ESTADÃO - 31/12
Crise deve-se ao falsear do processo eleitoral, da transparência e da ‘accountability’
Os escândalos de corrupção inaugurados com o “mensalão” e elevados à enésima potência nos últimos cinco anos demonstraram que as deficiências da democracia brasileira são muito maiores do que pensávamos. Antes deles, nosso relativo otimismo se estribava em cinco pilares, cuja importância não pode ser subestimada, mas que agora se mostram claramente insuficientes.
Ao longo de várias décadas, até mesmo durante o regime militar, nosso processo eleitoral se tornou altamente inclusivo, com um eleitorado superior a 70% da população total, a mesma proporção das democracias mais desenvolvidas. Entre 1985 e 1988, restabelecemos pacificamente o regime civil e constitucional. Em 1989, a vitória de Collor sobre os partidos tradicionais e sobre a esquerda inaugurou a alternância pacífica no poder, consolidada com a vitória de Lula em 2002. Instituímos um sistema mais robusto de monitoramento e promoção da legalidade, notadamente pela autonomia institucional do Ministério Público, obra da Constituição de 1988. Por último, mas não menos importante, domamos, finalmente, uma inflação que se prolongara por três décadas e aprovamos no Congresso a Lei de Responsabilidade Fiscal, entre outras medidas relevantes no campo econômico.
Mas as deficiências se revelaram por um conjunto de problemas intimamente ligado à corrupção, que anula, na prática, grande parte dos avanços realizados. Proclamamos, como é usual no Primeiro Mundo, que o essencial da democracia é a exigência de que o acesso de cidadãos particulares a posições de autoridade se faça por meio de um processo competitivo, ou seja, mediante eleições limpas e livres. Mas não atinamos para o fato de que, mesmo num eleitorado de grandes proporções, os procedimentos criados para garantir eleições “limpas e livres” podem ser fraudadas por práticas em princípio lícitas, mas desleais ao espírito da democracia e, portanto, imorais. Entre estas, um exemplo egrégio é o clientelismo de larga escala, infinitamente mais pernicioso que o antigo “voto de cabresto”, que se pode embutir em políticas públicas e programas sociais.
Tampouco nos demos conta de que “eleições limpas e livres” podem transformar-se em mera aclamação simbólica, sem dentes e garras, onde não haja transparência – ou seja, onde inexista acesso efetivo do cidadão, das empresas e da sociedade civil a informações referentes às ações governamentais, notadamente no tocante ao emprego dos recursos financeiros. E mesmo onde tal acesso esteja devidamente previsto e estipulado nas leis, ele não passará de letra morta onde não exista accountability – ou seja, onde os titulares da autoridade, nos três ramos do Estado, se comportem de forma acomodatícia, ou se acovardem, não aplicando com o rigor preceituado as medidas profiláticas prescritas na Constituição e nas leis.
Eleições limpas e livres, transparência e accountability – no mundo atual, essas três condições definem o espaço válido de reflexão sobre as conexões entre a ética – a busca do bem comum – e a política. De fato, a ninguém ocorrerá avaliar o status ético de países governados por celerados e genocidas como Hitler, Stalin ou Pol Pot.
O agente do juízo ético é o indivíduo, ou seja, o cidadão que trabalha, paga impostos e mata ou morre na guerra, se convocado para tal. Ele é também o destinatário do bem comum. Decorridos dois milênios de Aristóteles, não faz sentido pensar no bem comum como um todo homogêneo, unitário e consensual. O que para um é um bem, para outro pode ser um mal. O que existe é, portanto, uma grande variedade de bens comuns ou, melhor dito, de bens coletivos, aqueles que o Estado não pode prover a um cidadão se não puder provê-los nas mesmas condições a todos os demais cidadãos compreendidos na mesma categoria. O que importa, por conseguinte, é investigar a emergência ex parte de um consenso, ou da aquiescência sempre precária, de todos, ou da maioria, a uma dada distribuição de bens coletivos. O orçamento nacional é essencialmente isto: a distribuição de bens coletivos que o Estado é capaz de prover em dado momento. Esse conjunto é a resultante do embate entre os interesses que soem existir em toda sociedade, mas que só na democracia são devidamente delimitados e regulados pelas instituições. Buscar o consenso pela via da política, o entendimento por meio de uma pugna constante, eis o notável paradoxo que as democracias consagram em suas regras de jogo.
Voltando ao início, podemos, pois, afirmar que a crise ética e econômica para a qual o Brasil foi arrastado se deve ao falseamento, ainda não superado, do processo eleitoral, da transparência e da accountability. É óbvio que a democracia tem muito que ver com as condições sociais gerais de um país, daí a existência de importantes diferenças de qualidade entre elas. Desigualdades sociais extremas são negativas para a democracia e a ética pública.
Nos limites deste artigo, cabe-me concluir apenas reiterando o que tenho insistentemente afirmado: justiça social, socialismo, social-democracia e similares devem ser entendidos tão somente como ideais abstratos de sociedade. Não são indicações concretas dos meios necessários para melhorar o padrão de vida dos indivíduos reais ou de como reduzir desigualdades de renda. Em pleno século 21, o que importa investigar é qual o melhor caminho para romper “relações de produção” peremptas a fim de liberar as “forças produtivas”. No Brasil, parece-me fora de dúvida que isso significa quebrar de vez a tradição patrimonialista, irmã siamesa da corrupção, e instaurar uma verdadeira economia de mercado.
*CIENTISTA POLÍTICO, É SOCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA E AUTOR DO LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERAIS: A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)
domingo, dezembro 31, 2017
A reação patética dos clubes - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 31/12
Confundindo prerrogativas funcionais com privilégios, juízes desprezam o fato de que penduricalhos são uma apropriação imoral de recursos dos contribuintes
Desde que o ministro Luiz Fux liberou para votação do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) as liminares que concedeu em 2014, estendendo o auxílio-moradia a todos os juízes das Justiças federal, estaduais e trabalhista, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) anunciaram que não medirão esforços para manter esse benefício, que hoje é de R$ 4,3 mil e não incide no cálculo do teto salarial do funcionalismo. Quando o Supremo retomar os trabalhos, em 2018, caberá aos ministros da Corte referendar ou não as decisões de Fux.
Em carta distribuída a seus filiados, a AMB afirmou que não aceitará “perdas salariais sob qualquer pretexto”, invocou a tese da “valorização da magistratura” para justificar o recebimento desse penduricalho e reivindicou, no caso de ele ser considerado inconstitucional pelo Supremo, a criação de outro benefício no mesmo valor do auxílio-moradia, a título de “valorização por tempo de serviço”. Também alegou que “não se curvará aos detratores da magistratura, especialmente à difamatória campanha lançada pela imprensa”. E defendeu, ainda, o anteprojeto da nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que foi elaborado pelo Supremo na época em que foi presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski. Entre outras concessões, o anteprojeto prevê o pagamento de até 17 salários, férias de 60 dias, multiplicação de verbas indenizatórias e até direito a passaporte diplomático.
Por seu lado, a Ajufe também denunciou uma “campanha orquestrada da mídia contra os direitos” dos juízes. Prometeu que lutará “até o fim” e no “limite de suas forças” para evitar que o Supremo considere inconstitucional o pagamento do auxílio-moradia. Além disso, anunciou a realização de um ato de protesto contra a extinção desse benefício em Brasília, no dia 1.º de fevereiro. Informou que, juntamente com a AMB, custeará a viagem de cem magistrados, “sem prejuízo de que outros venham de acordo com as possibilidades das associações regionais de juízes federais”. E ainda afirmou que não é justo que o auxílio-moradia dos juízes seja extinto, já que as demais carreiras jurídicas no Poder Público ganham verbas extras e não as levam em conta para efeito de cálculo do teto do funcionalismo. “Estão visando apenas os vencimentos da magistratura e esquecendo o de outras carreiras. Os honorários públicos (as verbas de sucumbência que recentemente passaram a ser concedidas aos membros da Advocacia-Geral da União – AGU) são um extrateto. É dinheiro que deveria ser direcionado aos cofres públicos. Por que não se discute isso?”, indaga o presidente da entidade, Roberto Veloso. Em mensagem de Natal enviada aos colegas de toga, ele já havia festejado o adiamento da votação da reforma da Previdência, acusando-a de ter sido concebida com objetivo de “atingir financeiramente” a magistratura.
Evidentemente, um erro – como a concessão de um penduricalho para os membros da AGU – não justifica outro erro, como a continuidade do pagamento do auxílio-moradia. Além disso, a AMB e Ajufe insistem em afirmar que os penduricalhos recebidos por seus filiados a título de “vantagens, direitos e deveres” são “legítimos” e estão “amparados pela legislação”. Deixam de lado, contudo, o fato de a constitucionalidade de parte dessa legislação estar sendo questionada no STF. E, se tivessem a certeza de que suas pretensões têm sólida base jurídica, as duas entidades não precisariam agir de modo tão patético.
Acima de tudo, essas associações não consideram o fato de que a discussão sobre os penduricalhos não envolve uma questão jurídica, mas uma questão ética. A corporação está entre as carreiras mais bem pagas do funcionalismo e goza de privilégios que não são concedidos aos trabalhadores da iniciativa privada. Confundindo prerrogativas funcionais com esses privilégios, os juízes desprezam o fato de que os penduricalhos são uma apropriação imoral de recursos dos contribuintes. Na defesa de seus interesses corporativos, esses clubes de magistrados cruzaram as fronteiras entre justiça e injustiça.
Confundindo prerrogativas funcionais com privilégios, juízes desprezam o fato de que penduricalhos são uma apropriação imoral de recursos dos contribuintes
Desde que o ministro Luiz Fux liberou para votação do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) as liminares que concedeu em 2014, estendendo o auxílio-moradia a todos os juízes das Justiças federal, estaduais e trabalhista, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) anunciaram que não medirão esforços para manter esse benefício, que hoje é de R$ 4,3 mil e não incide no cálculo do teto salarial do funcionalismo. Quando o Supremo retomar os trabalhos, em 2018, caberá aos ministros da Corte referendar ou não as decisões de Fux.
Em carta distribuída a seus filiados, a AMB afirmou que não aceitará “perdas salariais sob qualquer pretexto”, invocou a tese da “valorização da magistratura” para justificar o recebimento desse penduricalho e reivindicou, no caso de ele ser considerado inconstitucional pelo Supremo, a criação de outro benefício no mesmo valor do auxílio-moradia, a título de “valorização por tempo de serviço”. Também alegou que “não se curvará aos detratores da magistratura, especialmente à difamatória campanha lançada pela imprensa”. E defendeu, ainda, o anteprojeto da nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que foi elaborado pelo Supremo na época em que foi presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski. Entre outras concessões, o anteprojeto prevê o pagamento de até 17 salários, férias de 60 dias, multiplicação de verbas indenizatórias e até direito a passaporte diplomático.
Por seu lado, a Ajufe também denunciou uma “campanha orquestrada da mídia contra os direitos” dos juízes. Prometeu que lutará “até o fim” e no “limite de suas forças” para evitar que o Supremo considere inconstitucional o pagamento do auxílio-moradia. Além disso, anunciou a realização de um ato de protesto contra a extinção desse benefício em Brasília, no dia 1.º de fevereiro. Informou que, juntamente com a AMB, custeará a viagem de cem magistrados, “sem prejuízo de que outros venham de acordo com as possibilidades das associações regionais de juízes federais”. E ainda afirmou que não é justo que o auxílio-moradia dos juízes seja extinto, já que as demais carreiras jurídicas no Poder Público ganham verbas extras e não as levam em conta para efeito de cálculo do teto do funcionalismo. “Estão visando apenas os vencimentos da magistratura e esquecendo o de outras carreiras. Os honorários públicos (as verbas de sucumbência que recentemente passaram a ser concedidas aos membros da Advocacia-Geral da União – AGU) são um extrateto. É dinheiro que deveria ser direcionado aos cofres públicos. Por que não se discute isso?”, indaga o presidente da entidade, Roberto Veloso. Em mensagem de Natal enviada aos colegas de toga, ele já havia festejado o adiamento da votação da reforma da Previdência, acusando-a de ter sido concebida com objetivo de “atingir financeiramente” a magistratura.
Evidentemente, um erro – como a concessão de um penduricalho para os membros da AGU – não justifica outro erro, como a continuidade do pagamento do auxílio-moradia. Além disso, a AMB e Ajufe insistem em afirmar que os penduricalhos recebidos por seus filiados a título de “vantagens, direitos e deveres” são “legítimos” e estão “amparados pela legislação”. Deixam de lado, contudo, o fato de a constitucionalidade de parte dessa legislação estar sendo questionada no STF. E, se tivessem a certeza de que suas pretensões têm sólida base jurídica, as duas entidades não precisariam agir de modo tão patético.
Acima de tudo, essas associações não consideram o fato de que a discussão sobre os penduricalhos não envolve uma questão jurídica, mas uma questão ética. A corporação está entre as carreiras mais bem pagas do funcionalismo e goza de privilégios que não são concedidos aos trabalhadores da iniciativa privada. Confundindo prerrogativas funcionais com esses privilégios, os juízes desprezam o fato de que os penduricalhos são uma apropriação imoral de recursos dos contribuintes. Na defesa de seus interesses corporativos, esses clubes de magistrados cruzaram as fronteiras entre justiça e injustiça.
quarta-feira, dezembro 27, 2017
Previdência, quatro soluções e um funeral - ALEXANDRE SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 27/12
Há quatro soluções simples para a questão previdenciária no Brasil, as quais —como toda solução simples para um problema complexo estão inapelavelmente erradas.
Começo pela sugestão de transição do atual regime de repartição (em que a geração ativa transfere compulsoriamente recursos para a geração inativa sob a forma de contribuições) para um regime de capitalização (em que a geração ativa poupa recursos para usá-los durante sua própria aposentadoria).
Poderíamos, talvez, ter feito essa transição tempos atrás, quando a geração ativa era muito maior do que a inativa, mas esse bonde já passou. Considerando apenas o INSS, o pagamento de benefícios previdenciários chega a 8,5% do PIB, enquanto as contribuições atingem 5,7% do PIB.
Caso abríssemos mão das contribuições, mesmo que parcialmente, a falta de recursos para o pagamento dos benefícios se tornaria ainda maior, acelerando o endividamento público, precisamente o oposto do que precisamos.
Outra solução simples e errada é a ideia que a cobrança da dívida ativa (o número mágico é R$ 500 bilhões) resolveria o deficit do sistema.
Mesmo se deixarmos de lado que grande parte dessa dívida se refere a empresas falidas (e à cobrança de juros sobre elas), noto que os benefícios previdenciários do INSS se encontram na casa de R$ 550 bilhões/ano, ou seja, no improvável cenário de recuperação completa desse valor, ele não cobriria um ano do gasto e menos de três anos do deficit do INSS.
Na mesma linha, ainda se insiste na questão da aposentadoria dos políticos.
Em primeiro lugar, há 20 anos que políticos não mais se aposentam com apenas oito anos de mandato e a partir de 50 anos (ainda bem!), mas só depois de 35 anos de contribuição com idade mínima de 60 anos.
Em segundo lugar, mesmo que parássemos de pagar aos que se aposentaram sob regras diferentes, o valor é ínfimo perto do gasto previdenciário no país.
Em terceiro, a proposta de reforma unifica as regras para todos, inclusive políticos.
A quarta sugestão se refere à Desvinculação dos Recursos da União, a chamada DRU, que, segundo alguns, se extinta, eliminaria o deficit da Previdência.
À parte a DRU não incidir sobre as contribuições previdenciárias, não faz a menor diferença direcionarmos mais recursos à Previdência, uma vez que, com DRU ou sem DRU, todos os aposentados sob a responsabilidade do governo federal ainda recebem em dia seus proventos (já no caso dos Estados, nem sempre é assim), pois o dinheiro de outros tributos garante, por ora, tais pagamentos.
Por outro lado, revogar a DRU em nada ajuda a conter o crescimento dos gastos, resultantes da combinação de demografia e privilégios.
Já o funeral é o da lógica.
Em coluna publicada na sexta-feira (21), Nelson Barbosa aponta Portugal como um país que fez o ajuste fiscal sem "austericídio", presumivelmente em oposição ao que se tenta fazer no Brasil.
Como de hábito, faltou a Barbosa olhar os números: entre 2010 e 2016 o deficit público em Portugal caiu de 11,2% do PIB para 2,0% do PIB, com corte de despesas no período pouco inferior a 7% do PIB.
No Brasil, em contraste, propõe-se uma redução de 2,0-3,0% do PIB do deficit primário no mesmo horizonte, mas aqui, por alguma razão, esse ajuste muito mais gradual é considerado "austericídio".
Descanse em paz.
Há quatro soluções simples para a questão previdenciária no Brasil, as quais —como toda solução simples para um problema complexo estão inapelavelmente erradas.
Começo pela sugestão de transição do atual regime de repartição (em que a geração ativa transfere compulsoriamente recursos para a geração inativa sob a forma de contribuições) para um regime de capitalização (em que a geração ativa poupa recursos para usá-los durante sua própria aposentadoria).
Poderíamos, talvez, ter feito essa transição tempos atrás, quando a geração ativa era muito maior do que a inativa, mas esse bonde já passou. Considerando apenas o INSS, o pagamento de benefícios previdenciários chega a 8,5% do PIB, enquanto as contribuições atingem 5,7% do PIB.
Caso abríssemos mão das contribuições, mesmo que parcialmente, a falta de recursos para o pagamento dos benefícios se tornaria ainda maior, acelerando o endividamento público, precisamente o oposto do que precisamos.
Outra solução simples e errada é a ideia que a cobrança da dívida ativa (o número mágico é R$ 500 bilhões) resolveria o deficit do sistema.
Mesmo se deixarmos de lado que grande parte dessa dívida se refere a empresas falidas (e à cobrança de juros sobre elas), noto que os benefícios previdenciários do INSS se encontram na casa de R$ 550 bilhões/ano, ou seja, no improvável cenário de recuperação completa desse valor, ele não cobriria um ano do gasto e menos de três anos do deficit do INSS.
Na mesma linha, ainda se insiste na questão da aposentadoria dos políticos.
Em primeiro lugar, há 20 anos que políticos não mais se aposentam com apenas oito anos de mandato e a partir de 50 anos (ainda bem!), mas só depois de 35 anos de contribuição com idade mínima de 60 anos.
Em segundo lugar, mesmo que parássemos de pagar aos que se aposentaram sob regras diferentes, o valor é ínfimo perto do gasto previdenciário no país.
Em terceiro, a proposta de reforma unifica as regras para todos, inclusive políticos.
A quarta sugestão se refere à Desvinculação dos Recursos da União, a chamada DRU, que, segundo alguns, se extinta, eliminaria o deficit da Previdência.
À parte a DRU não incidir sobre as contribuições previdenciárias, não faz a menor diferença direcionarmos mais recursos à Previdência, uma vez que, com DRU ou sem DRU, todos os aposentados sob a responsabilidade do governo federal ainda recebem em dia seus proventos (já no caso dos Estados, nem sempre é assim), pois o dinheiro de outros tributos garante, por ora, tais pagamentos.
Por outro lado, revogar a DRU em nada ajuda a conter o crescimento dos gastos, resultantes da combinação de demografia e privilégios.
Já o funeral é o da lógica.
Em coluna publicada na sexta-feira (21), Nelson Barbosa aponta Portugal como um país que fez o ajuste fiscal sem "austericídio", presumivelmente em oposição ao que se tenta fazer no Brasil.
Como de hábito, faltou a Barbosa olhar os números: entre 2010 e 2016 o deficit público em Portugal caiu de 11,2% do PIB para 2,0% do PIB, com corte de despesas no período pouco inferior a 7% do PIB.
No Brasil, em contraste, propõe-se uma redução de 2,0-3,0% do PIB do deficit primário no mesmo horizonte, mas aqui, por alguma razão, esse ajuste muito mais gradual é considerado "austericídio".
Descanse em paz.
O eterno retorno - JOSÉ NÊUMANNE
ESTADÃO - 27/12
Para o PT, o voto é o sucedâneo da guilhotina e da metralhadora das revoluções de antanho
Sabe aquele truque do punguista que bate a carteira do transeunte incauto e, antes que ele reaja, sai correndo e gritando “pega ladrão” pela rua acima? Pois é esse exatamente o golpe com que o Partido dos Trabalhadores (PT) enfrenta a pendenga judicial protagonizada pelo seu primeiro, único e eterno candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, aiatolula para seus devotos, Lulinha paz e amor para os que por ele se deixam enganar. Primeiro, eles gritam “golpe!”, como gritaram quando Dilma Tatibitate Rousseff foi derrubada pelas próprias peraltices, anunciando que disputar voto sem ele na cédula não é eleição, é perseguição. Depois saem correndo atrás do prejuízo... dos outros.
A narrativa desse golpe, que eles tratam como se fosse um contragolpe, é a de que seu plano A a Z de poder tem sido acusado, denunciado e condenado e está agora à espera de uma provável, embora ainda eventual, confirmação da condenação em segunda instância. No caso, a Polícia Federal atuaria como se fosse um bate-pau de coronéis da política, que não querem ver o chefão de volta ao poder para desgraçar o Brasil de vez, depois do desastre que produziu a distribuição igualitária do desemprego dos trabalhadores e da quebradeira dos empresários, esta nossa isonomia cruel. O Ministério Público Federal seria um valhacouto de pistoleiros dos donos do poder. E os juízes que condenam, meros paus-mandados de imperialistas e entreguistas. Quem vai com a farinha da lógica volta com o pirão da mistificação: é tudo perseguição.
Talvez seja o caso, então, de lembrar que nem isso é original. Aqui mais uma vez o PT pavloviano que baba quando o padim fala recorre à filosofia pré-socrática do velho Heráclito de Éfeso proclamando o eterno retorno. Não queriam refundar o PT depois do assalto geral aos cofres da República? Pois muito bem, lá vão voltando os petistas às suas origens nos estertores da ditadura. Naquele tempo, os grupos fundidos hesitavam entre a revolução armada e a urna. Optaram pela paz e prosperaram.
Os guerrilheiros desarmados à custa de sangue, tortura e lágrimas voltaram do exílio convencidos de que só venceriam se assumissem o comando de um partido de massas. E o ideal para isso seria empregar o charme dos operários do moderno enclave metalúrgico do ABC. Lula, que desprezava os filhinhos de papai do estudantado e os clérigos progressistas, aceitou o papel que lhe cabia de chefe dos desunidos e então reagrupados. Afinal, sua resistência à volta dos ex-armados era só uma: queria dar ordens, nunca seguir instruções. E deixou isso claro a Cláudio Lembo, presidente do PDS paulista e emissário do general Golbery do Couto e Silva enviado a São Bernardo para convencê-lo a apoiar a anistia.
A conquista da máquina pública não derramou sangue dos militantes, que avançaram com sofreguidão sobre os cofres da viúva e os dilapidaram sem dó. Viraram pregoeiros do melhor e mais seguro negócio do mundo: ganhar bilhões sem arriscar a vida, como os traficantes do morro, demandando apenas os sufrágios dos iludidos. A desprezada e velha democracia burguesa virou um pregão de ocasião: só o voto vale. A eleição é a única fonte legítima do poder. Os outros pressupostos do Estado democrático – igualdade de direitos, equilíbrio e autonomia dos Poderes, impessoalidade das instituições – foram esmagados sob o neopragmatismo dos curandeiros de palanque.
A polícia, o Ministério Público e a Justiça tornaram-se meros (e nada míseros!) coadjuvantes da sociedade da imunidade que virou impunidade. A lei – ora, a lei... – é só pretexto. Agora, por exemplo, a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, é um obstáculo que, se condenado na segunda instância, Lula espera ultrapassar sem recorrer mais apenas às chicanas de hábito, mas também à guerrilha dos recursos. Estes abundam, garantem Joaquim Falcão e Luiz Flávio Gomes, respeitáveis especialistas.
Não importa que a alimária claudique, eles almejam mesmo é acicatá-la. Formados no desprezo à democracia dos barões sem terra e dos comerciantes sem títulos dos séculos 12 e 18, os lulistas contemporâneos consideram o voto, que apregoam como condão, apenas um instrumento da chegada ao poder e de sua manutenção – como a guilhotina e a Kalashnikov. José Dirceu, que não foi perdoado por ter delinquido cumprindo pena pelo mensalão, ganhou o direito de sambar de tornozeleira na mansão, conquistada com o suor de seus dedos, por três votos misericordiosos. Dias Toffoli fora seu subordinado. Ricardo Lewandowski criou a personagem Dilma Merendeira. E Gilmar Mendes entrou nessa associação de petistas juramentados como J. Pinto Fernandes, o fecho inesperado do poema Quadrilha, que não se perca pelo título, de Carlos Drummond de Andrade. Celso de Mello e Edson Fachin foram vencidos.
Na semana passada, o ex-guerrilheiro, ex-deputado e ex-ministro estreou coluna semanal no site Nocaute, pertencente ao escritor Fernando Moraes, conhecido beija-dólmã do comandante Castro. Na primeira colaboração, Dirceu convocou uma mobilização nacional no próximo dia 24 de janeiro, em defesa dos direitos do ex-presidente Lula, “seja diante do TRF-4, em Porto Alegre, seja nas sedes regionais do Tribunal Regional Federal” (sic). O post, com o perdão pelo anglicismo insubstituível, é a síntese da campanha que atropela o Código Penal e a Lei da Ficha Limpa, apelando para disparos retóricos e balbúrdia nas ruas, à falta de argumentos jurídicos respeitáveis. Nada que surpreenda no PT, cujo passado revolucionário sempre espreitou para ser usado na hora que lhe conviesse. E a hora é esta.
O voto é apenas lorota de acalentar bovino. Estamos com a lei e o voto, que já lhes faltou no ano passado e dificilmente será pródigo no ano que vem. Mas não podemos vivenciar a fábula A Revolução dos Bichos, de Orwell. Pois o papel de ruminantes é o que nos destinaram. Só nos resta recusá-lo.
*JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
Para o PT, o voto é o sucedâneo da guilhotina e da metralhadora das revoluções de antanho
Sabe aquele truque do punguista que bate a carteira do transeunte incauto e, antes que ele reaja, sai correndo e gritando “pega ladrão” pela rua acima? Pois é esse exatamente o golpe com que o Partido dos Trabalhadores (PT) enfrenta a pendenga judicial protagonizada pelo seu primeiro, único e eterno candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, aiatolula para seus devotos, Lulinha paz e amor para os que por ele se deixam enganar. Primeiro, eles gritam “golpe!”, como gritaram quando Dilma Tatibitate Rousseff foi derrubada pelas próprias peraltices, anunciando que disputar voto sem ele na cédula não é eleição, é perseguição. Depois saem correndo atrás do prejuízo... dos outros.
A narrativa desse golpe, que eles tratam como se fosse um contragolpe, é a de que seu plano A a Z de poder tem sido acusado, denunciado e condenado e está agora à espera de uma provável, embora ainda eventual, confirmação da condenação em segunda instância. No caso, a Polícia Federal atuaria como se fosse um bate-pau de coronéis da política, que não querem ver o chefão de volta ao poder para desgraçar o Brasil de vez, depois do desastre que produziu a distribuição igualitária do desemprego dos trabalhadores e da quebradeira dos empresários, esta nossa isonomia cruel. O Ministério Público Federal seria um valhacouto de pistoleiros dos donos do poder. E os juízes que condenam, meros paus-mandados de imperialistas e entreguistas. Quem vai com a farinha da lógica volta com o pirão da mistificação: é tudo perseguição.
Talvez seja o caso, então, de lembrar que nem isso é original. Aqui mais uma vez o PT pavloviano que baba quando o padim fala recorre à filosofia pré-socrática do velho Heráclito de Éfeso proclamando o eterno retorno. Não queriam refundar o PT depois do assalto geral aos cofres da República? Pois muito bem, lá vão voltando os petistas às suas origens nos estertores da ditadura. Naquele tempo, os grupos fundidos hesitavam entre a revolução armada e a urna. Optaram pela paz e prosperaram.
Os guerrilheiros desarmados à custa de sangue, tortura e lágrimas voltaram do exílio convencidos de que só venceriam se assumissem o comando de um partido de massas. E o ideal para isso seria empregar o charme dos operários do moderno enclave metalúrgico do ABC. Lula, que desprezava os filhinhos de papai do estudantado e os clérigos progressistas, aceitou o papel que lhe cabia de chefe dos desunidos e então reagrupados. Afinal, sua resistência à volta dos ex-armados era só uma: queria dar ordens, nunca seguir instruções. E deixou isso claro a Cláudio Lembo, presidente do PDS paulista e emissário do general Golbery do Couto e Silva enviado a São Bernardo para convencê-lo a apoiar a anistia.
A conquista da máquina pública não derramou sangue dos militantes, que avançaram com sofreguidão sobre os cofres da viúva e os dilapidaram sem dó. Viraram pregoeiros do melhor e mais seguro negócio do mundo: ganhar bilhões sem arriscar a vida, como os traficantes do morro, demandando apenas os sufrágios dos iludidos. A desprezada e velha democracia burguesa virou um pregão de ocasião: só o voto vale. A eleição é a única fonte legítima do poder. Os outros pressupostos do Estado democrático – igualdade de direitos, equilíbrio e autonomia dos Poderes, impessoalidade das instituições – foram esmagados sob o neopragmatismo dos curandeiros de palanque.
A polícia, o Ministério Público e a Justiça tornaram-se meros (e nada míseros!) coadjuvantes da sociedade da imunidade que virou impunidade. A lei – ora, a lei... – é só pretexto. Agora, por exemplo, a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, é um obstáculo que, se condenado na segunda instância, Lula espera ultrapassar sem recorrer mais apenas às chicanas de hábito, mas também à guerrilha dos recursos. Estes abundam, garantem Joaquim Falcão e Luiz Flávio Gomes, respeitáveis especialistas.
Não importa que a alimária claudique, eles almejam mesmo é acicatá-la. Formados no desprezo à democracia dos barões sem terra e dos comerciantes sem títulos dos séculos 12 e 18, os lulistas contemporâneos consideram o voto, que apregoam como condão, apenas um instrumento da chegada ao poder e de sua manutenção – como a guilhotina e a Kalashnikov. José Dirceu, que não foi perdoado por ter delinquido cumprindo pena pelo mensalão, ganhou o direito de sambar de tornozeleira na mansão, conquistada com o suor de seus dedos, por três votos misericordiosos. Dias Toffoli fora seu subordinado. Ricardo Lewandowski criou a personagem Dilma Merendeira. E Gilmar Mendes entrou nessa associação de petistas juramentados como J. Pinto Fernandes, o fecho inesperado do poema Quadrilha, que não se perca pelo título, de Carlos Drummond de Andrade. Celso de Mello e Edson Fachin foram vencidos.
Na semana passada, o ex-guerrilheiro, ex-deputado e ex-ministro estreou coluna semanal no site Nocaute, pertencente ao escritor Fernando Moraes, conhecido beija-dólmã do comandante Castro. Na primeira colaboração, Dirceu convocou uma mobilização nacional no próximo dia 24 de janeiro, em defesa dos direitos do ex-presidente Lula, “seja diante do TRF-4, em Porto Alegre, seja nas sedes regionais do Tribunal Regional Federal” (sic). O post, com o perdão pelo anglicismo insubstituível, é a síntese da campanha que atropela o Código Penal e a Lei da Ficha Limpa, apelando para disparos retóricos e balbúrdia nas ruas, à falta de argumentos jurídicos respeitáveis. Nada que surpreenda no PT, cujo passado revolucionário sempre espreitou para ser usado na hora que lhe conviesse. E a hora é esta.
O voto é apenas lorota de acalentar bovino. Estamos com a lei e o voto, que já lhes faltou no ano passado e dificilmente será pródigo no ano que vem. Mas não podemos vivenciar a fábula A Revolução dos Bichos, de Orwell. Pois o papel de ruminantes é o que nos destinaram. Só nos resta recusá-lo.
*JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
O sentido pedagógico do teto - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 27/12
Sempre difícil, o tema do ajuste fiscal é especialmente árduo em ano eleitoral; em geral, os políticos querem falar de promessas e investimentos, deixando de lado os necessários cortes
O Brasil tem “um encontro marcado com a discussão da rigidez orçamentária e do excesso de despesas obrigatórias”, lembrou a secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, em entrevista ao Estado. “Isso tem que ficar claro: deu para um grupo, vai faltar para outros”, disse. Dar mais recursos para reajustes de servidores, por exemplo, significará reduzir as verbas a outras políticas que poderiam atingir toda a população, como saúde, educação e assistência social.
É mérito da Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada em dezembro de 2016 e que limitou por 20 anos os gastos públicos, essa clareza sobre os efeitos decorrentes da política econômica. Ao estabelecer um teto para as despesas do governo, a EC 95 explicitou que as receitas não aumentam por um passe de mágica. O bolo é um só. Se for dado um pedaço maior para determinada parcela da população, haverá menos para dividir entre o restante.
“O exemplo do Orçamento de 2018 poderá ser bastante pedagógico”, disse a secretária do Tesouro, ao citar a postergação do reajuste dos servidores, desejada pelo governo federal e que no momento está em discussão na Justiça. “A postergação poderia reduzir despesas obrigatórias em R$ 6 bilhões em 2018. Sem a postergação, vai ficar um espaço mais restrito para despesas que são absolutamente importantes. Estamos falando em trocar um benefício para um grupo já muito privilegiado por mais recursos para o Fundo Nacional de Assistência Social, por exemplo. Teremos menos investimento, menos dinheiro para conservação de estradas que têm excesso de acidentes, com ônus para o sistema de saúde”, disse Ana Paula Vescovi.
Essa realidade foi ignorada durante os anos de administração do PT. Por isso, a regra do teto dos gastos é tão importante para o País, ao impedir a irresponsabilidade de alguns governantes, que deixam dívidas impagáveis para seus sucessores.
Além disso, a EC 95 promove a tão necessária discussão sobre a destinação dos recursos públicos. Quando o dinheiro público é considerado ilimitado, parece perda de tempo avaliar qual será a melhor forma de alocar recursos. No entanto, no momento em que se estabelece limite para os gastos do governo, essa discussão se impõe, já que são necessárias escolhas. “O excesso de rigidez do Orçamento, de indexação de despesas obrigatórias e o impacto da tendência demográfica sobre as despesas estão levando à baixa qualidade na alocação dos recursos públicos. É isso que precisará ser enfrentado”, afirmou a secretária do Tesouro.
A EC 95 representou uma importante mudança na trajetória que o Estado brasileiro vinha percorrendo desde 1988. Além de ter, desde a sua origem, sérias disfuncionalidades em termos de equilíbrio fiscal, a Constituição de 1988 foi muitas vezes interpretada como se as garantias e direitos sociais que abriga autorizassem a gastar mais do que se tinha. As suas quase três décadas de vigência mostraram, no entanto, uma realidade bem diferente daquela visão utópica inicial, em que o desenvolvimento social era tratado como consequência necessária de uma previsão legal. O resultado da Constituição de 1988 é um sistema caro, insustentável e, além disso, muito pouco eficiente. Basta ver a qualidade, em geral, da saúde e da educação ofertada pelo poder público. “A regra do teto é simples e estimula essa discussão alocativa. Também traz um acionamento automático de medidas caso não seja cumprido, vai vedar novos concursos, novos reajustes de salários, crescimento de despesas obrigatórias acima da inflação”, disse Ana Paula Vescovi.
Sempre difícil, o tema do ajuste fiscal é especialmente árduo em ano eleitoral. Em geral, os políticos querem falar de promessas e investimentos, deixando de lado os necessários cortes. A secretária do Tesouro lembra, no entanto, que o cidadão não está alheio às consequências do desequilíbrio fiscal. “Não tem dinheiro nos Estados para pagar os salários atrasados, o serviço público de saúde padecendo. Não é só o Rio de Janeiro”. Que o teto dos gastos possa ajudar a revelar toda a mentira contida no populismo.
Sempre difícil, o tema do ajuste fiscal é especialmente árduo em ano eleitoral; em geral, os políticos querem falar de promessas e investimentos, deixando de lado os necessários cortes
O Brasil tem “um encontro marcado com a discussão da rigidez orçamentária e do excesso de despesas obrigatórias”, lembrou a secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, em entrevista ao Estado. “Isso tem que ficar claro: deu para um grupo, vai faltar para outros”, disse. Dar mais recursos para reajustes de servidores, por exemplo, significará reduzir as verbas a outras políticas que poderiam atingir toda a população, como saúde, educação e assistência social.
É mérito da Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada em dezembro de 2016 e que limitou por 20 anos os gastos públicos, essa clareza sobre os efeitos decorrentes da política econômica. Ao estabelecer um teto para as despesas do governo, a EC 95 explicitou que as receitas não aumentam por um passe de mágica. O bolo é um só. Se for dado um pedaço maior para determinada parcela da população, haverá menos para dividir entre o restante.
“O exemplo do Orçamento de 2018 poderá ser bastante pedagógico”, disse a secretária do Tesouro, ao citar a postergação do reajuste dos servidores, desejada pelo governo federal e que no momento está em discussão na Justiça. “A postergação poderia reduzir despesas obrigatórias em R$ 6 bilhões em 2018. Sem a postergação, vai ficar um espaço mais restrito para despesas que são absolutamente importantes. Estamos falando em trocar um benefício para um grupo já muito privilegiado por mais recursos para o Fundo Nacional de Assistência Social, por exemplo. Teremos menos investimento, menos dinheiro para conservação de estradas que têm excesso de acidentes, com ônus para o sistema de saúde”, disse Ana Paula Vescovi.
Essa realidade foi ignorada durante os anos de administração do PT. Por isso, a regra do teto dos gastos é tão importante para o País, ao impedir a irresponsabilidade de alguns governantes, que deixam dívidas impagáveis para seus sucessores.
Além disso, a EC 95 promove a tão necessária discussão sobre a destinação dos recursos públicos. Quando o dinheiro público é considerado ilimitado, parece perda de tempo avaliar qual será a melhor forma de alocar recursos. No entanto, no momento em que se estabelece limite para os gastos do governo, essa discussão se impõe, já que são necessárias escolhas. “O excesso de rigidez do Orçamento, de indexação de despesas obrigatórias e o impacto da tendência demográfica sobre as despesas estão levando à baixa qualidade na alocação dos recursos públicos. É isso que precisará ser enfrentado”, afirmou a secretária do Tesouro.
A EC 95 representou uma importante mudança na trajetória que o Estado brasileiro vinha percorrendo desde 1988. Além de ter, desde a sua origem, sérias disfuncionalidades em termos de equilíbrio fiscal, a Constituição de 1988 foi muitas vezes interpretada como se as garantias e direitos sociais que abriga autorizassem a gastar mais do que se tinha. As suas quase três décadas de vigência mostraram, no entanto, uma realidade bem diferente daquela visão utópica inicial, em que o desenvolvimento social era tratado como consequência necessária de uma previsão legal. O resultado da Constituição de 1988 é um sistema caro, insustentável e, além disso, muito pouco eficiente. Basta ver a qualidade, em geral, da saúde e da educação ofertada pelo poder público. “A regra do teto é simples e estimula essa discussão alocativa. Também traz um acionamento automático de medidas caso não seja cumprido, vai vedar novos concursos, novos reajustes de salários, crescimento de despesas obrigatórias acima da inflação”, disse Ana Paula Vescovi.
Sempre difícil, o tema do ajuste fiscal é especialmente árduo em ano eleitoral. Em geral, os políticos querem falar de promessas e investimentos, deixando de lado os necessários cortes. A secretária do Tesouro lembra, no entanto, que o cidadão não está alheio às consequências do desequilíbrio fiscal. “Não tem dinheiro nos Estados para pagar os salários atrasados, o serviço público de saúde padecendo. Não é só o Rio de Janeiro”. Que o teto dos gastos possa ajudar a revelar toda a mentira contida no populismo.
Misturar Lava Jato com a reforma da Previdência é oportunismo - RAQUEL LANDIM
FOLHA DE SP - 27/12
Grupos de pressão do Poder Judiciário e do Ministério Público tentam emplacar a ideia de que a reforma da Previdência é um ataque à Operação Lava Jato. Argumentam que se trata de uma vingança do Executivo e do Congresso contra aqueles que perseguem políticos corruptos.
É verdade que a Lava Jato sofre bombardeios e que boa parte deles só tem justificativa em interesses escusos, mas isso não tem nada a ver com a reforma da Previdência. Misturar as discussões é oportunismo e má-fé.
A reforma da Previdência não é apenas essencial para evitar o colapso das contas públicas, é também uma questão de justiça social.
O valor médio mensal das aposentadorias do Poder Judiciário e do Ministério Público está em R$ 22,3 mil e R$ 19,12 mil, respectivamente. Só perdem para os R$ 28,88 mil pagos ao Legislativo, que ironicamente tem a missão de aprovar a reforma.
Esses números são muito superiores aos R$ 7,72 mil dos aposentados do Executivo e aos R$ 5,53 mil do teto do INSS, que vale para a iniciativa privada.
Apesar dessa imensa desigualdade, o governo avalia engrossar a fila de concessões para aprovar a reforma depois do Carnaval. Dessa vez, o afago deve ir para servidores que ingressaram antes de 2003.
Esses funcionários públicos recebem aposentadoria integral, o que significa igual ao seu último salário. Entre os principais beneficiários, estão juízes, procuradores e defensores da União.
"Disseminou-se a desinformação de que não existe regra de transição para os servidores mais antigos, que contribuíram mais para o sistema. Mas não é verdade", diz Pedro Fernando Nery, especialista em Previdência.
Pela proposta já em discussão no Congresso, se cumprirem a idade mínima de 62 anos para homens e 60 para mulheres, esses servidores manterão o direito à aposentadoria integral. Se decidirem se retirar do trabalho mais cedo, terão direito "só" ao salário médio obtido na carreira, o que é efetivamente mais justo em relação ao que contribuíram.
Representantes do Judiciário e do Ministério Público rebatem as críticas dizendo que os servidores não são o principal problema da Previdência, porque o deficit que provocam para o sistema está equilibrado no longo prazo. Isso, no entanto, é uma meia verdade.
Graças às reformas já feitas, funcionários públicos que ingressaram depois de 2013 estão sujeitos à idade mínima e ao teto do INSS. O problema é que esse pessoal só vai começar a se aposentar depois de 2035. Hoje 91% dos servidores ainda se aposenta com salário integral.
Será que vamos ter que esperar pelo menos mais 18 anos para que os brasileiros sejam todos iguais perante a Previdência Social?
Grupos de pressão do Poder Judiciário e do Ministério Público tentam emplacar a ideia de que a reforma da Previdência é um ataque à Operação Lava Jato. Argumentam que se trata de uma vingança do Executivo e do Congresso contra aqueles que perseguem políticos corruptos.
É verdade que a Lava Jato sofre bombardeios e que boa parte deles só tem justificativa em interesses escusos, mas isso não tem nada a ver com a reforma da Previdência. Misturar as discussões é oportunismo e má-fé.
A reforma da Previdência não é apenas essencial para evitar o colapso das contas públicas, é também uma questão de justiça social.
O valor médio mensal das aposentadorias do Poder Judiciário e do Ministério Público está em R$ 22,3 mil e R$ 19,12 mil, respectivamente. Só perdem para os R$ 28,88 mil pagos ao Legislativo, que ironicamente tem a missão de aprovar a reforma.
Esses números são muito superiores aos R$ 7,72 mil dos aposentados do Executivo e aos R$ 5,53 mil do teto do INSS, que vale para a iniciativa privada.
Apesar dessa imensa desigualdade, o governo avalia engrossar a fila de concessões para aprovar a reforma depois do Carnaval. Dessa vez, o afago deve ir para servidores que ingressaram antes de 2003.
Esses funcionários públicos recebem aposentadoria integral, o que significa igual ao seu último salário. Entre os principais beneficiários, estão juízes, procuradores e defensores da União.
"Disseminou-se a desinformação de que não existe regra de transição para os servidores mais antigos, que contribuíram mais para o sistema. Mas não é verdade", diz Pedro Fernando Nery, especialista em Previdência.
Pela proposta já em discussão no Congresso, se cumprirem a idade mínima de 62 anos para homens e 60 para mulheres, esses servidores manterão o direito à aposentadoria integral. Se decidirem se retirar do trabalho mais cedo, terão direito "só" ao salário médio obtido na carreira, o que é efetivamente mais justo em relação ao que contribuíram.
Representantes do Judiciário e do Ministério Público rebatem as críticas dizendo que os servidores não são o principal problema da Previdência, porque o deficit que provocam para o sistema está equilibrado no longo prazo. Isso, no entanto, é uma meia verdade.
Graças às reformas já feitas, funcionários públicos que ingressaram depois de 2013 estão sujeitos à idade mínima e ao teto do INSS. O problema é que esse pessoal só vai começar a se aposentar depois de 2035. Hoje 91% dos servidores ainda se aposenta com salário integral.
Será que vamos ter que esperar pelo menos mais 18 anos para que os brasileiros sejam todos iguais perante a Previdência Social?
Para acabar com o manicômio tributário - CARLOS RODOLFO SCHNEIDER
O GLOBO - 27/12
Planilha que uma empresa de bens de consumo precisa preencher na Europa para recolher tributos tem 50 linhas. O programa usado no Brasil tem 20 mil linhas
O relatório “Doing Business 2017: Medindo Qualidade e Eficiência”, do Banco Mundial, é um dos vários rankings que vêm apontando a queda de competitividade do Brasil. Entre 189 países pesquisados, caímos para a 123ª posição, vindo da 116ª em 2016 e da 111ª, em 2015. Os ex-ministros da Fazenda Maílson da Nóbrega e Joaquim Levy apontam que a reforma tributária, a começar pela simplificação da estrutura de impostos, é essencial para elevarmos a eficiência, a produtividade e a competitividade da nossa economia. Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal, afirma ser essa a agenda mais poderosa para aumentar a produtividade nos próximos anos, e recomenda a criação de um imposto sobre valor agregado para substituir os atuais tributos. A planilha que uma empresa de bens de consumo precisa preencher na Europa para recolher tributos tem 50 linhas. O programa usado no Brasil tem 20 mil linhas. É o nosso manicômio tributário.
O Movimento Brasil Eficiente (MBE) vem há vários anos trabalhando essa agenda e tem levado à discussão, especialmente no governo federal e no Congresso Nacional, o que chamou de Plano Real dos Impostos, uma proposta alicerçada nos seguintes pontos:
aglutinação de diversos tributos em um único Imposto sobre Valor Agregado na Circulação;
a criação de uma Operadora Nacional da Distribuição da Arrecadação, que garantirá a distribuição dos impostos de forma rápida, desburocratizada e neutra (sem ganhadores nem perdedores) a todos os entes da Federação;
o Novo Imposto de Renda agrupando o atual à Contribuição Social Sobre Lucro Líquido para cobrir os gastos da Previdência Social, inclusive a dos servidores públicos;
a criação do Conselho de Gestão Fiscal , para que a sociedade possa dar contribuição efetiva ao aumento da eficiência do gasto público.
A proposta foi elaborada pelo economista Paulo Rabello de Castro e pelo jurista Gastão Toledo, com a preocupação de acabar com a guerra fiscal, e construir um sistema claro e transparente; simples para quem paga, para quem arrecada e para quem fiscaliza. A PEC do MBE para a simplificação tributária vem sendo avaliada, e a criação do CGF já foi aprovada no Senado por proposição do senador Paulo Bauer. Agora tramita na Câmara dos Deputados — Projeto de Lei Complementar 210/2015.
Por outro lado, foi apresentada a uma comissão especial na Câmara a proposta de simplificação tributária do deputado Luiz Carlos Hauly, com quem o MBE interagiu intensamente. Mesmo tendo permanecido diferenças conceituais, entendemos que a sugestão convergiu em muitos pontos para o pensamento do MBE. A eliminação de dez impostos, a criação de um imposto sobre valor agregado e de mecanismos que acabem com a guerra fiscal serão propostos através de 11 projetos de lei e uma emenda à Constituição. Cabe ao Congresso entender a importância desse avanço.
O MBE entende que só com o aumento da eficiência do gasto público será possível reduzir esse peso de impostos, que, mesmo onerando mais uns do que outros, já é um lastro insuportável para todos. Pagamos com não competitividade.
Carlos Rodolfo Schneider é empresário e coordenador do Movimento Brasil Eficiente
O relatório “Doing Business 2017: Medindo Qualidade e Eficiência”, do Banco Mundial, é um dos vários rankings que vêm apontando a queda de competitividade do Brasil. Entre 189 países pesquisados, caímos para a 123ª posição, vindo da 116ª em 2016 e da 111ª, em 2015. Os ex-ministros da Fazenda Maílson da Nóbrega e Joaquim Levy apontam que a reforma tributária, a começar pela simplificação da estrutura de impostos, é essencial para elevarmos a eficiência, a produtividade e a competitividade da nossa economia. Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal, afirma ser essa a agenda mais poderosa para aumentar a produtividade nos próximos anos, e recomenda a criação de um imposto sobre valor agregado para substituir os atuais tributos. A planilha que uma empresa de bens de consumo precisa preencher na Europa para recolher tributos tem 50 linhas. O programa usado no Brasil tem 20 mil linhas. É o nosso manicômio tributário.
O Movimento Brasil Eficiente (MBE) vem há vários anos trabalhando essa agenda e tem levado à discussão, especialmente no governo federal e no Congresso Nacional, o que chamou de Plano Real dos Impostos, uma proposta alicerçada nos seguintes pontos:
aglutinação de diversos tributos em um único Imposto sobre Valor Agregado na Circulação;
a criação de uma Operadora Nacional da Distribuição da Arrecadação, que garantirá a distribuição dos impostos de forma rápida, desburocratizada e neutra (sem ganhadores nem perdedores) a todos os entes da Federação;
o Novo Imposto de Renda agrupando o atual à Contribuição Social Sobre Lucro Líquido para cobrir os gastos da Previdência Social, inclusive a dos servidores públicos;
a criação do Conselho de Gestão Fiscal , para que a sociedade possa dar contribuição efetiva ao aumento da eficiência do gasto público.
A proposta foi elaborada pelo economista Paulo Rabello de Castro e pelo jurista Gastão Toledo, com a preocupação de acabar com a guerra fiscal, e construir um sistema claro e transparente; simples para quem paga, para quem arrecada e para quem fiscaliza. A PEC do MBE para a simplificação tributária vem sendo avaliada, e a criação do CGF já foi aprovada no Senado por proposição do senador Paulo Bauer. Agora tramita na Câmara dos Deputados — Projeto de Lei Complementar 210/2015.
Por outro lado, foi apresentada a uma comissão especial na Câmara a proposta de simplificação tributária do deputado Luiz Carlos Hauly, com quem o MBE interagiu intensamente. Mesmo tendo permanecido diferenças conceituais, entendemos que a sugestão convergiu em muitos pontos para o pensamento do MBE. A eliminação de dez impostos, a criação de um imposto sobre valor agregado e de mecanismos que acabem com a guerra fiscal serão propostos através de 11 projetos de lei e uma emenda à Constituição. Cabe ao Congresso entender a importância desse avanço.
O MBE entende que só com o aumento da eficiência do gasto público será possível reduzir esse peso de impostos, que, mesmo onerando mais uns do que outros, já é um lastro insuportável para todos. Pagamos com não competitividade.
Carlos Rodolfo Schneider é empresário e coordenador do Movimento Brasil Eficiente
A expulsão do embaixador - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 27/12
Com a decisão de declarar 'persona non grata' o embaixador brasileiro na Venezuela, o governo de Maduro tenta fechar deliberadamente mais uma porta para o diálogo com seus vizinho
Com a decisão de declarar “persona non grata” o embaixador brasileiro na Venezuela, Ruy Pereira – o que significa a expulsão do representante, que se encontra no Brasil para as festas de fim de ano –, o governo do presidente Nicolás Maduro tenta fechar deliberadamente mais uma porta para o diálogo com seus vizinhos e, ao mesmo tempo, volta a usar a velha técnica de criar inimigo externo para desviar a atenção da grave crise em que o regime chavista mergulhou o país. Depois do imperialismo americano, chegou a vez de o Brasil e o Canadá – cujo encarregado de negócios foi também expulso – encarnarem aquele inimigo fictício.
O anúncio foi feito no sábado passado pela ex-chanceler Delcy Rodríguez, que agora preside a Assembleia Nacional Constituinte, controlada pelo chavismo e inventada por Maduro para usurpar os poderes da Assembleia Nacional na qual a oposição tem maioria. Em nova demonstração da desfaçatez que se tornou uma das marcas da ditadura que impera em seu país, Rodríguez declarou que aquela medida deve durar “até que se reconstitua o fio constitucional nesse país irmão”, retomando a velha cantilena chavista de que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff foi um “golpe”.
Maduro e seus acólitos não se conformam com a perda da cumplicidade de Lula da Silva, de Dilma Rousseff e do PT com seus desmandos autoritários. Eles estão entre os últimos que ainda insistem em não ver, ou em fingir que não veem, o desastre político, social e econômico em que o chavismo afundou a Venezuela. Com o governo do presidente Michel Temer, o Brasil abandonou essa aventura irresponsável. Não por acaso, dias antes da expulsão do embaixador brasileiro em Caracas, durante reunião de cúpula do Mercosul, Temer afirmou que a suspensão da Venezuela do bloco, com base na cláusula democrática, foi “uma medida que se impunha”.
E expressou o desejo de que esse país volte à democracia, quando então será recebido de braços abertos no Mercosul. No mesmo dia, o Itamaraty condenou em nota oficial a decisão de Maduro de dissolver os governos municipais da Grande Caracas e Alto Apure, qualificando-a de exemplo do “continuado assédio” contra a oposição. Foi-se o tempo dos afagos dos governos petistas ao autoritarismo chavista.
Embora tratando de forma dura os desmandos do chavismo, o governo brasileiro tem agido de forma serena e responsável. Declarou esperar a confirmação da decisão de considerar Ruy Pereira “persona non grata” – o que “demonstra, uma vez mais, o caráter autoritário da administração Nicolás Maduro e sua falta de disposição para qualquer tipo de diálogo” – para aplicar as medidas de reciprocidade que se impõem em casos como esse. Entre elas estará certamente dar o mesmo tratamento ao mais graduado representante da Venezuela em Brasília.
Mas tudo indica que, pelo menos no ponto em que a situação está, o Brasil insistirá em manter aberta a possibilidade de diálogo. Esse tem sido o comportamento do atual governo. O Brasil ficou sem embaixador em Caracas de agosto de 2016 – por causa da crise diplomática provocada pelo governo Maduro, com suas críticas ao processo de impeachment de Dilma Rousseff – até maio de 2017, quando enviou à Venezuela o diplomata Ruy Pereira.
Esse foi um gesto de boa vontade, não só pelo fato de o Brasil ter novamente um embaixador em Caracas, como também porque Pereira tinha diálogo fácil com os principais líderes chavistas e poderia se entender da mesma forma com os partidos de oposição. É esse canal de entendimento que Maduro tenta fechar e que o governo brasileiro parece disposto a manter aberto, enquanto isso for possível.
É um esforço feito certamente pensando no futuro, quando a Venezuela se livrar do chavismo. E também no presente, porque a crise humanitária, que se agrava a cada dia naquele país, exige que se pense em encontrar formas de ajudar o seu povo, apesar do regime que o oprime e infelicita.
Com a decisão de declarar 'persona non grata' o embaixador brasileiro na Venezuela, o governo de Maduro tenta fechar deliberadamente mais uma porta para o diálogo com seus vizinho
Com a decisão de declarar “persona non grata” o embaixador brasileiro na Venezuela, Ruy Pereira – o que significa a expulsão do representante, que se encontra no Brasil para as festas de fim de ano –, o governo do presidente Nicolás Maduro tenta fechar deliberadamente mais uma porta para o diálogo com seus vizinhos e, ao mesmo tempo, volta a usar a velha técnica de criar inimigo externo para desviar a atenção da grave crise em que o regime chavista mergulhou o país. Depois do imperialismo americano, chegou a vez de o Brasil e o Canadá – cujo encarregado de negócios foi também expulso – encarnarem aquele inimigo fictício.
O anúncio foi feito no sábado passado pela ex-chanceler Delcy Rodríguez, que agora preside a Assembleia Nacional Constituinte, controlada pelo chavismo e inventada por Maduro para usurpar os poderes da Assembleia Nacional na qual a oposição tem maioria. Em nova demonstração da desfaçatez que se tornou uma das marcas da ditadura que impera em seu país, Rodríguez declarou que aquela medida deve durar “até que se reconstitua o fio constitucional nesse país irmão”, retomando a velha cantilena chavista de que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff foi um “golpe”.
Maduro e seus acólitos não se conformam com a perda da cumplicidade de Lula da Silva, de Dilma Rousseff e do PT com seus desmandos autoritários. Eles estão entre os últimos que ainda insistem em não ver, ou em fingir que não veem, o desastre político, social e econômico em que o chavismo afundou a Venezuela. Com o governo do presidente Michel Temer, o Brasil abandonou essa aventura irresponsável. Não por acaso, dias antes da expulsão do embaixador brasileiro em Caracas, durante reunião de cúpula do Mercosul, Temer afirmou que a suspensão da Venezuela do bloco, com base na cláusula democrática, foi “uma medida que se impunha”.
E expressou o desejo de que esse país volte à democracia, quando então será recebido de braços abertos no Mercosul. No mesmo dia, o Itamaraty condenou em nota oficial a decisão de Maduro de dissolver os governos municipais da Grande Caracas e Alto Apure, qualificando-a de exemplo do “continuado assédio” contra a oposição. Foi-se o tempo dos afagos dos governos petistas ao autoritarismo chavista.
Embora tratando de forma dura os desmandos do chavismo, o governo brasileiro tem agido de forma serena e responsável. Declarou esperar a confirmação da decisão de considerar Ruy Pereira “persona non grata” – o que “demonstra, uma vez mais, o caráter autoritário da administração Nicolás Maduro e sua falta de disposição para qualquer tipo de diálogo” – para aplicar as medidas de reciprocidade que se impõem em casos como esse. Entre elas estará certamente dar o mesmo tratamento ao mais graduado representante da Venezuela em Brasília.
Mas tudo indica que, pelo menos no ponto em que a situação está, o Brasil insistirá em manter aberta a possibilidade de diálogo. Esse tem sido o comportamento do atual governo. O Brasil ficou sem embaixador em Caracas de agosto de 2016 – por causa da crise diplomática provocada pelo governo Maduro, com suas críticas ao processo de impeachment de Dilma Rousseff – até maio de 2017, quando enviou à Venezuela o diplomata Ruy Pereira.
Esse foi um gesto de boa vontade, não só pelo fato de o Brasil ter novamente um embaixador em Caracas, como também porque Pereira tinha diálogo fácil com os principais líderes chavistas e poderia se entender da mesma forma com os partidos de oposição. É esse canal de entendimento que Maduro tenta fechar e que o governo brasileiro parece disposto a manter aberto, enquanto isso for possível.
É um esforço feito certamente pensando no futuro, quando a Venezuela se livrar do chavismo. E também no presente, porque a crise humanitária, que se agrava a cada dia naquele país, exige que se pense em encontrar formas de ajudar o seu povo, apesar do regime que o oprime e infelicita.
Há juízes pintados para a guerra - ELIO GASPARI
FOLHA DE SP/O GLOBO - 27/12
Numa entrevista ao repórter Fausto Macedo, o presidente da Associação de Juízes Federais, Roberto Veloso, defendeu o auxílio-moradia de R$ 4.300 mensais livres de impostos pago aos seus pares e aos procuradores.
Uma parte de sua argumentação é sólida, pois, se o magistrado ou o procurador é transferido para outra cidade, faz sentido que receba algum auxílio. Quando Macedo levantou o tema do servidor que recebe o auxílio tendo casa própria na cidade em que vive há anos, Veloso respondeu que "não há uma ilegalidade no pagamento".
"Eu me referia a uma preocupação de caráter moral", esclareceu Macedo.
"Não estamos com essa preocupação. Não é uma pauta nossa", respondeu o presidente da Ajufe.
Alô, alô, Brasil, quando um juiz tem um pleito em nome de sua classe e diz que não se preocupa com a sua moralidade, a coisa está feia.
Segundo a Advocacia-Geral da União, o auxílio-moradia custa R$ 1 bilhão por ano. Dentro da lei, somando-se todos os penduricalhos dos servidores do Judiciário da União e dos Estados, chega-se a cifras assustadoras.
Um relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em janeiro passado estimou que em 2015 eles custaram R$ 7,2 bilhões. (As 30 toneladas de ouro tiradas de Serra Pelada valeriam R$ 4,6 bilhões em dinheiro de hoje.)
O problema dos penduricalhos volta para a pauta quando se sabe que 7 em 10 juízes ganham acima do teto constitucional de R$ 33 mil.
Na ponta do realismo fantástico, um juiz paulista que foi aposentado e cumpre pena de prisão em regime semiaberto por crime de extorsão recebeu em agosto passado um contracheque de R$ 52 mil. Tudo dentro da lei.
Os penduricalhos e os salários que produzem estão corroendo a imagem do Judiciário, logo a dele, onde uma centena de magistrados e procuradores fazem a grande faxina iniciada pela Lava Jato.
Essa questão pecuniária caiu no meio de um pagode, no qual ministros do Supremo se insultam, Gilmar Mendes descascou a Procuradoria-Geral de Rodrigo Janot e foi por ele acusado de "decrepitude moral".
Desde maio está no gavetão da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, um pedido de Janot para que o ministro seja impedido de julgar casos envolvendo o empresário Eike Batista.
Nas razões que apresentou para desqualificar o pedido de Janot, Gilmar Mendes incluiu um provérbio português como epígrafe: "Ninguém se livra de pedrada de doido nem de coice de burro". Não deu outra.
Caiu na rede um áudio atribuído ao juiz Glaucenir Oliveira, titular da Vara Eleitoral de Campos (RJ), que mandara prender o ex-governador Anthony Garotinho, solto por Gilmar.
Em inédita baixaria, o juiz disse que "eu não quero aqui ser leviano, estou vendendo peixe conforme eu comprei, de comentários ouvidos aqui em Campos hoje. [...] O que se cita aqui dentro do próprio grupo dele [Garotinho] é que a quantia foi alta. [...] A mala foi grande."
Esse é o preço cobrado ao espírito de corpo do Judiciário. Em 2011 o juiz Glaucenir dirigia sem cinto e viu que estava sendo multado por uma guarda municipal. Deu ré, carteirou-a e insultou-a.
Quando ela disse que o levaria à delegacia, o magistrado informou: "Quem vai te conduzir sou eu". Se ele não pagou a multa, a conta ficou para Gilmar Mendes. Ninguém se preocupa quando uma guarda municipal leva uma pedrada.
Numa entrevista ao repórter Fausto Macedo, o presidente da Associação de Juízes Federais, Roberto Veloso, defendeu o auxílio-moradia de R$ 4.300 mensais livres de impostos pago aos seus pares e aos procuradores.
Uma parte de sua argumentação é sólida, pois, se o magistrado ou o procurador é transferido para outra cidade, faz sentido que receba algum auxílio. Quando Macedo levantou o tema do servidor que recebe o auxílio tendo casa própria na cidade em que vive há anos, Veloso respondeu que "não há uma ilegalidade no pagamento".
"Eu me referia a uma preocupação de caráter moral", esclareceu Macedo.
"Não estamos com essa preocupação. Não é uma pauta nossa", respondeu o presidente da Ajufe.
Alô, alô, Brasil, quando um juiz tem um pleito em nome de sua classe e diz que não se preocupa com a sua moralidade, a coisa está feia.
Segundo a Advocacia-Geral da União, o auxílio-moradia custa R$ 1 bilhão por ano. Dentro da lei, somando-se todos os penduricalhos dos servidores do Judiciário da União e dos Estados, chega-se a cifras assustadoras.
Um relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em janeiro passado estimou que em 2015 eles custaram R$ 7,2 bilhões. (As 30 toneladas de ouro tiradas de Serra Pelada valeriam R$ 4,6 bilhões em dinheiro de hoje.)
O problema dos penduricalhos volta para a pauta quando se sabe que 7 em 10 juízes ganham acima do teto constitucional de R$ 33 mil.
Na ponta do realismo fantástico, um juiz paulista que foi aposentado e cumpre pena de prisão em regime semiaberto por crime de extorsão recebeu em agosto passado um contracheque de R$ 52 mil. Tudo dentro da lei.
Os penduricalhos e os salários que produzem estão corroendo a imagem do Judiciário, logo a dele, onde uma centena de magistrados e procuradores fazem a grande faxina iniciada pela Lava Jato.
Essa questão pecuniária caiu no meio de um pagode, no qual ministros do Supremo se insultam, Gilmar Mendes descascou a Procuradoria-Geral de Rodrigo Janot e foi por ele acusado de "decrepitude moral".
Desde maio está no gavetão da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, um pedido de Janot para que o ministro seja impedido de julgar casos envolvendo o empresário Eike Batista.
Nas razões que apresentou para desqualificar o pedido de Janot, Gilmar Mendes incluiu um provérbio português como epígrafe: "Ninguém se livra de pedrada de doido nem de coice de burro". Não deu outra.
Caiu na rede um áudio atribuído ao juiz Glaucenir Oliveira, titular da Vara Eleitoral de Campos (RJ), que mandara prender o ex-governador Anthony Garotinho, solto por Gilmar.
Em inédita baixaria, o juiz disse que "eu não quero aqui ser leviano, estou vendendo peixe conforme eu comprei, de comentários ouvidos aqui em Campos hoje. [...] O que se cita aqui dentro do próprio grupo dele [Garotinho] é que a quantia foi alta. [...] A mala foi grande."
Esse é o preço cobrado ao espírito de corpo do Judiciário. Em 2011 o juiz Glaucenir dirigia sem cinto e viu que estava sendo multado por uma guarda municipal. Deu ré, carteirou-a e insultou-a.
Quando ela disse que o levaria à delegacia, o magistrado informou: "Quem vai te conduzir sou eu". Se ele não pagou a multa, a conta ficou para Gilmar Mendes. Ninguém se preocupa quando uma guarda municipal leva uma pedrada.
A defesa do privilégio - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 27/12
Por alguns segundos, a procuradora da Câmara Municipal de Uberlândia ensaia responder às perguntas sobre o reajuste salarial de 20% que os vereadores da cidade mineira concederam a si próprios neste fim de ano, elevando seus vencimentos de R$ 15 mil para R$ 18 mil mensais.
Os argumentos, no entanto, logo escasseiam, e a servidora, num rompante colérico, toma o microfone das mãos do repórter de TV que a entrevista, joga o aparelho sobre a mesa e deixa a sala entre um impropério e uma ameaça.
A defesa de direitos e valores recebidos —ou extraídos— do poder público nem sempre chega às raias da intimidação física, mas costuma ser feroz e obstinada. No caso em tela, questionava-se tão somente como justificar aquelas somas na presente situação nacional.
Ou, vale dizer, num país em que a renda média mensal do trabalho é de R$ 2.127 e União, Estados e municípios amargam rombo anual de R$ 600 bilhões em suas contas.
Como regra geral, privilegiados renegam tal condição. Em recente manifestação favorável ao aumento dos salários dos servidores federais, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) alegou que um ganho mensal de R$ 27 mil —a média percebida no trabalho pelo 1% mais bem pago do país— "não representa a verdadeira riqueza".
O parlamentar, recorde-se, faz parte desse minúsculo contingente, remunerado que é pelo teto do serviço público, de R$ 33,8 mil. Esse limite, aliás, motivou queixas da ministra Luislinda Valois, dos Direitos Humanos, que há pouco deixou o PSDB para ficar no posto.
Mais bem-sucedidas em contornar o teto, como se sabe, têm sido as elites do Judiciário e do Ministério Público —graças a penduricalhos extrassalariais como o infame auxílio-moradia de quase R$ 4.400, generalizado por uma liminar de 2014 do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal.
Só agora, mais de três anos depois, o magistrado liberou para julgamento a ação que deu origem a sua decisão provisória. As corporações já se mobilizam pela preservação do benefício, que, a esta altura, consideram parte justa de seus rendimentos fixos.
Qualquer que seja o desfecho dessa causa em particular, é visível que o colapso orçamentário do país acirra a disputa pelas minguantes verbas disponíveis. Minorias influentes, representadas nos três Poderes, dão mostras de que brigarão por benesses de todas as modalidades e dimensões.
Por alguns segundos, a procuradora da Câmara Municipal de Uberlândia ensaia responder às perguntas sobre o reajuste salarial de 20% que os vereadores da cidade mineira concederam a si próprios neste fim de ano, elevando seus vencimentos de R$ 15 mil para R$ 18 mil mensais.
Os argumentos, no entanto, logo escasseiam, e a servidora, num rompante colérico, toma o microfone das mãos do repórter de TV que a entrevista, joga o aparelho sobre a mesa e deixa a sala entre um impropério e uma ameaça.
A defesa de direitos e valores recebidos —ou extraídos— do poder público nem sempre chega às raias da intimidação física, mas costuma ser feroz e obstinada. No caso em tela, questionava-se tão somente como justificar aquelas somas na presente situação nacional.
Ou, vale dizer, num país em que a renda média mensal do trabalho é de R$ 2.127 e União, Estados e municípios amargam rombo anual de R$ 600 bilhões em suas contas.
Como regra geral, privilegiados renegam tal condição. Em recente manifestação favorável ao aumento dos salários dos servidores federais, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) alegou que um ganho mensal de R$ 27 mil —a média percebida no trabalho pelo 1% mais bem pago do país— "não representa a verdadeira riqueza".
O parlamentar, recorde-se, faz parte desse minúsculo contingente, remunerado que é pelo teto do serviço público, de R$ 33,8 mil. Esse limite, aliás, motivou queixas da ministra Luislinda Valois, dos Direitos Humanos, que há pouco deixou o PSDB para ficar no posto.
Mais bem-sucedidas em contornar o teto, como se sabe, têm sido as elites do Judiciário e do Ministério Público —graças a penduricalhos extrassalariais como o infame auxílio-moradia de quase R$ 4.400, generalizado por uma liminar de 2014 do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal.
Só agora, mais de três anos depois, o magistrado liberou para julgamento a ação que deu origem a sua decisão provisória. As corporações já se mobilizam pela preservação do benefício, que, a esta altura, consideram parte justa de seus rendimentos fixos.
Qualquer que seja o desfecho dessa causa em particular, é visível que o colapso orçamentário do país acirra a disputa pelas minguantes verbas disponíveis. Minorias influentes, representadas nos três Poderes, dão mostras de que brigarão por benesses de todas as modalidades e dimensões.
Natal da recuperação - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 27/12
Mais vendas e mais empregos temporários, novos sinais de reativação da economia, marcaram o Natal no comércio varejista, segundo os primeiros balanços
Mais vendas e mais empregos temporários, novos sinais de reativação da economia, marcaram o Natal no comércio varejista, segundo os primeiros balanços. Lojistas de shopping centers faturaram R$ 51,2 bilhões, 6% mais que no ano passado, de acordo com a associação do setor, a Alshop. “Tivemos um faturamento importante”, disse o presidente da entidade, Nabil Sahyoun. “Vínhamos de dois Natais em queda”, acrescentou. O emprego temporário, com 115 mil contratações, foi 5% maior que o de 2016. Parte desse pessoal deverá ser mantida pelas empresas nos meses seguintes, como tem ocorrido em anos de atividade normal. Durante a recessão até as contratações temporárias foram decepcionantes.
Vendas 5,6% maiores que as de 2016, na semana de 18 a 24 de dezembro, foram estimadas pela Serasa, especializada em produção de informações para decisão empresarial. O desempenho do varejo neste Natal, depois de três anos de retração, foi apontado como o melhor desde 2010. Em São Paulo, o volume vendido foi 5,2% superior ao da semana de Natal de 2016, de acordo com o relatório.
Menos de uma semana antes do Natal, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) prognosticou uma celebração com “ceia mais caprichada e presentes com ligeira alta”. Com produtos mais acessíveis, as famílias poderiam festejar com maior fartura. As frutas haviam ficado 13,86% mais baratas, de janeiro a 10 de dezembro. O preço da farinha havia baixado 12,83% e o do bacalhau, 12,31%. Poucos itens encareceram a taxas superiores à da inflação. O lombo de porco foi um deles, com alta de preço de 6,58%.
Com a ceia garantida, sobraria mais dinheiro para presentes, de acordo com a nota publicada pela FGV no dia 19. Os preços dos 19 produtos monitorados subiram em média apenas 0,67%. Alguns caíram sensivelmente, como os do telefone celular (baixa de 6,57%) e do forno de micro-ondas (queda de 4,16%). Calçados infantis subiram 5,67% e jogos para recreação, 4,49%, batendo a inflação, mas com alta muito menor que em anos anteriores.
O Natal mais animado resultou da combinação de vários fatores positivos. O recuo da inflação é um dos mais importantes. Pelas contas da FGV, os preços ao consumidor subiram 3,15% no ano, até 10 de dezembro. A mesma taxa foi estimada para o período de 12 meses. Os números calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são até um pouco melhores, com a inflação do consumidor abaixo de 3% até a primeira quinzena deste mês. Com pequenas diferenças, os vários indicadores apontam, de toda forma, uma forte contenção da alta de preços. Uma das consequências foi a preservação da renda familiar e, portanto, da capacidade de consumo dos brasileiros.
A criação de empregos também reforçou o orçamento. O desemprego continua acima de 12% da força de trabalho, mas o aumento das contratações já contribuiu para a ampliação do poder de compra e para a melhora de expectativas dos consumidores. Em dezembro, o índice de confiança medido pela FGV recuou 0,4 ponto, depois de três meses de alta, mas ficou 13,3 pontos acima do nível de um ano antes.
A redução dos juros facilitou a expansão do crédito às pessoas físicas. Muita gente renegociou dívidas em melhores condições e um grande número de famílias voltou a dispor de algum potencial de consumo, depois de dois anos de restrições muito severas.
Todos esses fatores produziram estímulos à produção e, portanto, à melhora do emprego, alimentando um ciclo de reativação dos negócios. A recuperação apenas começou e deve ganhar impulso em 2018. Pela mediana das projeções de mercado, o Produto Interno Bruto (PIB) deverá crescer 2,68% em 2018 e 2,89% em 2019, consolidando o ciclo iniciado em 2017.
Se os fatos confirmarem essas expectativas, o Brasil combinará crescimento com inflação contida e – muito importante – com finanças públicas mais equilibradas e mais eficientes. Sem este último detalhe – finanças públicas em condições bem melhores –, todo o resto do cenário poderá desmoronar. Convém espalhar essa informação em Brasília.
Mais vendas e mais empregos temporários, novos sinais de reativação da economia, marcaram o Natal no comércio varejista, segundo os primeiros balanços
Mais vendas e mais empregos temporários, novos sinais de reativação da economia, marcaram o Natal no comércio varejista, segundo os primeiros balanços. Lojistas de shopping centers faturaram R$ 51,2 bilhões, 6% mais que no ano passado, de acordo com a associação do setor, a Alshop. “Tivemos um faturamento importante”, disse o presidente da entidade, Nabil Sahyoun. “Vínhamos de dois Natais em queda”, acrescentou. O emprego temporário, com 115 mil contratações, foi 5% maior que o de 2016. Parte desse pessoal deverá ser mantida pelas empresas nos meses seguintes, como tem ocorrido em anos de atividade normal. Durante a recessão até as contratações temporárias foram decepcionantes.
Vendas 5,6% maiores que as de 2016, na semana de 18 a 24 de dezembro, foram estimadas pela Serasa, especializada em produção de informações para decisão empresarial. O desempenho do varejo neste Natal, depois de três anos de retração, foi apontado como o melhor desde 2010. Em São Paulo, o volume vendido foi 5,2% superior ao da semana de Natal de 2016, de acordo com o relatório.
Menos de uma semana antes do Natal, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) prognosticou uma celebração com “ceia mais caprichada e presentes com ligeira alta”. Com produtos mais acessíveis, as famílias poderiam festejar com maior fartura. As frutas haviam ficado 13,86% mais baratas, de janeiro a 10 de dezembro. O preço da farinha havia baixado 12,83% e o do bacalhau, 12,31%. Poucos itens encareceram a taxas superiores à da inflação. O lombo de porco foi um deles, com alta de preço de 6,58%.
Com a ceia garantida, sobraria mais dinheiro para presentes, de acordo com a nota publicada pela FGV no dia 19. Os preços dos 19 produtos monitorados subiram em média apenas 0,67%. Alguns caíram sensivelmente, como os do telefone celular (baixa de 6,57%) e do forno de micro-ondas (queda de 4,16%). Calçados infantis subiram 5,67% e jogos para recreação, 4,49%, batendo a inflação, mas com alta muito menor que em anos anteriores.
O Natal mais animado resultou da combinação de vários fatores positivos. O recuo da inflação é um dos mais importantes. Pelas contas da FGV, os preços ao consumidor subiram 3,15% no ano, até 10 de dezembro. A mesma taxa foi estimada para o período de 12 meses. Os números calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são até um pouco melhores, com a inflação do consumidor abaixo de 3% até a primeira quinzena deste mês. Com pequenas diferenças, os vários indicadores apontam, de toda forma, uma forte contenção da alta de preços. Uma das consequências foi a preservação da renda familiar e, portanto, da capacidade de consumo dos brasileiros.
A criação de empregos também reforçou o orçamento. O desemprego continua acima de 12% da força de trabalho, mas o aumento das contratações já contribuiu para a ampliação do poder de compra e para a melhora de expectativas dos consumidores. Em dezembro, o índice de confiança medido pela FGV recuou 0,4 ponto, depois de três meses de alta, mas ficou 13,3 pontos acima do nível de um ano antes.
A redução dos juros facilitou a expansão do crédito às pessoas físicas. Muita gente renegociou dívidas em melhores condições e um grande número de famílias voltou a dispor de algum potencial de consumo, depois de dois anos de restrições muito severas.
Todos esses fatores produziram estímulos à produção e, portanto, à melhora do emprego, alimentando um ciclo de reativação dos negócios. A recuperação apenas começou e deve ganhar impulso em 2018. Pela mediana das projeções de mercado, o Produto Interno Bruto (PIB) deverá crescer 2,68% em 2018 e 2,89% em 2019, consolidando o ciclo iniciado em 2017.
Se os fatos confirmarem essas expectativas, o Brasil combinará crescimento com inflação contida e – muito importante – com finanças públicas mais equilibradas e mais eficientes. Sem este último detalhe – finanças públicas em condições bem melhores –, todo o resto do cenário poderá desmoronar. Convém espalhar essa informação em Brasília.
terça-feira, dezembro 26, 2017
Natal - CARLOS ANDREAZZA
O Globo - 26/12
Era linda a nossa árvore, um pinheiro de verdade, que escolhíamos e enfeitávamos juntos. Ali, insisto, o menino não morrera, permanecia qual um milagre
Na véspera de Natal, grupos saíram de madrugada para doar comida e roupas aos sem-teto que vivem nas ruas do Centro do Rio. Perdi meu pai cedo, aos 9 anos — dias depois de completar 9 anos. Embora já fosse idade para memória, lembro-me de pouco. Lembro-me pouco de pouco. E é mesmo provável que esses poucos nem sequer isso sejam; que minhas recordações sejam terceirizadas, extraídas das fotos. Precisei me tornar adulto para compreender e admitir esse bloqueio. Um embaraço — obstrução — que é tão parte minha quanto a saudade. Sinto saudade de meu pai — e de ter pai. Sofri, sofro ainda, a angústia — espécie de culpa — por intuir que essa segunda fosse maior, mais legítima, que a primeira.
Havia a questão perturbadora: como posso sentir falta se tenho dúvida sobre se lembro dele? A questão se transformaria — pai que hoje sou: como posso falar para minha filha do avô se me falta a certeza de que me recordo dele? É o progresso da corrupção da intimidade: da desconfiança de que me enganava à de que engano. A questão transforma-se sempre — transtorna-se, ramifica-se. Sou um filho fingido, um pai fingidor? E poderia ser diferente? Poderei? Será fé excessiva crer que minha pequena possa me curar do cinismo afetivo em que me refugiei? Será sinal de esperança esse de que só hoje — pai — vim a temer a morte, a minha? Temeria a morte papai? Terá morrido sem temê-la? Terá lhe faltado tempo até para o medo, meu Deus?
Por anos fantasiei uma súbita recuperação da memória, especulei sobre gatilhos que provocariam o destravar das lembranças, e só fui me apaziguar quando, derrotado desde sempre, enfrentei o luto de que aquilo que desejava reconstituir — a vida de papai — era ouvi-lo me contar de nós dois. Meu pai morreu duas vezes. A última, não faz muito, quando enterrei o moleque que devo ter sido; aquele que meu velho, morto tão jovem, jamais poderia confirmar — chancelar. Não era a minha memória o que sonhava recompor; mas a dele comigo. A morte de papai foi também a morte de minha infância, com uma exceção, um sobrevivente: o Natal.
Talvez fossem — sejam — ainda as fotografias, mas me habituei a acreditar que me haviam sobrado reminiscências, poucas de pouco, de Natais com meu pai. O ideal fundador da integridade por muitos anos; meu primeiro núcleo duro reunido — juro que me lembro das manhãs de cada dia 25 de quando a criança vivia: papai, mamãe, meu irmão, minha irmã e eu. Era linda a nossa árvore, um pinheiro de verdade, que escolhíamos e enfeitávamos juntos. Ali, insisto, o menino não morrera — permanecia qual um milagre da memória.
Mas quem disse que era bom, que tinha de ser simples?
Porque me lembrava, ou porque acreditava me lembrar, o ideal da integridade se tornou o ideal da integridade corrompida, perdida. Exatamente porque me lembrava, passei a odiar o Natal, tornado depois indiferente, e eu, apaziguado — conformado? — ano afora, para sempre um ressentido em dezembro: eu me recordava, recordo, eu sinto, vejo mesmo as cores, os detalhes dos enfeites; e aquilo, porém, isso de que ainda me lembro, até do cheiro, isso acabara, estancara, me fora tomado, quebrado, confinado ao passado, sem futuro, esmigalhado na bolinha de papel em que se havia convertido o automóvel.
Como não ser cínico? Se a opção era o ressentimento, como não ser cínico? Como não blefar com a hipocrisia de que melhor seria não lembrar?
Ocorre que também as sentenças se transformam — porque a humanidade se impõe, desafia a desfaçatez, e porque a natureza, sobretudo a natureza, dá novas chances. Falo de amor — o único lugar de fala, a única revolução. E então me reencontro, reinvento-me: meu pai não morreu duas vezes. Ou talvez tenha morrido, a última sendo mesmo aquela em que enterrei o moleque que devo ter sido. É que — tento explicar a confusão — o moleque renasceu, ressuscitou, reinventou-se. O moleque — por que não? — nasceu duas vezes; a última, há pouco mais de dois anos, no exato instante em que minha Carol deu à luz. É ele, o menino, quem escreve este texto. O menino que é pai; que é menino porque pai. É que nos veio a Manuela, a graça que descongelou — reanimou — o Natal em mim; que me recosturou à tradição familiar; que me devolveu a infância naquela que embalo; que me fez atentar novamente para o canto da cigarra; que me deu a fortuna de uma nova manhã do dia 25.
Sei que cada um é suas circunstâncias, mas creio no efeito de valor universal — creio que minha palavra encontrará as circunstâncias de cada um — para desejar a todos que reencontrem o Natal.
Era linda a nossa árvore, um pinheiro de verdade, que escolhíamos e enfeitávamos juntos. Ali, insisto, o menino não morrera, permanecia qual um milagre
Na véspera de Natal, grupos saíram de madrugada para doar comida e roupas aos sem-teto que vivem nas ruas do Centro do Rio. Perdi meu pai cedo, aos 9 anos — dias depois de completar 9 anos. Embora já fosse idade para memória, lembro-me de pouco. Lembro-me pouco de pouco. E é mesmo provável que esses poucos nem sequer isso sejam; que minhas recordações sejam terceirizadas, extraídas das fotos. Precisei me tornar adulto para compreender e admitir esse bloqueio. Um embaraço — obstrução — que é tão parte minha quanto a saudade. Sinto saudade de meu pai — e de ter pai. Sofri, sofro ainda, a angústia — espécie de culpa — por intuir que essa segunda fosse maior, mais legítima, que a primeira.
Havia a questão perturbadora: como posso sentir falta se tenho dúvida sobre se lembro dele? A questão se transformaria — pai que hoje sou: como posso falar para minha filha do avô se me falta a certeza de que me recordo dele? É o progresso da corrupção da intimidade: da desconfiança de que me enganava à de que engano. A questão transforma-se sempre — transtorna-se, ramifica-se. Sou um filho fingido, um pai fingidor? E poderia ser diferente? Poderei? Será fé excessiva crer que minha pequena possa me curar do cinismo afetivo em que me refugiei? Será sinal de esperança esse de que só hoje — pai — vim a temer a morte, a minha? Temeria a morte papai? Terá morrido sem temê-la? Terá lhe faltado tempo até para o medo, meu Deus?
Por anos fantasiei uma súbita recuperação da memória, especulei sobre gatilhos que provocariam o destravar das lembranças, e só fui me apaziguar quando, derrotado desde sempre, enfrentei o luto de que aquilo que desejava reconstituir — a vida de papai — era ouvi-lo me contar de nós dois. Meu pai morreu duas vezes. A última, não faz muito, quando enterrei o moleque que devo ter sido; aquele que meu velho, morto tão jovem, jamais poderia confirmar — chancelar. Não era a minha memória o que sonhava recompor; mas a dele comigo. A morte de papai foi também a morte de minha infância, com uma exceção, um sobrevivente: o Natal.
Talvez fossem — sejam — ainda as fotografias, mas me habituei a acreditar que me haviam sobrado reminiscências, poucas de pouco, de Natais com meu pai. O ideal fundador da integridade por muitos anos; meu primeiro núcleo duro reunido — juro que me lembro das manhãs de cada dia 25 de quando a criança vivia: papai, mamãe, meu irmão, minha irmã e eu. Era linda a nossa árvore, um pinheiro de verdade, que escolhíamos e enfeitávamos juntos. Ali, insisto, o menino não morrera — permanecia qual um milagre da memória.
Mas quem disse que era bom, que tinha de ser simples?
Porque me lembrava, ou porque acreditava me lembrar, o ideal da integridade se tornou o ideal da integridade corrompida, perdida. Exatamente porque me lembrava, passei a odiar o Natal, tornado depois indiferente, e eu, apaziguado — conformado? — ano afora, para sempre um ressentido em dezembro: eu me recordava, recordo, eu sinto, vejo mesmo as cores, os detalhes dos enfeites; e aquilo, porém, isso de que ainda me lembro, até do cheiro, isso acabara, estancara, me fora tomado, quebrado, confinado ao passado, sem futuro, esmigalhado na bolinha de papel em que se havia convertido o automóvel.
Como não ser cínico? Se a opção era o ressentimento, como não ser cínico? Como não blefar com a hipocrisia de que melhor seria não lembrar?
Ocorre que também as sentenças se transformam — porque a humanidade se impõe, desafia a desfaçatez, e porque a natureza, sobretudo a natureza, dá novas chances. Falo de amor — o único lugar de fala, a única revolução. E então me reencontro, reinvento-me: meu pai não morreu duas vezes. Ou talvez tenha morrido, a última sendo mesmo aquela em que enterrei o moleque que devo ter sido. É que — tento explicar a confusão — o moleque renasceu, ressuscitou, reinventou-se. O moleque — por que não? — nasceu duas vezes; a última, há pouco mais de dois anos, no exato instante em que minha Carol deu à luz. É ele, o menino, quem escreve este texto. O menino que é pai; que é menino porque pai. É que nos veio a Manuela, a graça que descongelou — reanimou — o Natal em mim; que me recosturou à tradição familiar; que me devolveu a infância naquela que embalo; que me fez atentar novamente para o canto da cigarra; que me deu a fortuna de uma nova manhã do dia 25.
Sei que cada um é suas circunstâncias, mas creio no efeito de valor universal — creio que minha palavra encontrará as circunstâncias de cada um — para desejar a todos que reencontrem o Natal.
Precisamos comer terra - BERNARD APPY
ESTADÃO - 26/12
Temos de entender que só é possível mudar o Brasil saindo de nossa zona de conforto
Começo minha última coluna do ano com um poema de Manuel Bandeira, um poema sobre a paixão em sua forma mais pura.
Estrela da Manhã
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas
cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
Tem sido difícil ser brasileiro nos últimos tempos, mas o desânimo não é uma solução. Só com paixão conseguiremos sair desta enrascada. Mas paixão não é radicalização. Não é nos apegando aos nossos preconceitos e privilégios – e rejeitando todas as ideias diferentes das nossas – que encontraremos a estrela da manhã.
A única forma de mudar o Brasil é comendo um pouco de terra. É entendendo que teremos, todos, de ceder um pouco para que tenhamos um país mais justo, produtivo, equilibrado e em que a lei valha para todos.
Precisamos entender que o mercado não resolve tudo nem é capaz de reduzir as desigualdades sociais, mas que o Estado tem limites e não pode prover tudo para todos.
Entender que nós, que somos mais ricos que a maioria da população brasileira, teremos de perder um pouco para que tenhamos um país onde todos tenham oportunidades. Que teremos de nos aposentar um pouco mais tarde para que nossos filhos e netos também possam se aposentar.
Precisamos entender que é bom que haja competição em todos os mercados, principalmente no nosso. Que um país justo pressupõe regras iguais para todos, dos direitos civis à tributação, passando pela Previdência. Que políticas sociais são importantes, mas que equilíbrio fiscal, aumento da produtividade e eficiência no gasto público também são.
Entender que o País só pode crescer com regras claras e estáveis. Que ricos devem pagar mais impostos que pobres. Que excesso de discricionariedade na concessão de benefícios com recursos públicos é uma porta aberta para a corrupção. Que o Brasil não está isolado do mundo, o que limita o que podemos fazer. Que privilégios financiados com dinheiro público são uma forma de apropriação privada de recursos que deveriam beneficiar toda a sociedade.
Temos de entender que só é possível combater a corrupção se todos estiverem sujeitos às mesmas regras, a começar pelos políticos. Que a política é importante e nossos votos também. Que somos responsáveis por nossas escolhas e que não podemos nos isentar do que ocorre em Brasília.
Precisamos entender que só é possível mudar o Brasil saindo de nossa zona de conforto. Que apenas ouvindo os outros conseguiremos encontrar uma saída. Que, se resistirmos a reavaliar nossos privilégios e nossos preconceitos, dificilmente avançaremos. Que só com paixão e esforço conseguiremos melhorar nosso país e que para encontrar a estrela da manhã vale tudo, menos orgulho e indiferença.
DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL
Temos de entender que só é possível mudar o Brasil saindo de nossa zona de conforto
Começo minha última coluna do ano com um poema de Manuel Bandeira, um poema sobre a paixão em sua forma mais pura.
Estrela da Manhã
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas
cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
Tem sido difícil ser brasileiro nos últimos tempos, mas o desânimo não é uma solução. Só com paixão conseguiremos sair desta enrascada. Mas paixão não é radicalização. Não é nos apegando aos nossos preconceitos e privilégios – e rejeitando todas as ideias diferentes das nossas – que encontraremos a estrela da manhã.
A única forma de mudar o Brasil é comendo um pouco de terra. É entendendo que teremos, todos, de ceder um pouco para que tenhamos um país mais justo, produtivo, equilibrado e em que a lei valha para todos.
Precisamos entender que o mercado não resolve tudo nem é capaz de reduzir as desigualdades sociais, mas que o Estado tem limites e não pode prover tudo para todos.
Entender que nós, que somos mais ricos que a maioria da população brasileira, teremos de perder um pouco para que tenhamos um país onde todos tenham oportunidades. Que teremos de nos aposentar um pouco mais tarde para que nossos filhos e netos também possam se aposentar.
Precisamos entender que é bom que haja competição em todos os mercados, principalmente no nosso. Que um país justo pressupõe regras iguais para todos, dos direitos civis à tributação, passando pela Previdência. Que políticas sociais são importantes, mas que equilíbrio fiscal, aumento da produtividade e eficiência no gasto público também são.
Entender que o País só pode crescer com regras claras e estáveis. Que ricos devem pagar mais impostos que pobres. Que excesso de discricionariedade na concessão de benefícios com recursos públicos é uma porta aberta para a corrupção. Que o Brasil não está isolado do mundo, o que limita o que podemos fazer. Que privilégios financiados com dinheiro público são uma forma de apropriação privada de recursos que deveriam beneficiar toda a sociedade.
Temos de entender que só é possível combater a corrupção se todos estiverem sujeitos às mesmas regras, a começar pelos políticos. Que a política é importante e nossos votos também. Que somos responsáveis por nossas escolhas e que não podemos nos isentar do que ocorre em Brasília.
Precisamos entender que só é possível mudar o Brasil saindo de nossa zona de conforto. Que apenas ouvindo os outros conseguiremos encontrar uma saída. Que, se resistirmos a reavaliar nossos privilégios e nossos preconceitos, dificilmente avançaremos. Que só com paixão e esforço conseguiremos melhorar nosso país e que para encontrar a estrela da manhã vale tudo, menos orgulho e indiferença.
DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL
O bolivarianismo mata suas crianças de fome - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR
GAZETA DO POVO - 26/12
Preocupado única e exclusivamente com sua perpetuação no poder, Maduro fechou os olhos e condenou milhares de bebês e crianças venezuelanas
Quando a Venezuela começou a sofrer com a escassez de produtos básicos, incluindo papel higiênico, a ditadura chavista de Nicolás Maduro encarregou o presidente do Instituto Nacional de Estatísticas de ir a público afirmar que o país estava precisando importar 39 milhões de rolos porque a população “estava comendo mais”. Em maio de 2013, a surreal justificativa foi vista como piada, mas agora ganha contornos muito macabros quando vem à tona o horror revelado por um trabalho de reportagem do jornal The New York Times: a crise causada pelo bolivarianismo está matando de fome as crianças venezuelanas.
Em cinco meses acompanhando a rotina de hospitais por toda a Venezuela, os repórteres ouviram médicos comparando a situação à de campos de refugiados, em termos de desnutrição. A fórmula artificial que substitui o leite materno virou artigo de luxo: se nem mesmo as alas de emergência a têm em estoque, imagine-se os supermercados – e, quando o produto está disponível, nem sempre as famílias têm dinheiro para comprá-lo, graças à hiperinflação. Crianças chegam aos hospitais com o mesmo peso de recém-nascidos, e nem sempre há leitos para bebês.
O governo escondeu este terror da população ao não publicar as estatísticas de mortalidade infantil por dois anos
Tudo isso foi deliberadamente escondido da população pelo governo, que não publicou as estatísticas de mortalidade infantil por dois anos, até que elas ficaram disponíveis por pouco tempo no site do Ministério da Saúde. Em 2016, 11.416 crianças com menos de 1 ano tinham morrido, 30% mais que em 2015. Entre 2012 e 2015, a taxa de mortalidade de bebês de até 4 semanas havia subido 100 vezes. Os dados sumiram rapidamente do site, o governo alegou invasão de hackers e a ministra Antonieta Caporale foi demitida – não por causa da situação das crianças, obviamente, mas devido à exposição internacional desta catástrofe humanitária. Os militares fiéis ao chavismo assumiram a missão de monitorar os dados de saúde e nunca mais houve divulgação de dados. Médicos disseram a jornalistas que são proibidos de informar, nos registros, que uma criança está desnutrida ou morreu por falta de comida. Mesmo assim, uma contagem clandestina revela a existência de pelo menos 2,8 mil casos de desnutrição no último ano, com 400 mortes.
A fome que vitima as crianças também tem seus reflexos sobre os adultos. Pais e familiares perdem peso e adoecem ao se privar da pouca comida existente para que as crianças possam comer, e são obrigados a revirar o lixo nas ruas e dos restaurantes, depois que eles fecham, enfrentando gangues armadas, “especializadas” nesse tipo de atividade.
União Soviética, China, Camboja, Coreia do Norte, Etiópia, Zimbábue... socialismo e fome têm sido sinônimos desde os primórdios dos regimes totalitários de esquerda, seja deliberadamente, como no caso do Holodomor, o genocídio pela fome da população ucraniana ordenado por Stalin, seja como consequência pura e simples da implantação de políticas de coletivização da agricultura destinadas ao fracasso desde seu início. Quando o “socialismo do século 21” de Hugo Chávez e Nicolás Maduro levou à crise de abastecimento nos supermercados venezuelanos, o terror das mortes de crianças começava a se desenhar. Mas, preocupado única e exclusivamente com sua perpetuação no poder, Maduro fechou os olhos e condenou milhares de bebês e crianças venezuelanas.
Mesmo assim, a ditadura venezuelana continua contando com forte apoio de formadores de opinião, políticos e partidos de esquerda brasileiros, especialmente o PT (cuja presidente, a senadora Gleisi Hoffmann, não esconde em seus pronunciamentos o entusiasmo pelo chavismo) e o PSol, ainda que alguns membros deste partido façam críticas tímidas a Maduro, sempre apelando ao truque da equivalência moral para alegar que as ações da oposição são praticamente tão graves quanto as do ditador bolivariano. Prestigiar dessa forma um regime que mata suas crianças de fome já não é mais mera camaradagem ideológica: é perversidade pura e simples.
Preocupado única e exclusivamente com sua perpetuação no poder, Maduro fechou os olhos e condenou milhares de bebês e crianças venezuelanas
Quando a Venezuela começou a sofrer com a escassez de produtos básicos, incluindo papel higiênico, a ditadura chavista de Nicolás Maduro encarregou o presidente do Instituto Nacional de Estatísticas de ir a público afirmar que o país estava precisando importar 39 milhões de rolos porque a população “estava comendo mais”. Em maio de 2013, a surreal justificativa foi vista como piada, mas agora ganha contornos muito macabros quando vem à tona o horror revelado por um trabalho de reportagem do jornal The New York Times: a crise causada pelo bolivarianismo está matando de fome as crianças venezuelanas.
Em cinco meses acompanhando a rotina de hospitais por toda a Venezuela, os repórteres ouviram médicos comparando a situação à de campos de refugiados, em termos de desnutrição. A fórmula artificial que substitui o leite materno virou artigo de luxo: se nem mesmo as alas de emergência a têm em estoque, imagine-se os supermercados – e, quando o produto está disponível, nem sempre as famílias têm dinheiro para comprá-lo, graças à hiperinflação. Crianças chegam aos hospitais com o mesmo peso de recém-nascidos, e nem sempre há leitos para bebês.
O governo escondeu este terror da população ao não publicar as estatísticas de mortalidade infantil por dois anos
Tudo isso foi deliberadamente escondido da população pelo governo, que não publicou as estatísticas de mortalidade infantil por dois anos, até que elas ficaram disponíveis por pouco tempo no site do Ministério da Saúde. Em 2016, 11.416 crianças com menos de 1 ano tinham morrido, 30% mais que em 2015. Entre 2012 e 2015, a taxa de mortalidade de bebês de até 4 semanas havia subido 100 vezes. Os dados sumiram rapidamente do site, o governo alegou invasão de hackers e a ministra Antonieta Caporale foi demitida – não por causa da situação das crianças, obviamente, mas devido à exposição internacional desta catástrofe humanitária. Os militares fiéis ao chavismo assumiram a missão de monitorar os dados de saúde e nunca mais houve divulgação de dados. Médicos disseram a jornalistas que são proibidos de informar, nos registros, que uma criança está desnutrida ou morreu por falta de comida. Mesmo assim, uma contagem clandestina revela a existência de pelo menos 2,8 mil casos de desnutrição no último ano, com 400 mortes.
A fome que vitima as crianças também tem seus reflexos sobre os adultos. Pais e familiares perdem peso e adoecem ao se privar da pouca comida existente para que as crianças possam comer, e são obrigados a revirar o lixo nas ruas e dos restaurantes, depois que eles fecham, enfrentando gangues armadas, “especializadas” nesse tipo de atividade.
União Soviética, China, Camboja, Coreia do Norte, Etiópia, Zimbábue... socialismo e fome têm sido sinônimos desde os primórdios dos regimes totalitários de esquerda, seja deliberadamente, como no caso do Holodomor, o genocídio pela fome da população ucraniana ordenado por Stalin, seja como consequência pura e simples da implantação de políticas de coletivização da agricultura destinadas ao fracasso desde seu início. Quando o “socialismo do século 21” de Hugo Chávez e Nicolás Maduro levou à crise de abastecimento nos supermercados venezuelanos, o terror das mortes de crianças começava a se desenhar. Mas, preocupado única e exclusivamente com sua perpetuação no poder, Maduro fechou os olhos e condenou milhares de bebês e crianças venezuelanas.
Mesmo assim, a ditadura venezuelana continua contando com forte apoio de formadores de opinião, políticos e partidos de esquerda brasileiros, especialmente o PT (cuja presidente, a senadora Gleisi Hoffmann, não esconde em seus pronunciamentos o entusiasmo pelo chavismo) e o PSol, ainda que alguns membros deste partido façam críticas tímidas a Maduro, sempre apelando ao truque da equivalência moral para alegar que as ações da oposição são praticamente tão graves quanto as do ditador bolivariano. Prestigiar dessa forma um regime que mata suas crianças de fome já não é mais mera camaradagem ideológica: é perversidade pura e simples.
A base curricular nacional - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 26/12
Documento é uma oportunidade ímpar para promover as mudanças educacionais de que o Brasil necessita para crescer e proporcionar a inclusão social
Depois de sucessivos adiamentos, o Conselho Nacional de Educação (CNE) finalmente aprovou - por 19 votos contra 3 - a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que determinará os objetivos de aprendizagem para o ensino infantil e o ensino fundamental e orientará a formação de professores e a produção de livros didáticos. Apesar de o prazo para que as redes pública e privada adaptem seus currículos às novas orientações expirar em 2020, o Ministério da Educação (MEC) já anunciou que começará a avaliar seus resultados em 2019, nas disciplinas de Matemática, Português e Geografia. O documento não trata do ensino médio. Considerado o mais problemático de todos os ciclos educacionais, ele será objeto de uma proposta específica, sem data para ser apresentada.
Prevista pelo Plano Nacional de Educação (PNE) e inspirada nas políticas educacionais dos países mais bem classificados nos rankings internacionais de qualidade de ensino, a BNCC tem 466 páginas e prevê as habilidades e competências que os alunos precisam dominar até o fim de cada ano. Desde que começou a ser escrita, em 2015, a BNCC teve quatro versões, das quais três foram objeto de acirradas polêmicas. A primeira foi elaborada por especialistas cujos nomes estranhamente não foram divulgados pelo MEC. Na época, o órgão afirmou ter recebido 10 milhões de sugestões dos setores interessados, mas não explicou como as incorporou no documento. Ele acabou sendo mal recebido por causa de suas omissões e imprecisões em disciplinas fundamentais. E também foi duramente criticado pelo viés ideológico conferido à disciplina de História, que dava mais importância à história africana e ameríndia do que à civilização europeia, a pretexto de valorizar o tema da escravidão de negros e índios. As duas versões seguintes também foram mal recebidas, seja por dar ao ensino de religião e “formas de vida” o mesmo status de área do conhecimento como matemática e português, seja por privilegiar modismos pedagógicos, introduzindo diretrizes sobre orientação sexual e igualdade de gênero. Para aplacar as resistências, reduzir as críticas e assegurar a aprovação da BNCC ainda em 2017, as atuais autoridades educacionais sensatamente removeram esses modismos, ao mesmo tempo que introduziram diretrizes sobre conhecimento de tecnologia. Também detalharam o que se deve esperar das crianças nos dois primeiros anos do ensino fundamental, em matéria de alfabetização e leitura e compreensão de textos.
Entre os pontos positivos do documento aprovado pelo CNE, destacam-se as medidas pedagógicas que tratam das habilidades que os alunos têm de desenvolver à medida que evoluem no ensino fundamental. Essas medidas são importantes para que eles consigam compreender o que leem e analisar criticamente as diferentes informações que recebem da internet. Destacam-se ainda a ampliação dos conteúdos de Meio Ambiente e a simplificação da linguagem na área de Ciências da Natureza. Entre os pontos negativos, especialistas em pedagogia entendem que as autoridades educacionais não foram tão rigorosas nas séries finais do ensino fundamental e contemporizaram a questão do ensino religioso. O documento prevê um ensino religioso não confessional, que dissemina o respeito a celebrações e permite a discussão da religiosidade afro, indígena e cigana. Mesmo assim, o CNE criou uma comissão que decidirá se a religião será tratada como uma área específica de conhecimento ou se fará parte das Ciências Humanas.
No conjunto, a versão aprovada da BNCC pode trazer bons resultados a médio prazo. Implementar um padrão educacional novo e igualitário, a partir de uma base curricular comum, é um desafio. Mas, diante do baixíssimo nível de qualidade do nosso sistema de ensino, que tem sido registrado por diferentes mecanismos internacionais de avaliação, ele tem de ser enfrentado com determinação. A BNCC é uma oportunidade ímpar para promover as mudanças educacionais de que o Brasil necessita para crescer e promover a inclusão social.
Documento é uma oportunidade ímpar para promover as mudanças educacionais de que o Brasil necessita para crescer e proporcionar a inclusão social
Depois de sucessivos adiamentos, o Conselho Nacional de Educação (CNE) finalmente aprovou - por 19 votos contra 3 - a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que determinará os objetivos de aprendizagem para o ensino infantil e o ensino fundamental e orientará a formação de professores e a produção de livros didáticos. Apesar de o prazo para que as redes pública e privada adaptem seus currículos às novas orientações expirar em 2020, o Ministério da Educação (MEC) já anunciou que começará a avaliar seus resultados em 2019, nas disciplinas de Matemática, Português e Geografia. O documento não trata do ensino médio. Considerado o mais problemático de todos os ciclos educacionais, ele será objeto de uma proposta específica, sem data para ser apresentada.
Prevista pelo Plano Nacional de Educação (PNE) e inspirada nas políticas educacionais dos países mais bem classificados nos rankings internacionais de qualidade de ensino, a BNCC tem 466 páginas e prevê as habilidades e competências que os alunos precisam dominar até o fim de cada ano. Desde que começou a ser escrita, em 2015, a BNCC teve quatro versões, das quais três foram objeto de acirradas polêmicas. A primeira foi elaborada por especialistas cujos nomes estranhamente não foram divulgados pelo MEC. Na época, o órgão afirmou ter recebido 10 milhões de sugestões dos setores interessados, mas não explicou como as incorporou no documento. Ele acabou sendo mal recebido por causa de suas omissões e imprecisões em disciplinas fundamentais. E também foi duramente criticado pelo viés ideológico conferido à disciplina de História, que dava mais importância à história africana e ameríndia do que à civilização europeia, a pretexto de valorizar o tema da escravidão de negros e índios. As duas versões seguintes também foram mal recebidas, seja por dar ao ensino de religião e “formas de vida” o mesmo status de área do conhecimento como matemática e português, seja por privilegiar modismos pedagógicos, introduzindo diretrizes sobre orientação sexual e igualdade de gênero. Para aplacar as resistências, reduzir as críticas e assegurar a aprovação da BNCC ainda em 2017, as atuais autoridades educacionais sensatamente removeram esses modismos, ao mesmo tempo que introduziram diretrizes sobre conhecimento de tecnologia. Também detalharam o que se deve esperar das crianças nos dois primeiros anos do ensino fundamental, em matéria de alfabetização e leitura e compreensão de textos.
Entre os pontos positivos do documento aprovado pelo CNE, destacam-se as medidas pedagógicas que tratam das habilidades que os alunos têm de desenvolver à medida que evoluem no ensino fundamental. Essas medidas são importantes para que eles consigam compreender o que leem e analisar criticamente as diferentes informações que recebem da internet. Destacam-se ainda a ampliação dos conteúdos de Meio Ambiente e a simplificação da linguagem na área de Ciências da Natureza. Entre os pontos negativos, especialistas em pedagogia entendem que as autoridades educacionais não foram tão rigorosas nas séries finais do ensino fundamental e contemporizaram a questão do ensino religioso. O documento prevê um ensino religioso não confessional, que dissemina o respeito a celebrações e permite a discussão da religiosidade afro, indígena e cigana. Mesmo assim, o CNE criou uma comissão que decidirá se a religião será tratada como uma área específica de conhecimento ou se fará parte das Ciências Humanas.
No conjunto, a versão aprovada da BNCC pode trazer bons resultados a médio prazo. Implementar um padrão educacional novo e igualitário, a partir de uma base curricular comum, é um desafio. Mas, diante do baixíssimo nível de qualidade do nosso sistema de ensino, que tem sido registrado por diferentes mecanismos internacionais de avaliação, ele tem de ser enfrentado com determinação. A BNCC é uma oportunidade ímpar para promover as mudanças educacionais de que o Brasil necessita para crescer e promover a inclusão social.
COLUNA PAINEL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 26/12
Com auxílios sob ameaça, associação de juízes ataca verba extra paga a outras categorias, como AGU
POR PAINEL - DANIELA LIMA
Não caio só Sob ameaça de corte do auxílio-moradia, a Associação dos Juízes Federais levantou honorários pagos a integrantes da AGU de maio a outubro deste ano. Em média, eles receberam ao menos R$ 4.000 por mês. Esses valores ficam de fora do cálculo do teto salarial e podem fazer a remuneração extrapolar o limite de R$ 33,7 mil. A Ajufe vai levar os dados à Comissão Especial do Extrateto, do Senado, que discute proposta para limitar ganhos dos servidores ao máximo estabelecido por lei.
Origem As verbas extras destinadas aos membros da AGU são honorários pagos pelas partes que perderam ações. O montante ficava com a União, mas lei aprovada em 2016 determinou que os valores passassem a ser encaminhados a um fundo para serem divididos entre os integrantes do órgão de acordo com o tempo de serviço.
Linha de corte Ao mirar esses honorários, a Ajufe quer trazer novo elemento para defender o direito do auxílio-moradia de R$ 4.377,73 a juízes. O pagamento do benefício deve ser discutido pelo STF em 2018.
Revanche “Estão visando apenas os vencimentos da magistratura e esquecendo os de outras carreiras. Os honorários públicos são um extrateto. É dinheiro que deveria ser direcionado aos cofres públicos. Por que não se discute isso?”, provoca Roberto Veloso, que dirige a associação dos magistrados.
Cada um na sua Desde que o DEM decidiu incluir seu nome na longa lista de presidenciáveis de 2018, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), começou a manter distância regulamentar do ministro Henrique Meirelles (Fazenda).
Porta fechada? Maia mantém postura solidária à agenda econômica, mas tem evitado conversar sobre política com o titular da Fazenda.
Onde pega Se optar por um voo solo, o presidente da Câmara pode criar problemas para o ministro. Hoje no PSD, Meirelles pretendia migrar para o Democratas se sua atual sigla não lhe der legenda para disputar.
Terapia de grupo O ministro da Fazenda disse a pessoas próximas que vai usar o recesso de fim de ano para preparar a família para o ambiente beligerante que enfrentará caso seja mesmo candidato ao Planalto.
Chamada oral O PSDB vai começar a mapear potenciais candidatos a cargos majoritários nos Estados. Todos os diretórios da sigla serão procurados a partir desta quarta (27). O trabalho ficou a cargo do secretário-geral da legenda, Marcus Pestana (MG), e do primeiro-secretário, Eduardo Cury (PSDB-SP).
Planejar é preciso A dupla pretende levar à executiva nacional tucana um raio-x das possibilidades do partido para 2018, na tentativa de iniciar o ano com um mapa das alianças que poderão ser feitas pelo país.
Grana curta O PSDB também quer quantificar o número de candidatos a deputado federal e estadual que deve lançar. Motivo: sem fonte alternativa de financiamento, o dinheiro do fundo eleitoral precisará ser bem gasto.
Dois é demais Tucanos que sonham com uma aliança com o PMDB em SP dizem que Paulo Skaf (MDB), hoje cotado para o governo, poderá concorrer ao Senado. Acreditam que Marta Suplicy (MDB), hoje na Casa, será pressionada a sair para deputada para evitar duelo com o ex, Eduardo Suplicy (PT).
Não vai ter luta Preocupados com conflitos, organizadores dos atos em defesa da candidatura de Lula têm orientado expressamente manifestações pacíficas.
Suave “Vamos defender a democracia, a paz e o direito de Lula ser candidato. Sem declarar guerra”, escreveu Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares, a um de seus grupos.
TIROTEIO
Fomos obrigados a vencer um leão por dia em 2017. Estamos preparados para, em 2018, vencermos a batalha da Previdência.
DO MINISTRO CARLOS MARUN (SECRETARIA DE GOVERNO), sobre a articulação do Palácio do Planalto para tentar as aprovar novas regras de aposentadoria.
CONTRAPONTO
Quem cala consente
Em 2016, durante um debate sobre o financiamento de campanhas eleitorais, o marqueteiro Renato Pereira expressou otimismo com o fim das doações de empresas.
— O simples fato de excluir pessoas jurídicas vai provocar uma rearrumação. A nova lei é bem vinda.
A certa altura, o cientista político Bruno Reis citou a Lava Jato e os riscos que ela criou para os políticos:
— Teve gente condenada por caixa um, dinheiro doado legalmente. Que dirá por caixa dois!
Pereira ouviu impassível e examinou as unhas.
Ligado ao MDB do Rio, ele virou alvo da Lava Jato meses depois e fechou acordo de delação premiada em 2017.
O exemplo da Argentina - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 26/12
País deu passo importante para a retomada da economia com a aprovação da reforma da Previdência proposta por Macri
Com a aprovação pelo Congresso da reforma da Previdência proposta pelo governo do presidente Mauricio Macri, a Argentina deu um passo importante para a modernização e maior solidez de seu sistema de seguridade social, assim como para a retomada da economia, com a redução do déficit fiscal. Foi uma batalha difícil porque, tal como acontece com todos os países que enfrentam situação semelhante, a reforma encontrou forte resistência de sindicatos que se recusam a aceitar as novas realidades do mundo do trabalho e da demografia, intimamente ligadas ao equilíbrio das contas da Previdência.
As violentas manifestações promovidas pelas centrais sindicais - que também decretaram greve geral no dia anterior à votação - fizeram com que se temesse pela sorte da reforma. Na última delas, em Buenos Aires, manifestantes e a polícia se enfrentaram durante mais de sete horas, deixando um saldo de mais de 106 feridos, dos quais 55 policiais. Prevaleceram, porém, após 17 horas de debate no Congresso, os argumentos da maioria governista, que obteve a aprovação do projeto por uma boa diferença - 128 votos contra 116.
Do ponto de vista fiscal, a reforma - que é uma das medidas de maior peso propostas por Macri para reduzir o déficit - permitirá uma economia de US$ 5,5 bilhões em 2018. Isso equivale a um quinto do déficit. Num país em que a inflação está na casa dos 24%, essa será uma contribuição importante para colocar ordem nas finanças.
As novas regras afetarão 17 milhões pessoas, numa população total de 42 milhões. Elas permitem aos homens elevar, optativamente, a idade da aposentadoria de 65 para 70 anos. Pela lei anterior, a idade máxima era de 65 anos. Para as mulheres, a opção será de 60 para 63 anos. A principal mudança, porém, foi na fórmula de cálculo do reajuste das pensões. Ela é que provocou as mais fortes reações contrárias de atuais e futuros aposentados.
Antes, o reajuste era semestral, com base na arrecadação do Anses (o equivalente ao INSS brasileiro) e no número de aposentados e pensionistas. Agora, ela será trimestral, com base em critérios que não acarretam perdas, mas fazem com que os aposentados deixem de ganhar, segundo a explicação dos técnicos. A nova fórmula estabelece que o reajuste é calculado com base na inflação (70%) e nos salários do mercado formal (30%) de trabalhadores dos setores privado e público. O que aposentados e pensionistas deixarão de ganhar é o preço a pagar para evitar que o sistema entre em colapso (pelas regras anteriores as contribuições só cobriam 70% dos gastos) e, com isso, sejam eles próprios prejudicados.
Na primeira e frustrada tentativa de aprovação da reforma, a sessão do Congresso foi interrompida por causa das manifestações, tão violentas quanto as da véspera da aprovação. Muitos manifestantes carregavam cartazes com a frase “Aqui não é o Brasil”. A comparação dos dois casos merece reparos. Por exemplo, o sistema argentino, mesmo antes da reforma, já era muito mais realista que o brasileiro, a começar pela idade. No Brasil, a idade continuará sendo mais baixa, mesmo se forem aprovadas as regras propostas no projeto de reforma em tramitação no Congresso.
A pretendida reforma brasileira é, portanto, ainda mais imperiosa que a argentina. Principalmente se se considerar que esta, segundo advertem especialistas, terá de ser ainda mais aprofundada, o que aumentará a distância em relação ao que se propõe aqui.
A reforma argentina deixa, além dessa, outra lição importante: a necessidade de resistir à pressão dos que - em defesa de privilégios ou por causa de uma visão de curto prazo, que compromete as futuras gerações - querem impedir a reforma da Previdência no grito e na marra, como se tentou em Buenos Aires.
Isso se faz com firmeza e com esforço de esclarecimento da população e dos parlamentares sobre a necessidade de novas regras, indispensáveis à sobrevivência da instituição. Como acaba de fazer a Argentina.
País deu passo importante para a retomada da economia com a aprovação da reforma da Previdência proposta por Macri
Com a aprovação pelo Congresso da reforma da Previdência proposta pelo governo do presidente Mauricio Macri, a Argentina deu um passo importante para a modernização e maior solidez de seu sistema de seguridade social, assim como para a retomada da economia, com a redução do déficit fiscal. Foi uma batalha difícil porque, tal como acontece com todos os países que enfrentam situação semelhante, a reforma encontrou forte resistência de sindicatos que se recusam a aceitar as novas realidades do mundo do trabalho e da demografia, intimamente ligadas ao equilíbrio das contas da Previdência.
As violentas manifestações promovidas pelas centrais sindicais - que também decretaram greve geral no dia anterior à votação - fizeram com que se temesse pela sorte da reforma. Na última delas, em Buenos Aires, manifestantes e a polícia se enfrentaram durante mais de sete horas, deixando um saldo de mais de 106 feridos, dos quais 55 policiais. Prevaleceram, porém, após 17 horas de debate no Congresso, os argumentos da maioria governista, que obteve a aprovação do projeto por uma boa diferença - 128 votos contra 116.
Do ponto de vista fiscal, a reforma - que é uma das medidas de maior peso propostas por Macri para reduzir o déficit - permitirá uma economia de US$ 5,5 bilhões em 2018. Isso equivale a um quinto do déficit. Num país em que a inflação está na casa dos 24%, essa será uma contribuição importante para colocar ordem nas finanças.
As novas regras afetarão 17 milhões pessoas, numa população total de 42 milhões. Elas permitem aos homens elevar, optativamente, a idade da aposentadoria de 65 para 70 anos. Pela lei anterior, a idade máxima era de 65 anos. Para as mulheres, a opção será de 60 para 63 anos. A principal mudança, porém, foi na fórmula de cálculo do reajuste das pensões. Ela é que provocou as mais fortes reações contrárias de atuais e futuros aposentados.
Antes, o reajuste era semestral, com base na arrecadação do Anses (o equivalente ao INSS brasileiro) e no número de aposentados e pensionistas. Agora, ela será trimestral, com base em critérios que não acarretam perdas, mas fazem com que os aposentados deixem de ganhar, segundo a explicação dos técnicos. A nova fórmula estabelece que o reajuste é calculado com base na inflação (70%) e nos salários do mercado formal (30%) de trabalhadores dos setores privado e público. O que aposentados e pensionistas deixarão de ganhar é o preço a pagar para evitar que o sistema entre em colapso (pelas regras anteriores as contribuições só cobriam 70% dos gastos) e, com isso, sejam eles próprios prejudicados.
Na primeira e frustrada tentativa de aprovação da reforma, a sessão do Congresso foi interrompida por causa das manifestações, tão violentas quanto as da véspera da aprovação. Muitos manifestantes carregavam cartazes com a frase “Aqui não é o Brasil”. A comparação dos dois casos merece reparos. Por exemplo, o sistema argentino, mesmo antes da reforma, já era muito mais realista que o brasileiro, a começar pela idade. No Brasil, a idade continuará sendo mais baixa, mesmo se forem aprovadas as regras propostas no projeto de reforma em tramitação no Congresso.
A pretendida reforma brasileira é, portanto, ainda mais imperiosa que a argentina. Principalmente se se considerar que esta, segundo advertem especialistas, terá de ser ainda mais aprofundada, o que aumentará a distância em relação ao que se propõe aqui.
A reforma argentina deixa, além dessa, outra lição importante: a necessidade de resistir à pressão dos que - em defesa de privilégios ou por causa de uma visão de curto prazo, que compromete as futuras gerações - querem impedir a reforma da Previdência no grito e na marra, como se tentou em Buenos Aires.
Isso se faz com firmeza e com esforço de esclarecimento da população e dos parlamentares sobre a necessidade de novas regras, indispensáveis à sobrevivência da instituição. Como acaba de fazer a Argentina.
Nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre quem somos - JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 26/12
O ano termina e a imprensa faz os seus balanços: filmes, livros, discos. Peças de teatro. Peças de lingerie. É um simpático ritual.
Não fujo à responsabilidade: o meu filme de 2017 foi filmado em 2014. Mas isso interessa? Não interessa. Quem perde tempo com pormenores cronológicos arrisca-se a ignorar "Força Maior", o inteligente e subversivo filme de Ruben Östlund que só agora assisti.
Imagine a leitora que era casada com um homem rico, bonitão, atlético. Imagine a leitora que a família resolvia passar férias em resort de ski onde só os abastados podem entrar. Depois de tudo isso, imagine também –atenção: vem aí o "spoiler"– que presenciava uma avalanche de neve no elegante terraço do hotel.
Primeiro, a beleza do fenômeno, captada pelo onipresente celular. Depois, a avalanche chegando cada vez mais perto, estranhamente perto, perigosamente perto.
Até o momento em que há pânico entre os hóspedes, gritos, fugas apressadas –e o maridão rico, lindo, atlético decide instintivamente fugir, deixando para trás a leitora e os dois filhos.
Felizmente, foi apenas um medo infundado –a neve ficou ainda longe do terraço. Mas podemos dizer, para usar a linguagem moderna, que a relação está com problemas?
Poder, podemos. Mas a vida continua e, no fim das contas, ninguém é perfeito –certo?
Errado, responde Ruben Östlund. Sobretudo quando o maridão regressa para a família, fazendo de conta que nada se passou. Mas nós sabemos, a mulher sabe, que tudo se passou naqueles segundos. Uma quebra de masculinidade, digamos; o maridão rico, lindo, atlético revelou a sua covardia.
"Força Maior", como o título indica, é um tratado sobre as forças maiores que definem as nossas vidas. Superficialmente, temos a força maior da natureza, que, de vez em quando, esmaga as vaidades humanas com esplendorosa brutalidade.
Mas o que interessa para Östlund não são as forças "exteriores"; são, antes, as forças "interiores", primitivas, instintivas que a civilização reprimiu (obrigado, dr. Sigmund) mas que nunca nos abandonam completamente.
No início, a família representa essa civilização com todos os símbolos do conforto "burguês": cartão de crédito generoso, roupa sofisticada para brincar na neve, até escovas de dente elétricas para eliminar as cáries com maior eficácia. Mas basta um soluço da natureza para que a fêmea proteja as crias –e o macho desapareça para salvar a pele.
Visualmente, esse contraste entre "civilização" e "estado de natureza" é reforçado pelos espaços centrais da narrativa: de um lado, o hotel de luxo; do outro, a paisagem gélida, desértica, quase lunar.
Mas o melhor do filme não está apenas nesse momento fugaz em que o animal humano, medroso, visceral, suplanta o ser civilizado. Está na pequena fenda que ele abre entre o casal. Sim, eles tentam ignorar, depois dialogar, depois fazer piada, depois enterrar o assunto com uma trégua racional.
Só que a fenda nunca desaparece; a mulher nunca se esquece –e o maridão começa a minguar aos nossos olhos, aos olhos da família, aos seus próprios olhos, até ser um farrapo de homem em busca de redenção.
Essa redenção surge por obra e graça da mulher, que oferece ao marido uma nova máscara de bravura. Só então percebemos como a nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre as pessoas que somos. Sem essas mentiras piedosas, poucos suportariam a imagem crua da mais básica bestialidade.
E se o leitor pensa que jamais, em tempo algum, imitaria o amedrontado homem que abandonou mulher e filhos, cuidado: ignorar o animal que habita em nós é a forma mais imediata de nos comportarmos como ele.
*
P.S. Na coluna da semana passada, falei de Gore Vidal como um dos maiores ensaístas do século 20. Alguns leitores pediram bibliografia sobre o assunto. Aconselho três livros para saborear o talento do homem.
O primeiro é "United States", volume colossal com 40 anos de meditações sobre política, artes e assuntos pessoais. Os outros dois são os volumes de memórias "Palimpsest" e "Point to Point Navigation".
Sobre William Buckley, a sua nêmesis ideológica, recomendo "Miles Gone By" –a autobiografia de um conservador americano que ficaria horrorizado com o estado a que os republicanos chegaram.
O ano termina e a imprensa faz os seus balanços: filmes, livros, discos. Peças de teatro. Peças de lingerie. É um simpático ritual.
Não fujo à responsabilidade: o meu filme de 2017 foi filmado em 2014. Mas isso interessa? Não interessa. Quem perde tempo com pormenores cronológicos arrisca-se a ignorar "Força Maior", o inteligente e subversivo filme de Ruben Östlund que só agora assisti.
Imagine a leitora que era casada com um homem rico, bonitão, atlético. Imagine a leitora que a família resolvia passar férias em resort de ski onde só os abastados podem entrar. Depois de tudo isso, imagine também –atenção: vem aí o "spoiler"– que presenciava uma avalanche de neve no elegante terraço do hotel.
Primeiro, a beleza do fenômeno, captada pelo onipresente celular. Depois, a avalanche chegando cada vez mais perto, estranhamente perto, perigosamente perto.
Até o momento em que há pânico entre os hóspedes, gritos, fugas apressadas –e o maridão rico, lindo, atlético decide instintivamente fugir, deixando para trás a leitora e os dois filhos.
Felizmente, foi apenas um medo infundado –a neve ficou ainda longe do terraço. Mas podemos dizer, para usar a linguagem moderna, que a relação está com problemas?
Poder, podemos. Mas a vida continua e, no fim das contas, ninguém é perfeito –certo?
Errado, responde Ruben Östlund. Sobretudo quando o maridão regressa para a família, fazendo de conta que nada se passou. Mas nós sabemos, a mulher sabe, que tudo se passou naqueles segundos. Uma quebra de masculinidade, digamos; o maridão rico, lindo, atlético revelou a sua covardia.
"Força Maior", como o título indica, é um tratado sobre as forças maiores que definem as nossas vidas. Superficialmente, temos a força maior da natureza, que, de vez em quando, esmaga as vaidades humanas com esplendorosa brutalidade.
Mas o que interessa para Östlund não são as forças "exteriores"; são, antes, as forças "interiores", primitivas, instintivas que a civilização reprimiu (obrigado, dr. Sigmund) mas que nunca nos abandonam completamente.
No início, a família representa essa civilização com todos os símbolos do conforto "burguês": cartão de crédito generoso, roupa sofisticada para brincar na neve, até escovas de dente elétricas para eliminar as cáries com maior eficácia. Mas basta um soluço da natureza para que a fêmea proteja as crias –e o macho desapareça para salvar a pele.
Visualmente, esse contraste entre "civilização" e "estado de natureza" é reforçado pelos espaços centrais da narrativa: de um lado, o hotel de luxo; do outro, a paisagem gélida, desértica, quase lunar.
Mas o melhor do filme não está apenas nesse momento fugaz em que o animal humano, medroso, visceral, suplanta o ser civilizado. Está na pequena fenda que ele abre entre o casal. Sim, eles tentam ignorar, depois dialogar, depois fazer piada, depois enterrar o assunto com uma trégua racional.
Só que a fenda nunca desaparece; a mulher nunca se esquece –e o maridão começa a minguar aos nossos olhos, aos olhos da família, aos seus próprios olhos, até ser um farrapo de homem em busca de redenção.
Essa redenção surge por obra e graça da mulher, que oferece ao marido uma nova máscara de bravura. Só então percebemos como a nossa sobrevivência depende das ficções que criamos sobre as pessoas que somos. Sem essas mentiras piedosas, poucos suportariam a imagem crua da mais básica bestialidade.
E se o leitor pensa que jamais, em tempo algum, imitaria o amedrontado homem que abandonou mulher e filhos, cuidado: ignorar o animal que habita em nós é a forma mais imediata de nos comportarmos como ele.
*
P.S. Na coluna da semana passada, falei de Gore Vidal como um dos maiores ensaístas do século 20. Alguns leitores pediram bibliografia sobre o assunto. Aconselho três livros para saborear o talento do homem.
O primeiro é "United States", volume colossal com 40 anos de meditações sobre política, artes e assuntos pessoais. Os outros dois são os volumes de memórias "Palimpsest" e "Point to Point Navigation".
Sobre William Buckley, a sua nêmesis ideológica, recomendo "Miles Gone By" –a autobiografia de um conservador americano que ficaria horrorizado com o estado a que os republicanos chegaram.
O enfrentamento como solução - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 26/12
Esquerda popular-revolucionária é pródiga em anunciar soluções para problemas sociais. Como implementá-las com sucesso já provou que não sabe
Desponta claramente no campo da esquerda radical um agitador firmemente disposto a liderar uma revolução para a conquista do “poder popular”, cujo principal desafio “é pensar um programa que não seja o de conciliação, mas de enfrentamento e que bote o dedo na ferida de problemas estruturais”. O candidato a líder popular-revolucionário, defasado um século no tempo, é Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), um “movimento territorial dos trabalhadores” que luta contra o capitalismo: “No capitalismo é assim: muitos trabalham e poucos têm dinheiro. Por isso lutamos contra ele”. É o que diz a Cartilha de Princípios do MTST.
Em entrevista ao jornal Valor, Boulos não consegue disfarçar que considera Luiz Inácio Lula da Silva um líder decadente e superado, a quem concede, generosamente, o direito de ser candidato na eleição presidencial do ano que vem “como uma questão democrática”, não de “convergência programática, mas de não deixar que o Judiciário defina o processo eleitoral no tapetão”.
É tão forte a fé de Boulos na decadência de Lula que não acredita que o chefão do PT consiga levar o protesto popular às ruas no caso de ser impedido pela Justiça de candidatar-se à Presidência da República, o que depende de decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) sobre sentença do juiz Sério Moro, que o condenou a 9 anos e 6 meses de prisão no caso do triplex do Guarujá.
A razão disso é que “parte da esquerda deixou de fazer o trabalho de base”, o que “gera apatia, perplexidade” e “a longo prazo cria uma fissura profunda entre Brasília e o Brasil, que se traduz no sentimento de insatisfação com a política e que pode se expressar em algum momento com explosões sociais”. E insiste: “Defendo que a esquerda se apresente em 2018 com projeto de enfrentamento, sem alianças com golpistas”.
Boulos não deixa clara a extensão do “enfrentamento” que considera fundamental em sua proposta de “botar o dedo na ferida”, mas a leitura da Cartilha de Princípios do MTST dissipa qualquer dúvida: “A sociedade em que vivemos é capitalista. O que isso quer dizer? Quer dizer que as leis, o governo, a justiça foram organizados para beneficiar um pequeno grupo de gente muito rica, que é a classe capitalista”.
Diz mais a Cartilha: “Somos a maioria, mas o poder não está com a gente e sim com os capitalistas. Construir o poder popular, que é o nosso poder, é a forma de transformar isso. Como? Com muita organização e luta. Precisamos nos organizar nos bairros, nas ocupações, no trabalho, em todos os lugares. Levando adiante a ideia de que só precisamos da nossa força para mudar a realidade”.
Para ele, a produção de riquezas é responsabilidade do Estado, que se encarregará de distribuir essa riqueza entre todos, acabando com a pobreza. Não chega a ser uma ideia original, como ficou comprovado pelas experiências comunistas frustradas ao longo do século 20 e pelos ensaios populistas fracassados, inclusive no Brasil.
O discurso esquerdista de Guilherme Boulos, adornado por inflexões populistas que a massa popular ouve sempre acriticamente, explora a falta de informação generalizada impondo de cima para baixo “princípios” que justificam a submissão do povo ao superior discernimento do comissariado encarregado de decidir o que é bom para todos. É exatamente a partir dessa lógica que o dono do MTST afirma na entrevista que o discurso do governo sobre a necessidade da reforma da Previdência está “mal colocado” porque se baseia na impossibilidade de o sistema se sustentar no longo prazo e no argumento de que a reforma combate privilégios.
Para Boulos, a solução para todos os problemas brasileiros é “alterar a relação de forças sociais” para que se possa acabar com este Estado “que funciona como um mecanismo de manutenção das desigualdades”. Como de hábito, a esquerda popular-revolucionária é pródiga em anunciar soluções para problemas sociais. Como implementá-las com sucesso já provou que não sabe.
Esquerda popular-revolucionária é pródiga em anunciar soluções para problemas sociais. Como implementá-las com sucesso já provou que não sabe
Desponta claramente no campo da esquerda radical um agitador firmemente disposto a liderar uma revolução para a conquista do “poder popular”, cujo principal desafio “é pensar um programa que não seja o de conciliação, mas de enfrentamento e que bote o dedo na ferida de problemas estruturais”. O candidato a líder popular-revolucionário, defasado um século no tempo, é Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), um “movimento territorial dos trabalhadores” que luta contra o capitalismo: “No capitalismo é assim: muitos trabalham e poucos têm dinheiro. Por isso lutamos contra ele”. É o que diz a Cartilha de Princípios do MTST.
Em entrevista ao jornal Valor, Boulos não consegue disfarçar que considera Luiz Inácio Lula da Silva um líder decadente e superado, a quem concede, generosamente, o direito de ser candidato na eleição presidencial do ano que vem “como uma questão democrática”, não de “convergência programática, mas de não deixar que o Judiciário defina o processo eleitoral no tapetão”.
É tão forte a fé de Boulos na decadência de Lula que não acredita que o chefão do PT consiga levar o protesto popular às ruas no caso de ser impedido pela Justiça de candidatar-se à Presidência da República, o que depende de decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) sobre sentença do juiz Sério Moro, que o condenou a 9 anos e 6 meses de prisão no caso do triplex do Guarujá.
A razão disso é que “parte da esquerda deixou de fazer o trabalho de base”, o que “gera apatia, perplexidade” e “a longo prazo cria uma fissura profunda entre Brasília e o Brasil, que se traduz no sentimento de insatisfação com a política e que pode se expressar em algum momento com explosões sociais”. E insiste: “Defendo que a esquerda se apresente em 2018 com projeto de enfrentamento, sem alianças com golpistas”.
Boulos não deixa clara a extensão do “enfrentamento” que considera fundamental em sua proposta de “botar o dedo na ferida”, mas a leitura da Cartilha de Princípios do MTST dissipa qualquer dúvida: “A sociedade em que vivemos é capitalista. O que isso quer dizer? Quer dizer que as leis, o governo, a justiça foram organizados para beneficiar um pequeno grupo de gente muito rica, que é a classe capitalista”.
Diz mais a Cartilha: “Somos a maioria, mas o poder não está com a gente e sim com os capitalistas. Construir o poder popular, que é o nosso poder, é a forma de transformar isso. Como? Com muita organização e luta. Precisamos nos organizar nos bairros, nas ocupações, no trabalho, em todos os lugares. Levando adiante a ideia de que só precisamos da nossa força para mudar a realidade”.
Para ele, a produção de riquezas é responsabilidade do Estado, que se encarregará de distribuir essa riqueza entre todos, acabando com a pobreza. Não chega a ser uma ideia original, como ficou comprovado pelas experiências comunistas frustradas ao longo do século 20 e pelos ensaios populistas fracassados, inclusive no Brasil.
O discurso esquerdista de Guilherme Boulos, adornado por inflexões populistas que a massa popular ouve sempre acriticamente, explora a falta de informação generalizada impondo de cima para baixo “princípios” que justificam a submissão do povo ao superior discernimento do comissariado encarregado de decidir o que é bom para todos. É exatamente a partir dessa lógica que o dono do MTST afirma na entrevista que o discurso do governo sobre a necessidade da reforma da Previdência está “mal colocado” porque se baseia na impossibilidade de o sistema se sustentar no longo prazo e no argumento de que a reforma combate privilégios.
Para Boulos, a solução para todos os problemas brasileiros é “alterar a relação de forças sociais” para que se possa acabar com este Estado “que funciona como um mecanismo de manutenção das desigualdades”. Como de hábito, a esquerda popular-revolucionária é pródiga em anunciar soluções para problemas sociais. Como implementá-las com sucesso já provou que não sabe.
Gratuidade ilusória - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 26/12
Há escassa surpresa na constatação, em pesquisa Datafolha, de que os contribuintes paulistas defendem a continuidade do ensino gratuito nas universidades públicas estaduais. Já assoberbados com a sobrecarga tributária, não admitem pagar por um direito que seria obrigação do Estado respeitar.
O princípio está inscrito no artigo 206 da Constituição, que determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Como aí não se faz distinção entre os níveis fundamental, médio e universitário de ensino, decorre que a ideia de cobrar mensalidades no terceiro grau dependeria de alteração constitucional.
Não espanta, assim, que expressivos 70% dos jovens de 16 a 24 anos defendam a manutenção do dispositivo da Carta Maior. Desprovidos de renda própria ou entrando pelo estrato inferior no mercado de trabalho, é compreensível que enxerguem na universidade pública —e gratuita— sua grande chance de ascensão socioeconômica.
Na média da população, a opinião se matiza significativamente. Ainda há maioria a favor da gratuidade, mas bem menos evidente (57%). Consideráveis 43%, afinal, apoiam o desembolso de mensalidades por aqueles cujas famílias tenham condição de pagar.
Não é improvável que esse contingente se amplie e se converta, eventualmente, em maioria. É aguda a consciência do público quanto à precária situação financeira das universidades paulistas: meros 17% a consideram ótima ou boa, e 74% avaliam-na como ruim, péssima ou apenas regular.
Com efeito, todas as três instituições estaduais (USP, Unicamp e Unesp) comprometem com a folha de pagamentos 98% ou mais da receita que lhes assegura o Tesouro (9,57% da arrecadação de ICMS). Sem recursos para investir, torna-se inevitável a queda da qualidade no ensino e na pesquisa.
Cobrar mensalidades de quem possa pagar decerto não constitui uma panaceia nem resolverá a condição de quase insolvência dessas universidades públicas, nem de quaisquer de suas congêneres.
Trata-se, desde logo, de uma questão de equidade: com o número limitado de vagas, elas acabam ocupadas de forma preponderante por alunos mais preparados, vale dizer, aqueles com recursos para pagar as melhores escolas de ensino médio.
Chamar de gratuito o ensino nessas instituições representa uma falácia: os alunos podem não pagar por ele, embora sejam seus maiores beneficiários, mas o investimento neles onera todos os cidadãos.
Ao fim e ao cabo, transfere-se renda de toda a sociedade para grupos mais abonados, agravando a desigualdade brasileira.
Há escassa surpresa na constatação, em pesquisa Datafolha, de que os contribuintes paulistas defendem a continuidade do ensino gratuito nas universidades públicas estaduais. Já assoberbados com a sobrecarga tributária, não admitem pagar por um direito que seria obrigação do Estado respeitar.
O princípio está inscrito no artigo 206 da Constituição, que determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Como aí não se faz distinção entre os níveis fundamental, médio e universitário de ensino, decorre que a ideia de cobrar mensalidades no terceiro grau dependeria de alteração constitucional.
Não espanta, assim, que expressivos 70% dos jovens de 16 a 24 anos defendam a manutenção do dispositivo da Carta Maior. Desprovidos de renda própria ou entrando pelo estrato inferior no mercado de trabalho, é compreensível que enxerguem na universidade pública —e gratuita— sua grande chance de ascensão socioeconômica.
Na média da população, a opinião se matiza significativamente. Ainda há maioria a favor da gratuidade, mas bem menos evidente (57%). Consideráveis 43%, afinal, apoiam o desembolso de mensalidades por aqueles cujas famílias tenham condição de pagar.
Não é improvável que esse contingente se amplie e se converta, eventualmente, em maioria. É aguda a consciência do público quanto à precária situação financeira das universidades paulistas: meros 17% a consideram ótima ou boa, e 74% avaliam-na como ruim, péssima ou apenas regular.
Com efeito, todas as três instituições estaduais (USP, Unicamp e Unesp) comprometem com a folha de pagamentos 98% ou mais da receita que lhes assegura o Tesouro (9,57% da arrecadação de ICMS). Sem recursos para investir, torna-se inevitável a queda da qualidade no ensino e na pesquisa.
Cobrar mensalidades de quem possa pagar decerto não constitui uma panaceia nem resolverá a condição de quase insolvência dessas universidades públicas, nem de quaisquer de suas congêneres.
Trata-se, desde logo, de uma questão de equidade: com o número limitado de vagas, elas acabam ocupadas de forma preponderante por alunos mais preparados, vale dizer, aqueles com recursos para pagar as melhores escolas de ensino médio.
Chamar de gratuito o ensino nessas instituições representa uma falácia: os alunos podem não pagar por ele, embora sejam seus maiores beneficiários, mas o investimento neles onera todos os cidadãos.
Ao fim e ao cabo, transfere-se renda de toda a sociedade para grupos mais abonados, agravando a desigualdade brasileira.
segunda-feira, dezembro 25, 2017
Bagunça nas delações - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 25/12
Ao julgar ação sobre competência da Polícia Federal para fechar acordo de delação premiada, STF se deparou com bagunça que criou em torno da colaboração premiada
Ao julgar a ação que discute a competência da Polícia Federal para fechar acordo de delação premiada, mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de se deparar com a bagunça que, em junho deste ano, ele mesmo criou em torno da colaboração premiada, ao decidir sobre os limites da atuação do relator nesse tipo de acordo. Fica evidente que os equívocos judiciais, especialmente quando ocorrem na esfera da Suprema Corte, têm efeitos sistêmicos deletérios. No caso, a solução adotada em junho pelo STF tinha o objetivo de não desautorizar o ministro Edson Fachin na homologação do acordo de delação premiada da JBS. O problema é que, para supostamente salvar a face do ministro, a Corte seguiu um posicionamento contrário ao que dita a lei, o que, como era óbvio, só agravou o erro. Em vez de um ministro, agora é geral a imbricação numa interpretação parcial, que desequilibra o instituto da delação premiada.
Após a divulgação dos termos do acordo de delação premiada entre a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o pessoal da JBS, ficou claro que o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não havia seguido com muito rigor a lei. Entre outras questões, não lhe cabia conceder irrestrita imunidade penal aos delatores. No entanto, quando foi descoberto o deslize, o acordo de delação da JBS já havia sido homologado pelo ministro Edson Fachin. Naquele momento, o erro de Janot era também erro de Fachin, que não podia ter dado aval a essas condições acintosamente ilegais.
Acionado a se pronunciar sobre o assunto, o STF não quis corrigir o erro do ministro Edson Fachin. A Suprema Corte preferiu dizer que o papel do juiz que homologa uma delação é muito restrito, não lhe cabendo interferir nos termos do acordo. Deveria apenas verificar a legalidade, a voluntariedade e a regularidade do acordo, bem como seu cumprimento por parte do colaborador. Com essa criativa interpretação, os ministros do STF acabaram por alargar imensamente as competências do Ministério Público na celebração de acordos de delação premiada. Por exemplo, a fixação da pena, matéria que é de competência exclusiva do juiz, foi deslocada para a esfera do Ministério Público.
Menos de seis meses depois, o assunto voltou ao plenário do Supremo, por força de uma ação impetrada pelo Ministério Público contra a possibilidade de a Polícia Federal celebrar acordos de delação premiada. Ao mesmo tempo que não há dúvida de que a legislação prevê tal possibilidade – afinal, a Polícia Federal é responsável por investigar, e a delação premiada é um auxílio às investigações –, também não há dúvida de que fogem do escopo da Polícia Federal as matérias que o STF colocou sob a batuta exclusiva do órgão que celebra, em nome do Estado, o acordo de delação com as pessoas que desejam colaborar nas investigações.
Com razão, o Ministério Público defende que não cabe à Polícia Federal fixar pena para um investigado num eventual acordo de delação premiada. Por óbvio, idêntica regra também é aplicável ao Ministério Público, que não tem poderes para fixar penas. Como se vê, antes de o STF se debruçar sobre as competências específicas de cada órgão na celebração de acordo de delação premiada, é prioritário que seja revista a sistemática geral da colaboração premiada, corrigindo os equívocos da decisão de junho. Caso contrário, teremos um sistema absolutamente disforme para a colaboração premiada, provocando profunda insegurança jurídica e exigindo constantes revisões, caso a caso, do próprio STF.
Os efeitos do equívoco criado em junho pelo STF foram vividamente sentidos durante o julgamento sobre a competência da Polícia Federal para a celebração de acordo de delação premiada, a começar pelos próprios ministros da Suprema Corte. Cada voto foi de um jeito, como se cada ministro estivesse falando de uma realidade jurídica própria, sem qualquer conexão com a dos colegas. O que se viu no plenário do STF foi uma verdadeira bagunça. Nas ponderações de cada voto, a lei ganhava contornos muito vagos, como se pouco pudesse iluminar a questão. Em seu lugar, reluzia forte o arbítrio individual. É preciso retornar, o quanto antes, ao bom Direito, sem pudor de retificar eventuais e evidentes equívocos.
Ao julgar ação sobre competência da Polícia Federal para fechar acordo de delação premiada, STF se deparou com bagunça que criou em torno da colaboração premiada
Ao julgar a ação que discute a competência da Polícia Federal para fechar acordo de delação premiada, mais uma vez o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de se deparar com a bagunça que, em junho deste ano, ele mesmo criou em torno da colaboração premiada, ao decidir sobre os limites da atuação do relator nesse tipo de acordo. Fica evidente que os equívocos judiciais, especialmente quando ocorrem na esfera da Suprema Corte, têm efeitos sistêmicos deletérios. No caso, a solução adotada em junho pelo STF tinha o objetivo de não desautorizar o ministro Edson Fachin na homologação do acordo de delação premiada da JBS. O problema é que, para supostamente salvar a face do ministro, a Corte seguiu um posicionamento contrário ao que dita a lei, o que, como era óbvio, só agravou o erro. Em vez de um ministro, agora é geral a imbricação numa interpretação parcial, que desequilibra o instituto da delação premiada.
Após a divulgação dos termos do acordo de delação premiada entre a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o pessoal da JBS, ficou claro que o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não havia seguido com muito rigor a lei. Entre outras questões, não lhe cabia conceder irrestrita imunidade penal aos delatores. No entanto, quando foi descoberto o deslize, o acordo de delação da JBS já havia sido homologado pelo ministro Edson Fachin. Naquele momento, o erro de Janot era também erro de Fachin, que não podia ter dado aval a essas condições acintosamente ilegais.
Acionado a se pronunciar sobre o assunto, o STF não quis corrigir o erro do ministro Edson Fachin. A Suprema Corte preferiu dizer que o papel do juiz que homologa uma delação é muito restrito, não lhe cabendo interferir nos termos do acordo. Deveria apenas verificar a legalidade, a voluntariedade e a regularidade do acordo, bem como seu cumprimento por parte do colaborador. Com essa criativa interpretação, os ministros do STF acabaram por alargar imensamente as competências do Ministério Público na celebração de acordos de delação premiada. Por exemplo, a fixação da pena, matéria que é de competência exclusiva do juiz, foi deslocada para a esfera do Ministério Público.
Menos de seis meses depois, o assunto voltou ao plenário do Supremo, por força de uma ação impetrada pelo Ministério Público contra a possibilidade de a Polícia Federal celebrar acordos de delação premiada. Ao mesmo tempo que não há dúvida de que a legislação prevê tal possibilidade – afinal, a Polícia Federal é responsável por investigar, e a delação premiada é um auxílio às investigações –, também não há dúvida de que fogem do escopo da Polícia Federal as matérias que o STF colocou sob a batuta exclusiva do órgão que celebra, em nome do Estado, o acordo de delação com as pessoas que desejam colaborar nas investigações.
Com razão, o Ministério Público defende que não cabe à Polícia Federal fixar pena para um investigado num eventual acordo de delação premiada. Por óbvio, idêntica regra também é aplicável ao Ministério Público, que não tem poderes para fixar penas. Como se vê, antes de o STF se debruçar sobre as competências específicas de cada órgão na celebração de acordo de delação premiada, é prioritário que seja revista a sistemática geral da colaboração premiada, corrigindo os equívocos da decisão de junho. Caso contrário, teremos um sistema absolutamente disforme para a colaboração premiada, provocando profunda insegurança jurídica e exigindo constantes revisões, caso a caso, do próprio STF.
Os efeitos do equívoco criado em junho pelo STF foram vividamente sentidos durante o julgamento sobre a competência da Polícia Federal para a celebração de acordo de delação premiada, a começar pelos próprios ministros da Suprema Corte. Cada voto foi de um jeito, como se cada ministro estivesse falando de uma realidade jurídica própria, sem qualquer conexão com a dos colegas. O que se viu no plenário do STF foi uma verdadeira bagunça. Nas ponderações de cada voto, a lei ganhava contornos muito vagos, como se pouco pudesse iluminar a questão. Em seu lugar, reluzia forte o arbítrio individual. É preciso retornar, o quanto antes, ao bom Direito, sem pudor de retificar eventuais e evidentes equívocos.
Boeing & Embraer - CELSO MING
ESTADÃO 24/12
Há muita coisa boa a desfrutar com anúncio de que Embraer e Boeing negociam arranjo
O anúncio de que Embraer e Boeing negociam um arranjo não pode ser analisado pela ótica da desnacionalização em marcha, como os aflitos de sempre se apressam em protestar. Tem que ser visto pelo lado do que é melhor para o Brasil. E há aí muita coisa boa a desfrutar.
Há o reconhecimento de que a Embraer conquistou lugar especial no setor. Se não tivesse sido privatizada, como foi em 1994, não passaria de um monte de sucata ou de cabide de empregos, como aconteceu com a Engesa, que fazia veículos bélicos para uso em terra.
A Boeing está vindo atrás porque sentiu que precisa se posicionar no segmento de jatos de médio porte, principalmente depois que a europeia Airbus e a canadense Bombardier anunciaram, em outubro, planos de fusão.
Também é preciso ter em conta que a Embraer, terceira maior produtora de jatos no mundo, se tornou um dos campeões nacionais porque livrou-se de vícios que tomam outros setores da indústria, como subsídios e, principalmente, políticas supostamente nacionalistas, como exigências de conteúdo local. De 17% a 20% dos componentes das aeronaves da Embraer vêm de fora. Ela não foi obrigada a pagar mais caro para desenvolver o que outros países e empresas fazem mais barato. No caso das aeronaves da família E-Jet E2, as asas têm parte da estrutura feita em Portugal; a cabine e seus assentos são do Reino Unido; o motor das turbinas, do Canadá; o sistema estabilizador, dos Estados Unidos; o sistema de controle de flaps vem da Alemanha... E assim vai. A Embraer se especializou em produzir projetos e conceitos.
A Embraer não é uma empresa que tenha um dono. Cerca de 65% de seu capital está pulverizado no mercado. Tem como principais acionistas a norte-americana Brandes (15% do total), a Mondrian (10%), o BNDES (5%) e o fundo Blackrock (5%). O Tesouro brasileiro possui uma golden share, ou prerrogativa de vetar qualquer negócio que contrarie o interesse nacional.
A proposta em negociação não está clara. Mas não dá para dizer que seja de compra pela Boeing. Por disposição estatutária, nenhum acionista pode ter mais do que 35% das ações da empresa.
Mas já dá para antever algumas das vantagens de que desfrutaria a Embraer a partir de uma associação com a Boeing. A primeira delas seria o fortalecimento do seu próprio segmento do mercado que está sendo deslealmente atacado pela Bombardier e pode enfrentar forte concorrência de novos players, especialmente da China, do Japão e da Coreia do Sul. Segunda vantagem, a Embraer poderia partilhar com a Boeing a faixa de aviões de grande porte. E, terceira, ganharia importante reforço em seu capital.
Não faz sentido o discurso de que a Embraer também fabrica aviões militares e, por isso, não se podem misturar interesses das empresas por motivos de segurança nacional. É difícil imaginar que os produtos da Embraer para fins militares sejam segredos importantes para os norte-americanos – até porque qualquer um dos produtos pode ser adquirido no mercado. Em segundo lugar, a Boeing tem mais abrangência e produtos de defesa do que a Embraer.
De todo modo, antes de conhecer melhor o que está em jogo, não se terão os principais elementos para uma melhor avaliação desse pretendido acordo.
Há muita coisa boa a desfrutar com anúncio de que Embraer e Boeing negociam arranjo
O anúncio de que Embraer e Boeing negociam um arranjo não pode ser analisado pela ótica da desnacionalização em marcha, como os aflitos de sempre se apressam em protestar. Tem que ser visto pelo lado do que é melhor para o Brasil. E há aí muita coisa boa a desfrutar.
Há o reconhecimento de que a Embraer conquistou lugar especial no setor. Se não tivesse sido privatizada, como foi em 1994, não passaria de um monte de sucata ou de cabide de empregos, como aconteceu com a Engesa, que fazia veículos bélicos para uso em terra.
A Boeing está vindo atrás porque sentiu que precisa se posicionar no segmento de jatos de médio porte, principalmente depois que a europeia Airbus e a canadense Bombardier anunciaram, em outubro, planos de fusão.
Também é preciso ter em conta que a Embraer, terceira maior produtora de jatos no mundo, se tornou um dos campeões nacionais porque livrou-se de vícios que tomam outros setores da indústria, como subsídios e, principalmente, políticas supostamente nacionalistas, como exigências de conteúdo local. De 17% a 20% dos componentes das aeronaves da Embraer vêm de fora. Ela não foi obrigada a pagar mais caro para desenvolver o que outros países e empresas fazem mais barato. No caso das aeronaves da família E-Jet E2, as asas têm parte da estrutura feita em Portugal; a cabine e seus assentos são do Reino Unido; o motor das turbinas, do Canadá; o sistema estabilizador, dos Estados Unidos; o sistema de controle de flaps vem da Alemanha... E assim vai. A Embraer se especializou em produzir projetos e conceitos.
A Embraer não é uma empresa que tenha um dono. Cerca de 65% de seu capital está pulverizado no mercado. Tem como principais acionistas a norte-americana Brandes (15% do total), a Mondrian (10%), o BNDES (5%) e o fundo Blackrock (5%). O Tesouro brasileiro possui uma golden share, ou prerrogativa de vetar qualquer negócio que contrarie o interesse nacional.
A proposta em negociação não está clara. Mas não dá para dizer que seja de compra pela Boeing. Por disposição estatutária, nenhum acionista pode ter mais do que 35% das ações da empresa.
Mas já dá para antever algumas das vantagens de que desfrutaria a Embraer a partir de uma associação com a Boeing. A primeira delas seria o fortalecimento do seu próprio segmento do mercado que está sendo deslealmente atacado pela Bombardier e pode enfrentar forte concorrência de novos players, especialmente da China, do Japão e da Coreia do Sul. Segunda vantagem, a Embraer poderia partilhar com a Boeing a faixa de aviões de grande porte. E, terceira, ganharia importante reforço em seu capital.
Não faz sentido o discurso de que a Embraer também fabrica aviões militares e, por isso, não se podem misturar interesses das empresas por motivos de segurança nacional. É difícil imaginar que os produtos da Embraer para fins militares sejam segredos importantes para os norte-americanos – até porque qualquer um dos produtos pode ser adquirido no mercado. Em segundo lugar, a Boeing tem mais abrangência e produtos de defesa do que a Embraer.
De todo modo, antes de conhecer melhor o que está em jogo, não se terão os principais elementos para uma melhor avaliação desse pretendido acordo.