sexta-feira, maio 05, 2017

Olhos abertos, boca fechada! - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 05/05

A decadência da civilização é coisa divertida. Ainda me lembro do tempo em que a minha avó ensinava algumas regras de etiqueta. Coisas simples, como não comer com as mãos ou não olhar pasmado para as pessoas. "Menino, maneiras!" E o menino, com a dificuldade própria dos selvagens, tentou refinar-se.

Podemos dizer que usa talheres. E não tem por hábito imitar o personagem central de "Laranja Mecânica", com os olhos esbugalhados, a olhar em volta como um demente.

Pois bem: que diria a minha avó - que hoje faria 93 anos - sobre a mais recente recomendação da Universidade de Oxford aos seus estudantes?

Leio na imprensa britânica que a Unidade para a Igualdade e a Diversidade está preocupada com "microagressões racistas". Essa frase é todo um manicómio. "Unidade para a Igualdade e a Diversidade". "Microagressões racistas". Matem-me. Já. E depois enterrem-me: Oxford afirma que desviar o olhar quando se fala com "alguém" (leia-se: negro, asiático, talvez esquimó) pode ter consequências nefastas na saúde mental do outro.

Não pode, gente: se o outro se sente ofendido porque alguém desviou o olhar é porque já não tem grande saúde mental para preservar.

Além disso, Oxford também recomenda que ninguém seja inquirido sobre a sua origem. "De onde vem?" deixou de ser uma curiosidade normal entre gente normal - e internacional. É um ofensa que esconde, sei lá, um prazer perverso, colonialista, obviamente genocida. Presumo que, para a Unidade, o ideal é ninguém falar com ninguém - mas sempre de olhos abertos, como peixes no aquário.

Comecemos pelo óbvio: na sua ânsia paranóica de combater o "racismo", a Unidade comete uma "macroagressão racista". Porque parte sempre do pressuposto de que um branco que desvia o olhar perante um negro é um nazista em potência. Não existem outras razões: distracção, cansaço, timidez, educação. Ou a velha e boa indiferença que é a base de uma sociedade tolerável.

A Unidade, como qualquer organismo totalitário, inverte a presunção de inocência. E, como qualquer organismo totalitário, condena com base em suposições. Pior: condena o que acredita existir na cabeça dos outros. O racismo já não é um crime objectivo, ou seja, identificável em palavras ou actos. Pode ser um delito de consciência. Socorro?

Felizmente, a Universidade de Oxford resolveu pedir desculpas pelo excesso de zelo. Mas não, obviamente, porque as recomendações da sua Unidade para a Igualdade e a Diversidade são uma aberração moral que só envergonha a instituição.

O problema, pelos vistos, é que os conselhos podem ser discriminatórios para autistas ou pessoas com transtornos ansiosos, que têm certa dificuldade em manter o contacto visual.

O mundo caminha para o apocalipse quando só o pensamento politicamente correcto é capaz de frear o pensamento politicamente correcto. Teremos salvação?

Por favor, não olhem para mim.

Diante da aritmética, não há espaço para ideologia nas reformas - PEDRO PASSOS

FOLHA DE SP - 05/05

A reta final das reformas trabalhista e previdenciária no Congresso fez elevar as críticas dos adversários da atualização das relações econômicas e sociais. Bizarro seria se não houvesse alguma oposição. Tais reformas têm sido corriqueiras no mundo e em nenhum país elas aconteceram sem discussão e convencimento.

As mudanças das relações do trabalho e do aparato previdenciário se tornaram necessárias onde quer que tenham ocorrido ou estejam em curso devido a fenômenos irrefreáveis no mundo, com destaque para o viés de envelhecimento da população e as novas tecnologias que produzem resultados conflitantes -aumentam a qualidade de vida e reduzem a oferta de certos tipos de emprego.

Como não somos uma ilha apartada do mundo, tais tendências também se manifestam aqui, em especial o aumento da população com mais de 65 anos e a redução relativa da faixa até 16 anos.

Em algum ponto da próxima década, segundo o IBGE, haverá mais idosos (conceito que também vem sendo revisto no mundo) aposentados que jovens entrando no mercado de trabalho, o fundamento básico do modelo de repartição de nosso sistema previdenciário. Essa conta não fecha sem ajustes.

Tal sistema já é deficitário em todas as frentes -da previdência privada (INSS), cujos saldos negativos são cobertos pelo Tesouro, à previdência pública, agravadas nesse caso, particularmente na área federal, pelos funcionários que ainda se aposentam com o último vencimento na ativa e as aposentadorias especiais.

A despesa previdenciária já consome mais de um terço do Orçamento da União, que por sua vez deixou de gerar superavit antes da conta de juros da dívida pública desde 2014. Como atender outras demandas cruciais -a saúde, por exemplo, cuja atenção crescerá tanto quanto a população idosa, para citarmos uma das muitas prioridades?

Pode-se questionar uma ou outra medida nas propostas enviadas pelo governo ao Congresso, não o mérito do que visa reforçar as bases do crescimento econômico (abrindo postos de trabalho) e desobstruir a formalização do emprego. Ou, simplesmente, reter os existentes.

Custos trabalhistas e tributários no Brasil explicam o fechamento de mais de 90 fábricas transferidas para o Paraguai, onde encargos salariais são menores e a importação de bens de capital é isenta.

Já a reforma da Previdência é condição antecedente para tudo mais, ao afastar o risco da insolvência, mesmo sem eliminar o deficit do INSS e dos regimes próprios. Para tanto, ela teria de ser bem mais profunda. A oposição hoje liderada pelo PT conhece tais riscos.

Não fosse assim e o presidente Lula não teria equiparado as regras de aposentadoria na área federal às do INSS aos novos ingressantes no setor público, o que levou alguns parlamentares a romper com o PT e criar o PSOL. Isso foi em 2003/04.

Em 2005, o então ministro Antonio Palocci tentou uma reforma tão ampla quanto a atual que não avançou. A presidente Dilma Rousseff também defendia rever a Previdência e apoiava a terceirização.

Em questões aritméticas e contábeis, a ideologia não vai à mesa. O que há é o velho embate entre governo e oposição. E, como caronas, sindicalistas (contrariados com a perda do imposto sindical, que a reforma torna voluntário) e as elites das corporações (avexadas em se aposentar tal e qual a maioria dos brasileiros). Isso é normal.

Alguns setores empresariais também alegam problemas sociais quando perdem subsídios. Anormal seria o Congresso se acuar. Ai sim poderá haver o curto-circuito social que as reformas tentam evitar.


A direita luta para enterrar, mais uma vez, a política democrático-burguesa - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 05/05

"E a direita, hein? Vai destruir, mais uma vez, a política democrático-burguesa".

Quem me envia a provocação acima é um amigo de esquerda, comunista mesmo! Mas é um esquerdista raro hoje em dia porque do gênero que estuda. Estudar, nestes tempos, é uma esquisitice em qualquer campo do pensamento. Por isso estamos mergulhados em anacolutos gramaticais, teóricos, conceituais, morais...

Em passado já remoto, escreveria sem receio: "Estamos, mais uma vez, diante da evidência da incapacidade da burguesia dos países atrasados de fazer a revolução burguesa".

Mas eis que me assombro. Eu poderia escrever isso neste 2017, no centenário da revolução bolchevique naquela Rússia que... não conheceu a Revolução Burguesa!

E eu poderia fazê-lo hoje não porque esteja passando por alguma regressão trotskista ou jamais tenha deixado de ser um deles, como quer a extrema-direita mal saída dos cueiros, que não tem a mais remota ideia do que seja combater uma ditadura. O máximo de risco que correm hoje em dia alguns pivetes ideológicos é tomar um "block" e afogar as mágoas num beque.

É certo que não tive uma regressão esquerdista, mas é inegável que a direita brasileira está passando por uma degeneração fascistoide. Uma quadrilha foi flagrada assaltando o Estado e seus entes, a serviço de uma arquitetura política que tinha um partido, o PT, como seu principal pilar.

Sabia-se, no entanto, desde o início, que a legenda não exercia o monopólio da safadeza.

Mas só um parvo ou um mal-intencionado enterrariam em vala comum, como se fez, todos os políticos e todas as agremiações partidárias. No dia 17 de julho de 2015, não foi anteontem, fiz aqui um alerta contra o salvacionismo de alguns procuradores, que passaram a falar em "refundar a República", como se tivessem recebido tal ordenamento de Deus.

O PT compreendeu com mais competência do que qualquer outro partido a natureza da nossa "burguesia periférica".

E escolheu a dedo os protagonistas do capitalismo de Estado. Chegou a engendrar, como resta claro, um plano de poder além-fronteiras. O grito de guerra dessa ordem: "A classe empreiteira é internacional".

Para arrancar o partido das dobras do Estado, quando este deixa de ser funcional, as mesmas elites que lhe deram suporte nos anos de glória não veem mal nenhum em pinchar no mato a criancinha junto com a água suja. E, só para a surpresa dos idiotas, o partido, que estava fora do jogo, renasce dos escombros.

Demoniza-se o financiamento de campanhas por pessoas jurídicas; criminaliza-se a relação entre empresas e políticos, que não precisa ser pautada pela sem-vergonhice; desmoraliza-se a democracia representativa; tratam-se com descaso direitos e garantias da Constituição: a presunção de inocência tornou-se sinônimo de impunidade, a concessão de habeas virou evidência de cumplicidade, e os códigos processuais passaram a ser vistos como entraves à Justiça verdadeira.

A cada vez que leio reportagens e colunas contra a distribuição de ministérios para formar a coalizão governamental, minha melancolia se assanha.

Ou então quando alguém vitupera contra o binômio "apoio político-execução orçamentária", como se essa não fosse uma prática corriqueira –e saudável!– nas democracias. Aquele meu amigo diria: "A burguesia está matando a democracia burguesa".

A propósito: Nicolás Maduro quer uma Constituinte na Venezuela nos mesmíssimos moldes reivindicados pelos xucros brasileiros: sem partidos!

Lembram-se daquela minha antevisão de que a direita debiloide era a escada para a ascensão da esquerda? Já não se trata mais de uma previsão. Estamos diante de um fato.

Agora resta torcer para que a polícia ocupe, então, o lugar da política e tire esses vermelhos nojentos do caminho! "Vermelhos nojentos?" Do meu livro de frases, "Máximas de um País Mínimo": ironia não pode ter nota de rodapé. Ou é alfafa.