas federais. O Orçamento é pouco flexível e tornou-se mais engessado com a expansão dos gastos obrigatórios, como a folha salarial dos servidores. A irracionalidade do Orçamento é conhecida há muito tempo e resulta em grande parte das boas intenções dos constituintes de 1988.

A essas boas intenções outras se acrescentaram nos anos seguintes, graças ao trabalho de legisladores pouco preocupados com a aritmética, com a limitação física de recursos e, afinal, com a eficácia das políticas públicas.

O excesso de vinculações é uma consequência dessa farra legislativa. Se vinculações funcionassem, educação e saúde seriam muito melhores, no Brasil, do que têm sido nos últimos anos. Mas verbas carimbadas normalmente produzem efeitos muito diferentes: dispensam os ministérios de produzir bons planos e projetos, facilitam a corrupção e resultam, com frequência, em ações improvisadas para o mero cumprimento, no fim de cada ano, da obrigação de gastar. Se é preciso fechar a conta, pintem-se muros de escola, mesmo sem necessidade, ou se comprem ambulâncias, talvez com a ajuda de um superfaturamento. Não são exemplos fictícios.

Vinculações impedem ou dificultam a revisão periódica de prioridades, desestimulam o bom planejamento e ocasionam enormes desperdícios. No limite, a boa administração dependeria de uma revisão frequente de todas as contas e de todas as linhas de ação, mas o orçamento de base zero tem sido, na prática, apenas um ideal. Sem poder alcançá-lo, as administrações deveriam pelo menos operar com flexibilidade suficiente para se adaptar a novos objetivos, enfrentar com eficiência problemas conjunturais e obter um alto retorno de cada real aplicado. Mas a rigidez orçamentária provém também de outras causas.

No Brasil, a maior parte dos gastos obrigatórios é formada por dois grandes itens, os benefícios previdenciários e a folha de salários e encargos. Neste ano, a despesa do governo central, a preços de agosto, chegou a R$ 819,20 bilhões. A soma daqueles dois itens correspondeu a R$ 536,58 bilhões, quase dois terços do total. A Previdência pagou R$ 349,71 bilhões e a folha de pessoal e encargos consumiu R$ 186,87 bilhões. Os demais gastos obrigatórios totalizaram R$ 131,86 bilhões.

Mesmo com a economia em crescimento, as despesas incontornáveis cresceram mais velozmente que a receita líquida até 2014, quando a relação entre as duas grandezas chegou a 85,4%. A situação piorou nos anos seguintes. Em 2016 aqueles gastos corresponderam a 101,3% da receita. Nos 12 meses até agosto deste ano a proporção atingiu 104%.

Mesmo com a recuperação econômica e uma expansão mais veloz dos negócios, o quadro deverá piorar nos próximos anos. O PIB deve aumentar 0,7% em 2017 e 2,6% em 2018, segundo as novas projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pouco mais otimistas que as do mercado. As despesas obrigatórias, principalmente da Previdência, continuarão sufocando as finanças públicas e, como consequência, dificultando o avanço da produção e da criação de empregos.

Ao lado de um esforço continuado para ajustar o Orçamento, reformas serão indispensáveis para a reconstrução da economia nacional. A da Previdência é a mais urgente, como indicam as projeções de especialistas em finanças públicas – ignoradas ou menosprezadas por boa parte dos congressistas. Mas outras mudanças também serão necessárias tanto para a melhora das condições fiscais quanto para o aumento da eficiência econômica. É preciso cuidar de uma ampla revisão tributária e pensar na reestruturação do Orçamento.

Num país aberto a debates sérios e consequentes, esse conjunto de temas teria destaque na campanha eleitoral do próximo ano. Mas é difícil, neste momento, admitir essa possibilidade. Parece mais provável a predominância de candidatos prometendo gastança, protecionismo comercial, juros baixos e criação de empregos a partir do nada. Se o Brasil, em seguida, recair na crise, a culpa terá sido de quem tentou promover o ajuste.

*Jornalista

Um imenso tribunal - LUIZ WERNECK VIANNA

ESTADÃO - 01/10

Banir a atividade política é nos deixar entregues a um governo de juízes ou militar


Em outros tempos bicudos, não tão distantes desses que aí estão, celebrado poeta popular lançou a profecia de que, no andar da carruagem em que nos encontrávamos, iríamos tornar-nos um imenso Portugal. A predição não se cumpriu. Aliás, Portugal está muito bem, e as reviravoltas do destino nos conduziram a um lugar de fato maligno, convertendo-nos num imenso tribunal. Vítimas da nossa própria imprevidência, testemunhamos sem reagir a lenta degradação do nosso sistema político – salvo quando o Parlamento introduziu uma cláusula de barreira a fim de evitar uma malsã proliferação de partidos, a maior parte deles destituída de ideias e de alma, barrada por uma intervenção de fundo populista por parte do Supremo Tribunal.

A política, é lição sabida, quando não encontra nas instituições terreno que lhe seja próprio se manifesta em outros, inclusive naqueles criados para uma destinação que, por origem, não lhe deveriam caber. Recentemente, vimos como a intervenção da corporação militar que pôs fim ao regime da Carta de 1946, ao banir os partidos e as instituições de representação do povo, trouxe para si o monopólio da atividade política em nome da luta contra a corrupção e de uma suposta subversão comunista. Caberia a ela a missão de regeneração ética do Brasil e de assentar novos rumos para a modernização econômica do País.

Mas os militares não eram ingênuos nas coisas da política. Força decisiva na fundação da nossa República, tornaram-se desde então um poder moderador de fato, tendo acumulado longa experiência no trato com a nossa complexa realidade social e política – a trágica intervenção militar em Canudos serviu-lhes de amarga pia batismal e o tenentismo, nos anos 1920, de um processo de seleção dos seus quadros para o exercício do poder que lhe viria, parcialmente, com a revolução de 1930 e de forma plena com o golpe militar em 1964.

Com esse lastro, foram capazes de estabelecer bases sólidas para o regime autoritário que implantaram e alianças políticas que reforçassem seu domínio. Nessas alianças se mantiveram os seus princípios, em particular os que definiam como objetivos nacionais permanentes, não foram principistas, atentos às consequências e à realidade em torno. Sob essa orientação fizeram política com as oligarquias que a eles se associaram e as favoreceram para a realização de tópicos significativos de sua agenda de modernização capitalista do País – no caso, exemplar o agronegócio – e lhes assegurarem bases para sua permanência no poder. Com sua atenção à política, souberam reconhecer a hora da retirada quando seu regime se viu assediado por irrefreável onda de protestos vindos da sociedade civil e da oposição que lhe fazia o MDB no Parlamento, admitindo participar da transição que, mais à frente, nos traria a democracia da Carta de 88, que, por sinal, ora nos cumpre defender das ameaças que a rondam.

Hoje, mais uma evidência do desamor da nossa história pelas linhas retas – nascemos tortos, filhos quasímodos da combinação de uma institucionalidade política modelada nos princípios do liberalismo com a escravidão –, estamos novamente sob o risco de recair no domínio de corporações estranhas à política, no caso as das que se originam no Terceiro Poder, cujo gigantismo entre nós já extrapolou em muito os papéis que o notável jurista Mauro Cappelletti admitia como legítimo nas democracias modernas.

Com efeito, a atual invasão do Poder Judiciário sobre as dimensões da política e das relações sociais não encontra paralelo em outros casos nacionais. A categórica judicialização da política, que até há pouco designava uma patologia mansa, no caso brasileiro perdeu acuidade, pois se vive à beira de um governo de juízes, a pior das tiranias, visto que dela não há a quem recorrer. Não se trata agora de um juiz intervir com leituras criativas da lei em casos singulares, uma vez que seu objeto é a própria História do País que se encontra em tela – o Brasil necessitaria, na linguagem dos procuradores, secundada por vários magistrados, “ser passado a limpo”.

Tal operação, que lembra as malfadadas vassouras de Jânio Quadros, não separa alhos de bugalhos e deixa em seu rastro um território infértil para a política num país de mais de 200 milhões de habitantes que não pode prescindir dela para enfrentar suas abissais desigualdades sociais e regionais. Decerto que a chamada Operação Lava Jato tem produzido efeitos benfazejos e, nesse sentido, precisa ser preservada, desde que expurgada dos elementos messiânicos que a comprometem e têm caracterizado a ação de muitos dos seus protagonistas, inebriados pelos aplausos dos incautos e dos pescadores em águas turvas.

O gênio de Gilberto Freyre já nos tinha advertido de que a especificidade da civilização brasileira se caracterizava em pôr antagonismos em equilíbrio, tópica bem estudada por Ricardo Benzaquen de Araújo em seu belo Guerra e Paz. Aqui, a tradição e o arcaico têm convivido com o moderno e a modernização, e temos sabido tirar proveito dessa ambiguidade para forjar nossa civilização. Somos, pela natureza da nossa formação, compelidos às artes da dialética, e a ética puritana nunca medrou entre nós, que mantemos parentesco com o barroco – tema bem desenvolvido por Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (B.H, UFMG, 1998).

Entre nós, equilibrar antagonismos foi operação que coube à política, cenário bem diverso do caso americano, que, no celebrado argumento de Tocqueville, reduziu a um mínimo, pela feliz conformação da sua formação histórica, a intermediação dessa dimensão na vida social, dado que estaria animada desde sua origem por práticas de auto-organização. Banir ou suspender a atividade política a pretexto de moralizá-la é nos deixar no vácuo, entregues a um governo de juízes ou a uma recaída num governo militar, e esse é um desastre com que contamos tempo para evitar.

* Sociólogo, PUC-RJ

Essa gente incômoda - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA
A 'fé evangélica', em grande parte, é composta do 'tipo moreno', ou 'brasileiro', que vem sendo visto com crescente horror pela gente bem do Brasil

Quem é contra a liberdade de religião no Brasil? Mais gente do que você pensa, com toda a certeza, embora quase ninguém vá dizer isso em público, é claro — provavelmente não dirá nem mesmo no anonimato de uma pesquisa de opinião. Mas é preciso ser realmente muito bobo, ou muito hipócrita, para achar que está tudo em ordem com a liberdade religiosa no Brasil quando as nossas classes mais altas, que também se consideram as mais civilizadas, sentem tanto desprezo, irritação e antipatia pela religião que mais cresce no país. Trata-se da “fé evangélica”, como se chama, para simplificar, a vasta constelação de igrejas, seitas e cultos de origem protestante que nas estatísticas já reúnem um terço da população brasileira — e na vida real podem estar além disso. Esse povo, em grande parte do “tipo moreno”, ou “brasileiro”, vem sendo visto com horror crescente pela gente bem do Brasil. Sabe-se quem são: os mais ricos, mais instruídos, mais viajados, mais capacitados a discutir política, cultura e temas nacionais. São geralmente descritos como esclarecidos, liberais, intelectuais, modernos, politizados, sofisticados e portadores de diversas outras virtudes. Toda a esquerda nacional, por definição, está aí dentro. Também estão todos os que são de direita ou de centro — desde que não se misturem com o povo brasileiro.

Nada é tão fácil de perceber quanto um preconceito que se pretende bem disfarçado. Os meios de comunicação, por exemplo, raramente conseguem escrever ou dizer a palavra “evangélico” sem colocar por perto alguma coisa que signifique “ameaça”, “medo” ou “perigo”. Fala-­se de maneira quase sempre alarmante da “bancada evangélica” na Câmara dos Deputados — como se os parlamentares ligados às igrejas formassem um corpo estranho, infiltrados ali por alguma conspiração não explicada. São tratados como uma coisa só — e ruim. Fala-se do “risco” de aumento da bancada evangélica nas próximas eleições. Há um escândalo permanente no Brasil de “primeiro mundo” diante de suas posições em matéria de família, sexo, crime, polícia, drogas, educação, moral, propriedade privada e mais umas trezentas outras coisas. Os evangélicos são vistos ali como retrógrados, reacionários, repressores, fascistas e inimigos da democracia. Já foram condenados como machistas, homofóbicos e fanáticos. Defendem a “cura gay”. São a “extrema direita”. Estão definitivamente fora do “campo progressista”.

Naturalmente, argumenta-se que essa condenação universal não tem nada a ver com religião; se os evangélicos pensassem o contrário do que pensam em cada uma das questões aqui citadas, por exemplo, não haveria nenhuma objeção e a população estaria liberada pelas classes intelectuais para rezar nas Assembleias de Deus, na Catedral da Bênção ou nas Igrejas do Evangelho Quadrangular. Ou seja: o problema dos evangélicos está nas suas convicções como cidadãos. No fundo, é a mesma história de sempre. O que atrapalha o Brasil, na visão das pessoas que se consideram capacitadas a pensar, são os brasileiros. O povo brasileiro, de fato, é muitas vezes inconveniente — principalmente quando vota. Os intelectuais, preocupados, lamentam o crescimento da bancada evangélica — mas raramente se lembram de que ela só cresce porque cresce o número de eleitores evangélicos. Pode ser uma pena, mas toda essa massa de gente que vai ao templo é formada por brasileiros que têm direito de votar, votam em quem quiserem, e o seu voto, infelizmente para a sensibilidade da elite, vale tanto quanto o voto dos pais que colocam seus filhos no Colégio Santa Cruz.

Há muita indignação, também, com a escroqueria aberta, comprovada e impune que é praticada há anos em tantos cultos evangélicos espalhados pelo Brasil afora. É um problema real. Pastores, bispos e outros peixes graúdos tomam dinheiro dos fiéis, sob a forma de donativos, em troca de ofertas a que obviamente não podem atender: desaparecimento de dívidas, expulsão de demônios, cura de doenças, enriquecimento rápido, eliminação do alcoolismo, dependência de drogas e outros vícios — enfim, qualquer milagre que possa ser negociado. Diversas igrejas se transformaram em organizações milionárias, e muitos dos seus líderes são charlatães notórios — alguns deles, aliás, já chegaram a ser presos por delitos variados em viagens ao exterior. Estão acima do Código Penal e da Lei das Contravenções em matéria de fraude, trapaça e quaisquer outras formas de estelionato que seus advogados consigam descrever como atividade religiosa; não podem ser investigados ou processados por enganar o público, pois são protegidos pela liberdade de culto. São o joio no meio do trigo, e há tanto joio nas igrejas evangélicas que fica difícil, muitas vezes, achar o trigo.

Ninguém realmente sabe o que fazer de prático a respeito disso. É possível separar religião de vigarice? Possível, é — pensando bem, é perfeitamente possível. O impossível é escrever leis que resolvam o problema de maneira eficaz, racional e coerente com a democracia. Não se conhece nenhum regulamento capaz de distinguir donativos bons de donativos ruins — pois o foco da infecção está aí, no tráfego de dinheiro do bolso dos fiéis para o caixa das igrejas. Como proibir alguns e permitir outros, sem abrir uma discussão que vai durar até o dia do Juízo Final? Ao mesmo tempo, sabe-se quanto é inútil baixar decretos que obriguem as pessoas a ser espertas, da mesma forma que não dá para obrigá-las a ser felizes. O que fazer se o cidadão acredita que vai ficar rico, ou obter algum prodígio parecido, pagando o seu dízimo ao pastor? Os postes das cidades brasileiras também estão cobertos de cartazes com promessas de benefícios do tarô, dos búzios, da “amarração” garantida — isso para não falar da cura da calvície, do emagrecimento em sete dias e da eliminação de multas de trânsito. Na melhor das hipóteses, é propaganda 100% enganosa, mas fica assim mesmo — e talvez seja bom que fique, pois imagine-se o que acabaria saindo se nossos poderes públicos tentassem se meter nisso.

É um desapontamento, sem dúvida — e as cabeças corretas deste país ficam impacientes com a frustração de ver os cultos evangélicos crescendo, enquanto em Nova York e no resto do mundo bem-sucedido as pessoas vão a concertos de orquestras sinfônicas e não admitem a circulação de preconceitos. Não podem exigir que os evangélicos sejam proibidos de existir; secretamente, bem que gostariam que eles sumissem por conta própria, mas essa não é opção disponível na vida real. Fazer o quê? Propor, por exemplo, uma comissão de filósofos da OAB, CNBB e organizações de direitos humanos, nomeada pela Mesa do Senado Federal, para separar as religiões legítimas das ilegítimas? É duro, mas o fato é que, num momento em que apoiar a diversidade passou a ser a maior virtude que um cidadão pode ter, fica complicado sustentar que no caso dos evangélicos a diversidade não se aplica. Não há outro jeito. Se você defende a “arte incômoda”, digamos, tem de estar preparado para conviver com a “religião incômoda”. Em todo caso, para quem não gosta dessas realidades, é bom saber que os evangélicos, muito provavelmente, são um problema sem solução.

A um ano do pleito - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 01/10

Pesquisas de intenção de voto realizadas um ano antes da data do pleito devem ser lidas com cautela. Cuidados e ressalvas são ainda mais recomendáveis tratando-se da próxima disputa presidencial.

O quadro de candidatos ainda não se definiu, nem as reais possibilidades da miríade de nomes em cena. O país atravessa um período de instabilidade política e mal superou a brutal recessão econômica; sobressaltos causados por episódios de corrupção atingem políticos de diferentes partidos e inclinações ideológicas.

É natural que nesse cenário instável e especulativo apareçam com destaque políticos com imagem já consolidada no imaginário do eleitorado —e que surjam, em contrapartida, alguns franco-atiradores.

Não surpreende, portanto, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lidere os cenários eleitorais apresentados pela pesquisa Datafolha que vem à luz neste domingo (1º). Tampouco que Marina Silva (Rede) fique em vantagem quando o nome do petista é retirado da lista de postulantes.

São nomes que, por razões diversas, se mantêm vivos na memória de parte significativa da população. Lula, cuja candidatura é cada vez mais incerta, por ter governado em época de vacas gordas; Marina, pela presença nos últimos dois pleitos –e por não ter sido envolvida em escândalos.

O petista, contudo, tem a maior rejeição entre todos os candidatos. Somam 42% os que dizem que não votariam em Lula de jeito nenhum, percentual bem acima dos 26% que descartam Marina.

Além de restrições partidárias, decerto contribui para o repúdio ao ex-presidente a importância atribuída pelos entrevistados à ficha limpa dos postulantes.

O vice-campeão em rejeição, com 33%, é Jair Bolsonaro (PSC), o mais cotado dos franco-atiradores. A elevada intenção de voto no deputado, que defende teses de conservadorismo tosco, pode ser em parte explicada pela atmosfera de repulsa aos políticos e pela ausência de uma candidatura de centro-direita mais definida.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, um dos nomes que poderiam ocupar essa faixa, ainda disputa com o prefeito paulistano João Doria a candidatura do PSDB. Nos diversos cenários, ambos aparecem em posição equivalente, sem superar 10% das intenções.

É plausível que candidaturas moderadas venham a conquistar terreno na disputa. Afinal, parte relevante do eleitorado evita os extremos do espectro ideológico, aproximando-se do centro. Se confirmada, a expectativa de aceleração da economia no próximo ano também concorre, em tese ao menos, para esvaziar radicalismos.

Sem reformas, desastre fiscal - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 01/10

Os bons efeitos da recuperação já aparecem na arrecadação, mas o governo terá de batalhar por meta fiscal


Os bons efeitos da recuperação econômica, lenta, mas firme, já aparecem na arrecadação federal, na forma de tributos cobrados sobre a produção, o consumo, a renda e a importação, mas o governo ainda terá de batalhar para atingir a meta fiscal prometida para o ano. Parte das contas está no azul. Tesouro e Banco Central (BC) tiveram superávit primário de R$ 7,29 bilhões em agosto e de R$ 27,47 bilhões em oito meses, mas esses valores ficaram longe de compensar o péssimo desempenho financeiro da Previdência, com déficit de R$ 16,89 bilhões no mês e de R$ R$ 113,27 bilhões no ano. Feita a soma, as contas do governo central ficaram no vermelho em R$ 9,60 bilhões no mês passado e em R$ 85,80 bilhões de janeiro a agosto. Os números deixam clara, mais uma vez, a urgência da reforma do sistema previdenciário. Sem isso, as finanças federais continuarão piorando nos próximos anos, mesmo com aumento dos negócios e severo controle dos gastos da administração.

Foi nítida, em agosto, a recuperação da receita, ocasionada principalmente pela melhora da atividade econômica. A arrecadação líquida do mês, de R$ 92,04 bilhões, foi 19,7% maior que a de um ano antes, descontada a inflação. O total acumulado no ano, líquido de transferências, chegou a R$ 729,28 bilhões, ficou 0,7% abaixo do obtido de janeiro a agosto de 2016. Mas a despesa total no ano, de R$ 815,09 bilhões, foi 0,3% superior à de igual período do ano anterior. Na mesma comparação, os gastos da Previdência aumentaram 6,7%, ou 5,3% se for desconsiderada a antecipação de pagamentos de precatórios.

Todos esses números são calculados com os critérios do Tesouro. Indicam resultados primários, sem contar, portanto, o custo dos juros. Resumem receitas e despesas do governo central, sem consideração dos encargos da dívida pública e das necessidades de financiamento. Não são estritamente comparáveis com os do ano anterior, porque a liquidação de alguns precatórios foi adiantada. Sem essa antecipação, o saldo primário acumulado em 12 meses seria um déficit de R$ 154,7 bilhões até agosto. A meta do ano é um déficit primário igual ou inferior a R$ 159 bilhões. O alvo original, recentemente revisto, era um déficit de R$ 139 bilhões.

O governo tem conseguido conter uma parte dos gastos, mas o avanço das despesas obrigatórias seria suficiente para ocasionar o déficit primário. Em 2008, essas despesas corresponderam a 74,2% da receita líquida. A proporção cresceu nos anos seguintes e chegou a 101,3% em 2016. Nos 12 meses até agosto deste ano, os gastos obrigatórios equivaleram a 104% da receita líquida.

Se todo o resto do dispêndio fosse zerado, ainda haveria déficit. A maior parte dos desembolsos incontornáveis corresponde a salários, encargos sociais e benefícios previdenciários. Estes são os mais pesados e as contas previdenciárias são aquelas com mais clara tendência de desajuste crescente.

O quadro geral do setor público – União, Estados, municípios e estatais – continua complicado, apesar do resultado positivo apresentado pelos governos estaduais e municipais. Esses cálculos são do Banco Central (BC) e refletem as necessidades de financiamento.

Em agosto, o saldo consolidado foi um déficit primário de R$ 9,53 bilhões. No ano, o resultado negativo chegou a R$ 60,85 bilhões. O desempenho positivo das administrações regionais apenas atenuou, no conjunto, as dificuldades fiscais do governo central, com déficits primários de R$ 9,92 bilhões no mês e R$ 76,65 bilhões no ano, explicáveis basicamente pelo enorme desajuste da Previdência.

Incluídos os juros, obtém-se o resultado nominal. O conjunto do setor público acumulou déficit nominal de R$ 331,93 bilhões no ano. O saldo negativo atingiu R$ 581,31 bilhões em 12 meses, soma equivalente a 8,98% do Produto Interno Bruto (PIB), um dos piores balanços do mundo.

A dívida bruta do governo geral – União, Estados e municípios – chegou a R$ 4,77 trilhões, 73,7% do PIB, com tendência de aumento enquanto o setor público for incapaz de pagar pelo menos os juros. Sem reformas, é fácil prever o desastre.

A necessária defesa da democracia - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 01/10
Percebe-se que o terreno está sendo adubado para o trânsito, na campanha do ano que vem, de salvacionistas, populistas por definição e antidemocratas

A democracia não passa por bom momento no planeta. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill tinha, entre suas melhores frases, a de que “a democracia é a pior forma de governo, excetuando as demais”. Era e é verdade, como ficou provado principalmente no pós-guerra. A dobradinha de regime político e sistema econômico liberal venceu o duelo da guerra fria, ganha pelo Ocidente devido à incapacidade de o modelo comunista soviético e aparentados gerarem renda e emprego, ainda obtendo ganhos de produtividade que dessem sustentação ao crescimento equilibrado das economias. E sem liberdades.

A debacle soviética simbolizada pela derrubada do Muro de Berlim, em 1989, levou analistas apressados a decretar o “fim da História”, a partir do qual o modelo democrático e de economias de livre mercado reinaria para todo o sempre. Não foi assim.

A democracia e modelos econômicos abertos são mantidos em risco. É preciso defendê-los, nos embates que continuam. A experiência recente brasileira é prova de como sonhos dirigistas e autoritários — são sinônimos — persistem: com Dilma Rousseff sucessora de Lula, o lulopetismo pôde aplicar a velha cartilha do PT e enterrou a economia brasileira na maior recessão da história (mais de 7% de queda do PIB em dois anos, 2015/16, com a expulsão de 14 milhões do mercado de trabalho).

Tudo ainda foi condimentado pelo mais amplo esquema de corrupção de que se tem notícia no país, montado a partir do PT, mas pluripartidário, a ponto de também atrair oposicionistas do PSDB. Crise econômica e corrupção são, por si sós, tóxicos para o sentimento democrático das populações. Quando misturados, têm elevado poder de corrosão.

Os exemplos no exterior são múltiplos, encontrados na esteira do crescimento da onda nacional-populista que passa pelo trumpismo americano, pelo projeto de fechamento das fronteiras do Reino Unido e separação da União Europeia (Brexit), bem como pelo fortalecimento de forças de extrema-direita, para citar os casos de maior repercussão, na França e Alemanha. Mau momento para a democracia.

Na América Latina — reserva histórica de caça de populistas de direita e esquerda —, estudo do Latinobarómetro, ONG chilena, detecta um declínio constante do apoio à democracia desde 1995. No Brasil, atesta, o apoio à democracia caiu, em 2015, de 54% para 32%, e ainda 55% dos brasileiros se declararam propensos a aceitar um governo não democrático, se ele resolver os problemas da população. Tudo ilusão, demonstra a História.

Somando-se a isso o ingrediente da desmoralização dos políticos, percebe-se que o terreno está sendo adubado para o trânsito, na campanha do ano que vem, de salvacionistas, populistas por definição e antidemocratas. O Brasil não está livre da onda nacional-populista.

Há, porém, em curso um difícil mas decisivo processo de depuração ética das instituicões, a ser defendido pela sociedade como forma de garantir espaço para uma importante renovação dos quadros políticos em 2018. É possível e devem-se erguer barreiras contra a sedução das vias rápidas, autoritárias, de solução dos problemas. Não deu certo em 37, 64 e 68, e não funcionaria novamente.