domingo, julho 30, 2017

O marcusiano “childfree” - SÉRGIO PARDELLAS

REVISTA ISTO É

O sociólogo e filósofo alemão Herbert Marcuse pertence ao rol dos maiores sofistas do século XX. O morubixaba da contra-cultura dos anos 60, forjado na Escola de Frankfurt, conseguiu como poucos elevar o sofisma ao estado da arte. Pior, o seu pensamento enviesado, niilista na essência e baseado na destruição dos valores da civilização ocidental, influenciou gerações e, por meio da academia, contribuiu decisivamente para moldar o que se convencionou chamar de senso comum coletivo dos nossos tempos. Criador do slogan “Make love, not war”, Marcuse nunca, jamais e em tempo algum teve a intenção de pregar a paz, ao cunhar o bordão cantado e decantado pelo movimento hippie. Pelo contrário. Seu legado embalou a disseminação do ódio quase visceral, reinante atualmente nas relações pessoais e escancarado pelas redes sociais. Marcuse era mestre em conferir conotações positivas a práticas negativas. A noção da tolerância, por exemplo, passou a significar exatamente o inverso do seu sentido original. A tolerância não constitui mais o ato de tolerar os pontos de vista e os valores de outra pessoa, apesar de não concordar com eles, como defendiam os liberais do Iluminismo. No “novo significado”, não é possível mais haver discórdia. Mais totalitário impossível. É elementar: a imposição de não poder discordar é quem mais alimenta a discórdia. Assim, Marcuse conseguiu converter a tolerância em seu antônimo, a intolerância. Os exemplos pululam por aí.

Marcuse deixou tantos descendentes que seria impossível nominá-los em tão pouco espaço. Um dos filhotes de Marcuse é o Childfree, um movimento que promove, direta ou indiretamente, um discurso de ódio às crianças, sob a capa de libertário. Em recente artigo, a educadora e antropóloga Cristiane Lasmar o descreveu com maestria. “A motivação do Childfree transborda a questão da escolha e da afirmação de um estilo de vida”. De acordo com Cristiane, o deslizamento semântico na mudança de “childless” para “childfree” não tem nada de inocente. “Traz embutido um juízo de valor. Para dotar a decisão de não ter filhos de uma conotação positiva, a negatividade — olha Marcuse aí — é deslocada para o lado da criança. Ela é objetificada e tratada como um estorvo”. Ou seja, os childfree não querem apenas ter o direito de não ter filhos, e viver seu próprio estilo de vida, o que é perfeitamente compreensível. Eles comparam as crianças a seres nocivos.

Já se ouve falar, alertou Cristiane, da existência de um lobby, em alguns países, contrário a certos privilégios às mulheres grávidas ou com filhos pequenos.

A alegação é que os childfree se sentem discriminados. “As crianças são equiparadas à fumaça do cigarro, à gordura insalubre, ao imposto que pesa no bolso do consumidor”, diz ela. Uma sociedade incapaz de cuidar e de salvaguardar suas crianças é uma sociedade enferma, a manquitolar de podre. E não era tudo o que Marcuse queria?

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