terça-feira, setembro 19, 2017

Valores - CARLOS ANDREAZZA

O Globo - 19/09

Ainda chegará o dia em que as adulterações nos significados de família e pátria, por exemplo, apontarão, antes fosse ao exótico, para algum tipo de intolerância


Palavras — eis o primeiro clichê deste escrito — têm sentido. Há que ter apuro no manejo. E atenção, muita, à fraude. Uma sociedade já terá pilares fundamente ruídos quando desviado estiver o norte das palavras — e os que as usam não forem capazes de perceber.

A primeira corrupção, talvez mesmo a irreversível, é a do idioma — um minar lento, porém perene. Percebemos?

Ainda chegará o dia — não exagero — em que a palavra família será preconceituosa. Antes, será conceito elitista — e isso não tarda. Por ora, é apenas termo cafona — fora de moda. Como pátria. A anacrônica pátria, não obstante estejam ainda de pé — embora desguarnecidas — as fronteiras que nos demarcam o segundo pertencimento. O primeiro é, ora, ora, a família.

F-A-M-Í-L-I-A. Isso ainda será ofensa. (Hoje já é provocação.)

Ainda chegará o dia em que as adulterações nos significados de família e pátria, por exemplo, apontarão — antes fosse ao exótico — para algum tipo de intolerância, e em que a defesa do valor familiar e da ideia de patriotismo será recurso fascista, segundo, claro, a acepção deturpada hoje em influente ascensão. Chegará o dia em que pertencer não poderá mais decorrer do acaso, do ventre, naturalmente, pois será apanágio exclusivo de grupos de pressão, consequência de formulações teóricas e de empenho construtivo. Chegará o dia em que ser somente poderá advir de militância comprovada.

P-Á-T-R-I-A. Isso ainda será terrorismo. (Hoje é só Bolsonaro.)

Há método nesse rebaixamento, nessa distorção, nessa descaracterização; na forma como expressões da identidade orgânica — daquilo que compõe nosso rebanho imediato — são estigmatizadas, logo esvaziadas para que emerja o desapego cosmopolita artificial em que ninguém é de ninguém, charco moral onde se instala a forja das igualdades para exercício de poder. Não nos iludamos, leitor. Há quem instrumentalize o saque à imagem civilizadora segundo a qual pátria é casa, porto seguro. Há quem lucre em dilapidar, em diminuir como clichê barato, a representação — a de mais fácil entendimento — que associa pátria a família.

Eu tenho família — meu pequeno país. (Isso ainda será contravenção penal.) Teria, mesmo que não tivesse. Família é literatura de formação; é romance épico. Gosto especialmente da maneira como se costuram as mitologias familiares. Não somos muito mais do que a força espiritual desses enredos tramados — combinados. Pátria é, antes e acima de tudo, o país — afetivo, felizmente imaginário — em que abrigamos as nossas histórias, em que cultivamos nossos antigos.

Pátria é, pois, memória. Ou haveria uma se não pudéssemos nos lembrar ao menos de ontem? Pátria é conservação; o que julgamos relevante e passamos adiante — o que nos importa legar. Ou haveria uma se, ainda que capazes de lembrar, não pudéssemos registrar, documentar, preservar, codificar e mesmo cultuar nossa experiência, nosso passado?

Meu patriotismo — sou patriota — é produto amoroso da experiência humana, a matéria de nossos feitos curtida sob os raios da existência. Que jamais nos percamos da sensação pacificadora, ao mesmo tempo responsável, de que cá estamos — com conforto, com segurança — graças aos esforços dos ancestrais, dos que plantaram o trigo para que comêssemos o pão. Que jamais nos percamos da gana por honrar – por preservar — esse patrimônio. Isso é pátria.

Que jamais nos percamos da noção de que houve sempre quem — mesmo sem nos conhecer, muito antes de existirmos — pensasse em nós. Isso é família. O ideal de família — o de que haverá quem aqui esteja, com ou sem meu sangue, quando não mais eu. Que jamais nos percamos da compreensão de que sempre houve quem trabalhasse pelas gerações futuras. Eu penso nisso; nesse testamento cuja propriedade inscrita, a herança, é o conhecimento — aquilo que, testado e desafiado, prevaleceu às provações dos anos. O próprio substrato do triunfo humano — valorizo isso.

Penso, particularmente, no porvir da pequena brasileira que tenho em meu modesto país — a cuja tirania me entrego sem resistir. Contra todas as outras: luto. Se há uma guerra em que me alisto é em defesa da família, a que herdei, a que formei, aquela possível, a pátria verdadeiramente universal. Valores, afinal, não caem das árvores. São as árvores. Árvores crescidas com os séculos e apesar do peso dos séculos: raras de cultivar, cuja maturidade é provada pelas chuvas, pelos ventos, pelas tempestades, mesmo pela inclemência do mais belo sol. Ainda assim, fáceis de derrubar — qualquer motosserra espertinha, à pilha, faz estrago na obra milenar dos que nos antecederam.

Pátria é — outra palavra proscrita — tradição. O próprio livro de nossa aldeia, lá onde a mão dos tempos escreve as linhas, não raro tortas, de nosso caminho, sendo cada página preenchida a ocupação produtiva, criativa, de nosso chão. Nós avançamos — a baliza da tradição como farol. Avançamos, em alerta, com humildade, conscientes: porque o que longamente se constitui pode rapidamente se corromper. Avançamos, com coragem. Singramos o mar revolto da existência, com a esperança de que a calmaria não seja apenas sorte — mas conquista.


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