terça-feira, setembro 19, 2017

Insultar Trump é uma forma de onanismo: satisfaz mas não convence - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 19/09

Comecei e não acabei o último livro de Hillary Clinton. Razões de saúde. Como aguentar as explicações de Hillary para a sua derrota contidas em "What Happened"?

Verdade que não tinha esperanças: honestidade é palavra que não combina com a senhora. Mas o livro só pode ser produto de uma mente enlouquecida.

Segundo Hillary, a derrota não é culpa sua. É culpa de Barack Obama, James Comey, Bernie Sanders, Vladimir Putin. E ainda dos "deploráveis" de Donald Trump, do machismo reinante, da mídia (palavra de honra: da mídia!). Será que a esquerda americana acredita nessa farsa?

Não acredita e Mark Lilla é a prova viva. Sei que tenho falado muito de Lilla. Inevitável. A grande distinção que existe não é entre esquerda ou direita, ao contrário do que pensam os débeis. É entre inteligência ou falta dela. Lilla é um dos mais brilhantes ensaístas da sua geração. Ser liberal de esquerda é um pormenor.

Mas não em "The Once and Future Liberal: After Identity Politics". O ano ainda não acabou. Mas arrisco dizer que é o melhor texto político que li em 2017.

Lilla não tem a covardia e a mendacidade de Hillary. Sim, a "nova esquerda" está em crise e insultar Trump (e os "deploráveis") é uma forma de onanismo: satisfaz, mas não convence. Os problemas da esquerda estão na própria esquerda.

Tese do autor: quando olhamos para o século 20, encontramos dois grandes momentos. O primeiro pertence a Franklin Roosevelt. O segundo a Ronald Reagan.

Roosevelt surgiu no meio do colapso econômico e da ascensão dos fascismos. Que fez ele? Deu um propósito comum aos americanos na luta por igualdade econômica, emancipação civil –e na derrota do totalitarismo.

O "New Deal", sob diferentes máscaras, prolongou-se até a década de 1970. Quando mostrou os seus limites: despesa incontrolável, carga fiscal idem, burocracia e regulação sufocantes.

Reagan ofereceu a segunda grande narrativa: o governo não era a solução para os problemas do país; o governo era parte do problema. Solução? Libertar a economia americana e a iniciativa individual rumo a uma América rica e confiante.

Perante esse segundo momento, que fizeram os "liberais" de esquerda? Um pouco de história: até a década de 1960, a base do Partido Democrata estava no "proletariado" (para usar a expressão do tio Karl) e nos trabalhadores rurais. Mas a contracultura submergiu essa tradição com seu romantismo libertário.

A principal consequência desse movimento foi a emergência de uma "política de identidade" que derrotou, digamos, a "identidade dual" que sempre definiu os nativos. Por um lado, eles eram americanos; por outro, e em decorrência do primeiro axioma, eles podiam ser o que quisessem (a situação dos negros é um caso à parte, claro).

A "política de identidade" apagou essa dupla dimensão: o indivíduo não é parte do todo. Ele passou a ser separado do todo pelo "narcisismo das pequenas diferenças". Ele é negro, gay, mulher, índio, anão – e não vai além do seu estreito horizonte. Isso significa que a política, para ele, é um assunto estritamente pessoal (e não republicano, no sentido cívico da palavra).

Essa cartilha foi promovida pelas universidades –e, em especial, pelos antigos alunos românticos da década de 1960, que, frustrados com a "realidade" da década de 1980, regressaram à base na qualidade de professores. E com duas mensagens letais: os partidos não são de confiança (melhor criar "movimentos") e as únicas causas políticas que valem a pena são aquelas que realizam nossas aspirações identitárias.

Por outras palavras: os liberais "balcanizaram-se" em tribos que não contam para nada. E o Partido Democrata foi arrastado para essa armadilha. Azar. A política, lembra Lilla, não é uma sessão contínua de terapia; é uma luta para conquistar e exercer o poder. Aliás, sem poder, os "direitos das minorias" são conversa de Facebook.

Só que a conquista e o exercício do poder implicam olhar para o mundo que existe "lá fora": para o "proletariado" e os trabalhadores rurais que não desapareceram com o arco-íris. Como o autor afirma, em imagem brilhante, é um mundo onde o wi-fi não existe, o café é fraco e os jantares não rendem boas fotos no Instagram.

Hillary Clinton perdeu porque ignorou e insultou os problemas e as aspirações desse mundo. Trump venceu pela razão oposta.

Se a "nova esquerda" não aprende a lição com a "velha esquerda", paz à sua alma.


Valores - CARLOS ANDREAZZA

O Globo - 19/09

Ainda chegará o dia em que as adulterações nos significados de família e pátria, por exemplo, apontarão, antes fosse ao exótico, para algum tipo de intolerância


Palavras — eis o primeiro clichê deste escrito — têm sentido. Há que ter apuro no manejo. E atenção, muita, à fraude. Uma sociedade já terá pilares fundamente ruídos quando desviado estiver o norte das palavras — e os que as usam não forem capazes de perceber.

A primeira corrupção, talvez mesmo a irreversível, é a do idioma — um minar lento, porém perene. Percebemos?

Ainda chegará o dia — não exagero — em que a palavra família será preconceituosa. Antes, será conceito elitista — e isso não tarda. Por ora, é apenas termo cafona — fora de moda. Como pátria. A anacrônica pátria, não obstante estejam ainda de pé — embora desguarnecidas — as fronteiras que nos demarcam o segundo pertencimento. O primeiro é, ora, ora, a família.

F-A-M-Í-L-I-A. Isso ainda será ofensa. (Hoje já é provocação.)

Ainda chegará o dia em que as adulterações nos significados de família e pátria, por exemplo, apontarão — antes fosse ao exótico — para algum tipo de intolerância, e em que a defesa do valor familiar e da ideia de patriotismo será recurso fascista, segundo, claro, a acepção deturpada hoje em influente ascensão. Chegará o dia em que pertencer não poderá mais decorrer do acaso, do ventre, naturalmente, pois será apanágio exclusivo de grupos de pressão, consequência de formulações teóricas e de empenho construtivo. Chegará o dia em que ser somente poderá advir de militância comprovada.

P-Á-T-R-I-A. Isso ainda será terrorismo. (Hoje é só Bolsonaro.)

Há método nesse rebaixamento, nessa distorção, nessa descaracterização; na forma como expressões da identidade orgânica — daquilo que compõe nosso rebanho imediato — são estigmatizadas, logo esvaziadas para que emerja o desapego cosmopolita artificial em que ninguém é de ninguém, charco moral onde se instala a forja das igualdades para exercício de poder. Não nos iludamos, leitor. Há quem instrumentalize o saque à imagem civilizadora segundo a qual pátria é casa, porto seguro. Há quem lucre em dilapidar, em diminuir como clichê barato, a representação — a de mais fácil entendimento — que associa pátria a família.

Eu tenho família — meu pequeno país. (Isso ainda será contravenção penal.) Teria, mesmo que não tivesse. Família é literatura de formação; é romance épico. Gosto especialmente da maneira como se costuram as mitologias familiares. Não somos muito mais do que a força espiritual desses enredos tramados — combinados. Pátria é, antes e acima de tudo, o país — afetivo, felizmente imaginário — em que abrigamos as nossas histórias, em que cultivamos nossos antigos.

Pátria é, pois, memória. Ou haveria uma se não pudéssemos nos lembrar ao menos de ontem? Pátria é conservação; o que julgamos relevante e passamos adiante — o que nos importa legar. Ou haveria uma se, ainda que capazes de lembrar, não pudéssemos registrar, documentar, preservar, codificar e mesmo cultuar nossa experiência, nosso passado?

Meu patriotismo — sou patriota — é produto amoroso da experiência humana, a matéria de nossos feitos curtida sob os raios da existência. Que jamais nos percamos da sensação pacificadora, ao mesmo tempo responsável, de que cá estamos — com conforto, com segurança — graças aos esforços dos ancestrais, dos que plantaram o trigo para que comêssemos o pão. Que jamais nos percamos da gana por honrar – por preservar — esse patrimônio. Isso é pátria.

Que jamais nos percamos da noção de que houve sempre quem — mesmo sem nos conhecer, muito antes de existirmos — pensasse em nós. Isso é família. O ideal de família — o de que haverá quem aqui esteja, com ou sem meu sangue, quando não mais eu. Que jamais nos percamos da compreensão de que sempre houve quem trabalhasse pelas gerações futuras. Eu penso nisso; nesse testamento cuja propriedade inscrita, a herança, é o conhecimento — aquilo que, testado e desafiado, prevaleceu às provações dos anos. O próprio substrato do triunfo humano — valorizo isso.

Penso, particularmente, no porvir da pequena brasileira que tenho em meu modesto país — a cuja tirania me entrego sem resistir. Contra todas as outras: luto. Se há uma guerra em que me alisto é em defesa da família, a que herdei, a que formei, aquela possível, a pátria verdadeiramente universal. Valores, afinal, não caem das árvores. São as árvores. Árvores crescidas com os séculos e apesar do peso dos séculos: raras de cultivar, cuja maturidade é provada pelas chuvas, pelos ventos, pelas tempestades, mesmo pela inclemência do mais belo sol. Ainda assim, fáceis de derrubar — qualquer motosserra espertinha, à pilha, faz estrago na obra milenar dos que nos antecederam.

Pátria é — outra palavra proscrita — tradição. O próprio livro de nossa aldeia, lá onde a mão dos tempos escreve as linhas, não raro tortas, de nosso caminho, sendo cada página preenchida a ocupação produtiva, criativa, de nosso chão. Nós avançamos — a baliza da tradição como farol. Avançamos, em alerta, com humildade, conscientes: porque o que longamente se constitui pode rapidamente se corromper. Avançamos, com coragem. Singramos o mar revolto da existência, com a esperança de que a calmaria não seja apenas sorte — mas conquista.


As tetas do Estado e a corrupção - GIL CASTELLO BRANCO

O GLOBO - 19/09
Oligarquias políticas e um grupo restrito de empresários usufruem de vantagens e privilégios, às custas do interesse público

A economista americana Susan Rose-Ackerman, da Universidade de Yale, é referência internacional no debate sobre corrupção. Aos 74 anos, já escreveu nove livros e dezenas de artigos sobre o assunto. Sobre o Brasil, Rose-Ackerman foi categórica: “É preciso quebrar o elo entre contratos do setor público e políticos”. Para ela, não basta punir os atuais corruptos, pois outros surgem: “É preciso identificar o que está sendo ‘comprado’ com a ‘propina’”.

Há vários anos, oligarquias políticas e um grupo restrito de empresários usufruem de vantagens e privilégios, às custas do interesse público. Como o Estado brasileiro é paquidérmico, ineficiente e corporativo, são muitas as oportunidades de “negócios” envolvendo a concessão de facilidades em troca de suborno. A lista inclui financiamentos generosos de bancos públicos, subsídios abundantes, isenções fiscais bilionárias, contratos e aditivos viciados com governos e empresas estatais, acesso facilitado a fundos públicos e áreas do patrimônio da União, programas sucessivos de refinanciamento de dívidas, dentre outras possíveis benesses.

A trajetória da família Batista, que em 1953 tinha um açougue em Anápolis e após cinco décadas passou a comandar o maior grupo produtor de proteína animal do mundo, ilustra a promiscuidade. Empresas do grupo J&F — holding controladora da JBS — bancaram campanhas de 1.829 candidatos e 28 partidos. Em troca, receberam cerca de R$ 15,5 bilhões em empréstimos e aportes de capital da CEF e do BNDES. Atualmente, o BNDES, com 21,3%, e a CEF, com 4,9%, do capital da JBS são sócios de Joesley e Wesley.

A soma dos valores que podem ser “comercializados” entre políticos e empresários é impressionante. O BNDES, por exemplo, recebeu cerca de R$ 500 bilhões do Tesouro, entre 2008 e 2014, para diversas finalidades, entre as quais fomentar “campeões nacionais” que se tornariam gigantes nos seus setores e competiriam, com vantagens, internacionalmente. Quanto valia um “padrinho” para facilitar o acesso a essa bolada?

Outro foco de corrupção envolve as 151 empresas estatais que movimentam cerca de R$ 1 trilhão por ano. Atuam com muito dinheiro, muita ingerência política e pouca transparência. Entre 2003 e 2014, dos cerca de 890 mil contratos da Petrobras, 784 mil foram celebrados com dispensa de licitação. Não por acaso, políticos, engalfinham-se por cargos em suas diretorias. O procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU, Júlio Marcelo, levanta a questão: “Por que não vender Banco do Brasil, Caixa, Petrobras e outras mais de 400 empresas públicas, federais, estaduais e municipais, que gravitam em torno do Estado Brasileiro?”

Outro elo da corrupção são os subsídios e as isenções fiscais. Enquanto o país amarga um rombo de R$ 159 bilhões, os subsídios passaram de R$ 31 bilhões em 2007 para R$ 115 bilhões em 2016. A maior parte não foi destinada à redução da pobreza, e sim a programas de incentivos ao setor produtivo, alguns justificáveis outros não. Somam-se aos subsídios as isenções fiscais que o governo concede para setores da economia e regiões do país. Para 2018, estão previstos R$ 284 bilhões que irão beneficiar empresas de pequeno porte, Zona Franca de Manaus, entidades sem fins lucrativos, desonerações nas folhas de pagamento, setor automotivo, embarcações, motocicletas, água mineral dentre muitos outros setores. De olho nesses R$ 400 bilhões anuais, empresários teriam “comprado”, pelo menos, 15 medidas provisórias, dois projetos de lei, um decreto e uma resolução do Senado. Na semana passada, Lula foi um dos denunciados pela edição da MP 471, que prorrogou incentivos fiscais para montadoras instaladas no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Mesmo com tantas facilidades, muitos não pagam o que devem. Os débitos de pessoas físicas e jurídicas com a União chegaram a R$ 1,8 bilhão em fins de 2016, sendo R$ 403,3 milhões de débitos previdenciários. Políticos que, direta ou indiretamente, devem R$ 532,9 milhões à União foram responsáveis por aprovar um novo Refis com descontos generosos de juros e multas.

Áreas do patrimônio da União, recursos dos fundos de pensão, FGTS, Finep, Fundo Partidário e fundos constitucionais, são outros instrumentos de barganha. Os 35 partidos políticos emolduram essas aberrações.

Como diz Susan Rose-Ackerman, é preciso identificar tudo o que está sendo “comprado” com a “propina”, de forma a estancar esses elos imorais. No Brasil, a solução passa pela redução do Estado. O ambiente prostituído, de boquinhas e mamatas, tem sempre o Estado no meio.

Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não-governamental Associação Contas Abertas

Só tem saída pelo Legislativo - FERNÃO LARA MESQUITA

ESTADÃO - 19/09

Nada senão a força do povo pode destravar o cabo de guerra entre Congresso e Judiciário


O Brasil não se lembra mais, mas foi só a partir de setembro de 2015 que o STF pôs o financiamento privado fora da lei, valendo para 2016. Todo o Congresso Nacional, o presidente e seu vice e os governadores eleitos em 2014 tiveram campanhas financiadas pelo padrão anterior. Os partidos arrecadavam, prestavam contas gerais ao TSE e distribuíam como quisessem o dinheiro entre seus candidatos. Estes podiam ter doações individuais também, mas, dispensados de identificar o doador inicial, não precisavam se preocupar com a origem do dinheiro (o que não significa necessariamente nem que ela fosse sempre suja, nem que todos desconhecessem sempre a origem do seu quinhão).

O projeto hegemônico do lulismo e o salto nas proporções e no significado da corrupção implicados, descritos minuciosamente na sentença do mensalão, confirmaram que condescender com esse sistema era um convite ao escancaramento das portas do inferno, e cá estamos nós. Mas essa era a lei e o País conviveu pacificamente com ela desde o fim do regime militar.

Se não se lembrar logo de que os tempos foram assim e seguir embarcando na cobrança com a lei de hoje da ausência de lei de ontem, aceitando a indiferenciação entre “contribuição de campanha” e “propina”, acostumando os ouvidos à identificação de “distribuição de verba de campanha” com “partilha de suborno”, o Brasil vai saltar para o colo de uma ditadura. Não pela adesão a esta ou àquela ideia, candidato ou partido, mas por exclusão. Como consequência da destruição, um por um, dos personagens que encarnam a instituição criada para construir saídas negociadas e consentidas e da sobrevivência apenas das que existem para exercer o poder ou impor sanções e barrar desvios à lei, seja ela qual for.

Na apuração de fatos para a imputação de responsabilidades por um determinado resultado a ordem dos fatores é tudo. A manipulação da cronologia chegou, entretanto, ao estado da arte neste país em que “nem o passado é estável”. Sim, sem forçar as leis que temos é impossível trincar a muralha da impunidade. Mas forçar a lei é desamarrar o poder, essa força telúrica que corrompe sempre e corrompe absolutamente quando desamarrada. E esse enorme risco calculado tem de ser levado minuto a minuto em consideração.

O acidente da hora introduziu em cena as “condenações premiadas”. Cada um busca leniência como pode e, graças à cumplicidade de seus pares, safou-se o procurador-geral – e seu fiel escudeiro – do flagrante delito com a penitência leve de, em 4 dias, requentar provas e espalhar denúncias para as quais tinha fechado os olhos durante 4 anos. Mas foi só um pânico passageiro. Reassegurado da sua intocabilidade, voltou ao estado de repouso a consciência de sua excelência. Desde então o País vem aprendendo rápido. Primeiro, que nada de muito essencial diferencia as partes envolvidas na negociação entre PGR e JBS para vender-nos (e uma à outra) gato por lebre e não entregar nem esse. Segundo, que sendo as culpas de quem as tem o que determina quem paga ou não pelas suas é a panela à qual pertence o culpado. E por último que quem decide qual tiro vai virar “bomba” ou ser reduzido a traque não é o calibre do fato, mas o tamanho do barulho que a televisão fizer em torno dele.

Os inocentes e os “iludidos”, que restam cada vez mais, tendem a estar, portanto, entre os que persistem em acreditar que as generalizações e a recorrência da subversão da ordem dos acontecimentos até nas altas esferas judiciárias em que se tornaram a regra sejam só erros fortuitos induzidos pela indignação. Mesmo que fossem, aliás, a consideração prática a não perder de vista nunca é que, anulados os representantes eleitos substituíveis a cada quatro anos, o que sobra são 11+1 que se nomeiam mutuamente para cargos vitalícios e que as rupturas da ordem democrática se dão, hoje, por falência múltipla das instituições de representação do eleitorado em processos espaçados em anos de “abusos colaborativos” dos que as minam por dentro e dos que as atacam por fora, até que se crie uma situação irreversível.

De qualquer jeito, se por um milagre do divino o Judiciário se tornasse blindado contra todas as tentações dessa luta pelo poder de criar e distribuir privilégios que está arrasando o Brasil, ele nada poderia fazer para nos desviar do rumo do desastre porque sua função não é reformar leis e instituições defeituosas, é impor o cumprimento das que existem do jeito que são, e as nossas estão reduzidas a instrumentos de expansão continuada e perenização dos ditos privilégios dos quais, incidentalmente, os servidores do Judiciário e do Ministério Público são quem mais nababescamente desfruta, tanto na ativa quanto depois de aposentados.

Exilado da modernidade e miserabilizado como todo povo reduzido à impotência pelos burocratas do Estado antes ou depois do Muro, o brasileiro só não encontrou ainda as palavras exatas para definir isto em que se transformou. Quem quiser que se iluda com as peripécias dos 200 da Bovespa. A arrecadação a zero é que dá o retrato do que estão vivendo os 200 milhões com a precisão implacável do supercomputador da Receita Federal, que só a Nasa tem igual. Os donos do Brasil investem em drenar o nosso bolso o que os Estados Unidos investem para conquistar o Universo, e nem um tostão a mais, e é isso que define a relação entre “nós” e “eles” que as nossas leis como são hoje impõem e o Judiciário exige.

Isso se chama es-cra-vi-dão.

Só o Legislativo pode mudar as leis. E quando faz isso obriga automaticamente o Judiciário. Por isso o Judiciário tem trabalhado com tanta fúria para comprometer a pauta do Congresso, a flechadas, com tudo menos com reformas que toquem nas leis que garantem a privilegiatura. Nada senão a força do povo pode destravar esse cabo de guerra. Mas só um ataque radical e inequívoco ao privilégio apresentado expressamente como a alternativa decente à exigência de mais sacrifícios para manter os dos marajás intactos pode tirar o povo da sua letargia.

Sob nova direção - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 19/09

As palavras de Raquel Dodge dão a esperança de que a PGR deixe de ser a fonte de instabilidade e de violação de direitos básicos que tanto mal fez ao País nos últimos tempos, sob a chefia de Rodrigo Janot

A nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, encerrou seu discurso de posse dizendo que os valores que ela defende e que definirão suas ações à frente do Ministério Público “estão na Constituição”. Ela prometeu “muito trabalho, honestidade, respeito à lei e às instituições, observância do devido processo legal e responsabilidade”. São palavras que dão a esperança de que a Procuradoria-Geral da República deixe de ser, a pretexto de dar combate sem quartel à corrupção, a fonte de instabilidade e de violação de direitos básicos que tanto mal fez ao País nos últimos tempos, sob a chefia de Rodrigo Janot.

Raquel Dodge enfatizou seu compromisso em fazer cumprir a função constitucional do Ministério Público, para assegurar que “todos são iguais e todos são livres” e que “o devido processo legal é um direito”. Pode parecer uma platitude, mas, nestes tempos em que delações de criminosos são aceitas como prova pela Procuradoria-Geral, num açodamento que compromete a defesa dos réus e os condena previamente perante a opinião pública, é adequado reafirmar o respeito por essas noções básicas do direito e do papel do Ministério Público.

Ademais, Raquel Dodge lembrou que ao Ministério Público cabe muito mais do que combater a corrupção. “Em todos os lugares do Brasil e em temas muito diferentes, há muito trabalho para o Ministério Público”, disse a nova procuradora-geral, citando a incumbência “de zelar pela higidez do sistema eleitoral, de coibir a violência doméstica, os crimes no trânsito que ceifam tantas vidas, os homicídios e os crimes de corrupção”. Ela mencionou ainda, entre os desafios da instituição, “as elevadas taxas de homicídios, a violência urbana e rural, as falhas na qualidade da escola (...) e a ausência de serviços básicos de saúde onde são necessários”.

A lembrança da múltipla gama de assuntos sobre os quais o Ministério Público deve se debruçar serve como contraponto à ênfase dada, nos últimos tempos, ao combate à corrupção. Como se sabe, vários procuradores da República, especialmente Rodrigo Janot, parecem ter entendido que sua tarefa primordial, talvez única, era depurar a política. Para os engajados nessa missão, nada havia de mais importante do que isso, e todos os políticos passaram a ser suspeitos.

Ao sugerir que as atribuições da Procuradoria-Geral da República vão muito além dos casos de corrupção, Raquel Dodge ajuda o País a sair dessa espécie de transe, em que problemas cruciais são relegados a segundo plano ante a urgência da campanha contra a corrupção – como se tudo dependesse do resultado dessa cruzada.

Raquel Dodge deixou claro que não menosprezará a luta para pegar os corruptos, mas lembrou que o Ministério Público tem muitas atribuições e que “é preciso desempenhar bem todas essas funções, porque todas ainda são realmente necessárias”.

Nota-se, nas palavras de Raquel Dodge, um alvissareiro chamamento ao equilíbrio, necessário depois de tanto radicalismo justiceiro. O contraponto entre o primeiro dia da nova procuradora-geral e o último de seu antecessor, Rodrigo Janot, não podia ser mais eloquente. Em mensagem de despedida, Janot começa citando a famosa frase da tragédia Hamlet, de Shakespeare, “há algo de podre no reino da Dinamarca”, para dizer que a Dinamarca, que “apodrecia com a corrupção moral e política”, poderia ser “o Brasil deste século”. É uma generalização absurda, da qual, obviamente, só escapam as vestais que Janot julga representar.

Ao sair, o ex-procurador-geral, que não foi à posse de Raquel Dodge alegando “motivos protocolares”, trocou suas famosas flechas por uma metralhadora. “O Brasil é nosso!”, bradou Janot, apontando sua arma para “a parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmente, ainda ocupam vistosos cargos em nossa República”. O destempero de Janot não ficou apenas nas palavras. Um de seus atos finais como procurador-geral foi enviar ao Supremo Tribunal Federal uma papelada – imagina-se que sejam processos – que o setor correspondente do tribunal não será capaz de catalogar antes de decorridos dez dias. Por que acumulou essa papelada?

Não se sabe como Raquel Dodge se sairá à frente do Ministério Público, mas será um grande avanço se não tiver seu antecessor como modelo.