quinta-feira, setembro 21, 2017

Guerra cultural - RODRIGO CONSTANTINO

GAZETA DO POVO - PR - 21/09

A regra hoje é ridicularizar as virtudes “burguesas”, tidas como ultrapassadas ou sinais de uma época “opressora”


O Ocidente em geral, e os Estados Unidos em particular, talvez nunca tenham estado tão divididos como hoje. O grau de ruptura interna é enorme, e às vezes o abismo que separa os dois lados parece intransponível. Espera-se que não, pois foi a capacidade de união em prol de objetivos e valores comuns que permitiu um contínuo avanço de nossa civilização.

Tem sido marcante a sensação de que se vive hoje num só país, mas com duas culturas diametralmente opostas. E é exatamente o tema do livro One Nation, Two Cultures, de Gertrude Himmelfarb. A historiadora usa a expressão “revolução cultural” para definir o que vem acontecendo no país desde os anos 1960, e que tem abalado os principais pilares do Ocidente e da América.

Os valores austeros da era vitoriana já foram o credo oficial dos ocidentais, especialmente dos anglo-saxões. Trabalho, empenho, temperança, disciplina, religiosidade, essas eram virtudes que, de certa forma, a imensa maioria aceitava como louváveis, ainda que fossem violadas na prática. A hipocrisia sempre foi a homenagem que o vício prestou à virtude.


A “destruição criadora” também cobrou seu preço na vida moral da sociedade 

Mas ao menos essas eram características estimadas, almejadas, universalmente aplaudidas. Não mais. Se no começo do século 20 a geração da boemia representava uma minoria rebelde que desafiava tais valores, hoje essa postura ficou predominante: a regra é ridicularizar essas virtudes “burguesas”, tidas como ultrapassadas ou sinais de uma época “opressora”. Ali começava a primeira “revolução sexual”, que passaria por outros estágios ainda mais subversivos depois, como na década de 1960.

Schumpeter chegou a prever o fim do capitalismo com base nesses efeitos que ele exercia sobre os intelectuais. O capitalismo cria um ambiente crítico a tudo, que não poupa a autoridade moral ou as instituições estabelecidas, e que no fim pode se voltar contra ele mesmo. A burguesia ficaria espantada, previa Schumpeter, que a atitude racionalista não iria parar em reis e papas, mas sim continuar seu ataque à propriedade privada e a todo esquema de valores burgueses.

A previsão não se mostrou totalmente acertada, pois o capitalismo ainda sobrevive, expandindo-se em outras regiões antes dominadas por regimes socialistas. Mas parece inegável que a “destruição criadora” também cobrou seu preço na vida moral da sociedade. O capitalismo sobreviveu, diz Himmelfarb, mas ao custo do ethos burguês que originalmente o inspirou e o manteve por tanto tempo.

À medida que a sociedade enriquecia e se tornava mais aberta, a moralidade e a cultura eram liberalizadas e democratizadas, dando lugar a um sistema mais frouxo. Aquele estilo rebelde da elite que desafiava os pilares morais estabelecidos foi se espalhando por toda a sociedade, tornando-se acessível a todos. Deu-se, então, o que Daniel Bell chamou de “contradições culturais do capitalismo”: se por um lado seu funcionamento demanda restrições morais como disciplina e visão de longo prazo, por outro lado ele mesmo estimula um hedonismo e uma impaciência com todas essas restrições.

De fato, essa “contracultura” avançou com uma velocidade que nem o mais otimista dos revolucionários poderia esperar. Minorias tiveram motivo para celebrar conquistas concretas, sem dúvida, mas seria absurdo ignorar seus efeitos negativos também, inclusive para as próprias minorias. Basta pensar num exemplo: mais de 70% das crianças negras americanas nascem hoje fora do casamento.

Muitas mulheres mergulharam no mercado de trabalho e viram suas carreiras deslancharem, mas não sem o custo de perder um lugar seguro dentro da configuração tradicional do casamento, que permitia um investimento maior na formação dos filhos. As taxas de divórcio explodiram, prejudicando justamente os filhos. Diversas mães solteiras precisam se virar entre trabalho e casa, e acabam dependendo do Estado, o que fez com que o welfare State se agigantasse, significando mais impostos e menos liberdade.

A modelagem foi favorecendo aqueles que bancavam a vítima. Quem não chora não mama, diz o ditado. Com o governo subsidiando certos comportamentos, era apenas natural que eles fossem fomentados. Com o intuito de “liberar” todos dos asfixiantes “valores burgueses”, a revolução cultural ajudou a enfraquecer as virtudes que sempre tiveram efeitos estabilizadores e moralizantes na sociedade.

Há indícios claros de doenças morais por toda parte, como o colapso de princípios e hábitos éticos, a perda de respeito por autoridades e instituições, a ruptura das famílias, o declínio da civilidade, a vulgarização da alta cultura e a degradação da cultura popular. Riqueza e acesso à educação não são garantias de imunidade contra desordens morais. Na verdade, argumenta-se que a elite mais rica e educada tem alguma responsabilidade sobre a condição das classes sociais inferiores. Várias dessas ideias perniciosas nascem justamente na elite, não no povo.

A situação gera bastante incômodo, pois abala uma das crenças mais disseminadas no Ocidente: a de que o progresso moral é um subproduto inevitável do progresso material. Os otimistas que adotam tal premissa ignoram a experiência histórica, como no caso do declínio romano após o avanço material, que ajudou a corromper os valores morais. Os “liberais” celebram a prosperidade, apesar de focarem mais nas “desigualdades”, mas não percebem que a degradação de valores morais está ameaçando essa prosperidade e, acima de tudo, nossas liberdades.

Tem ocorrido uma crescente normalização dos desvios, e o que sempre foi norma tem sido tratado como o atual desvio a ser condenado. O Estado usurpou funções antes exercidas pelas famílias e igrejas, e nunca a dependência por parte do indivíduo foi tão grande. Diante desse quadro, há uma forte reação daqueles que estão revoltados com as inversões de valores, com a vulgaridade, a promiscuidade, a decadência moral.

O verdadeiro pluralismo depende da compreensão de que a persuasão é preferível à violência, e que as diferenças sejam tratadas com civilidade. Isso parece cada vez mais distante da realidade. Mas as chances de sucesso do Ocidente dependem da capacidade dessas pessoas em se unir em prol de um objetivo comum: resgatar os valores morais e culturais, independentemente da crença religiosa, evitando os extremos, assim como o relativismo exacerbado de hoje.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

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