O Globo - 14/08
Há sinais, mas eles são sutis. É preciso usar a lupa e olhar os números. Juntos, eles revelam uma luz fraca ao longe. É a saída do difícil túnel desta crise econômica. Estamos vivendo uma grande recessão em formato de “U”, na qual o país cai, estabiliza no fundo e aos poucos começa a se recuperar. Seria melhor se o movimento do PIB desenhasse a letra “V”, em que cai, bate e volta.
Mas, olhando com a lupa, dá para ver algumas boas novas. Nas consultas feitas em abril aos analistas do mercado financeiro pelo Banco Central, sobre o PIB do ano que vem, a mediana foi que o país cresceria 0,2%. Agora, quatro meses depois, a previsão é de que o país crescerá 1,1%. É só previsão, pode mudar, mas antes nem isso o país tinha.
A confiança do empresário do comércio estava em 77 pontos em novembro do ano passado e agora está em 87 pontos. A intenção de consumo das famílias, calculada pela Confederação Nacional do Comércio, despencou desde 2014, quando a recessão começou. Foi de 132 para 68 pontos. Mas nas duas últimas coletas parou de cair. Se compararmos o índice de vendas do varejo nos meses de junho, houve queda em 2014 de 1,1%, queda em 2015 de 0,7%. E agora ficou em 0,1% positivo. Não é nada, é zero, mas não é negativo. A indústria caiu durante anos e há quatro meses os números de produção são de alta em comparação com o mês anterior.
É assim, ponto a ponto, que vamos colhendo os sinais de melhora. No mercado financeiro, as mudanças nos números são mais rápidas e fortes porque antecipam o que pode vir a acontecer. Acham que haverá recuperação econômica, reversão de ciclo, saindo de recessão para crescimento, e por isso o dólar caiu 25% desde o ponto mais alto em janeiro. O Ibovespa teve uma alta espetacular de 54% desde o pior momento, em janeiro. Saiu de 37 mil para 58 mil pontos. A expectativa que anima a bolsa é a de que o pior tenha passado.
A inflação cai gota a gota. Mais devagar do que era de se supor. Dias atrás mesmo o IBGE divulgou o IPCA de julho que mostrou alta em relação ao mês anterior. Mas uma quedinha de nada na comparação em 12 meses. Era de 8,84% e foi para 8,74%.
Há explicações pontuais: a inflação ficou alta em julho porque os preços dos alimentos estão de amargar. A grande questão é por que o Brasil é assim. Por que neste país, que está há três anos em recessão, com uma taxa de juros de 14,25% — uma enormidade para uma economia caída — a inflação resiste tanto?
O país que venceu a hiperinflação em batalha árdua precisa voltar a se esforçar para desmontar os mecanismos de indexação e de alta de gasto público para ter taxas de inflação compatíveis com as do mundo. Ainda somos estranhos. Matamos o monstro da hiperinflação e resta matar o monstrinho da inflação alta resistente. Pelo menos, as expectativas são de que a taxa continuará caindo. Em abril, perguntados pelo Banco Central sobre a previsão de inflação para 2017, os economistas do mercado apostavam em 6%. Agora, estão em 5,1%. E para provar que eles acreditam que no longo prazo estaremos todos salvos, para 2018 a previsão é de que o índice ficará cravado no centro da meta. Os preços do atacado de alimentos começou a cair, o que deve aparecer no IGP-10, que pode ter deflação. O problema não é como reverter um problema pontual, mas como ter uma economia que reaja como todas as outras em que, se os juros são altos, a inflação cede.
Esta é a mais complexa das crises que tivemos nas últimas décadas porque aliou a derrota da economia com a aflição na política. Por isso, qualquer previsão que use apenas a lógica econômica será falha, porque da política continuará vindo incerteza.
Hoje o país precisa juntar vários números para construir alguma certeza de que o PIB está caindo menos e começará a se recuperar. Quando encerrarmos este ciclo recessivo, teremos aprendido muito do que não fazer. Governantes terão medo de deixar a inflação subir a dois dígitos. O caminho do descontrole dos gastos, da leniência com a inflação, da repressão dos preços e posterior tarifaço derrubou a economia como se fosse um ippon. E dessa queda a economia começa a dar os primeiros sinais de se levantar.
domingo, agosto 14, 2016
O PT e a crise da esquerda - GAUDÊNCIO TORQUATO
BLOG DO NOBLAT - O GLOBO - 14/08
O declínio do PT aponta para uma trajetória em direção à esquerda do arco ideológico, onde espera um convívio com movimentos sociais de viés radical. Continuará a proximidade com sua tradicional base de trabalhadores, principalmente de contingentes das frentes metalúrgica e bancária. Trata-se da estratégia de sobrevivência. Na busca do traçado que marcou sua origem, procurará também o apoio de parcelas da intelectualidade, remanescentes dos tempos pré-Muro de Berlim, que continuam a acreditar na luta de classes, a condenar o neoliberalismo e a elevar aos céus da América Latina a bandeira bolivarianista. Quem desbravará essa tortuosa trilha será ele mesmo, Luis Inácio, o ícone do petismo, agora com a missão de juntar alas divididas que querelam pelo domínio do poder no partido que, há três décadas, despontava como referência ética da política.
O primeiro obstáculo de Lula será a ocupação de espaço no arco ideológico. Na extremidade esquerda, o PT haverá de deparar com nichos ocupados por entes como PSOL e PSTU. O primeiro quer se firmar como opção da esquerda, contando com a contundência de perfis como o de Ivan Valente e a verve do carioca Chico Alencar. Que matiz o PT defenderá para se distinguir? Mais à direita dessa esquerda, esbarrará no PC do B, cujo ideario tem se diluído, eis que sua representação é difusa (e confusa), como denotam os discursos da senadora amazonense Vanessa Grazziotin e do nacionalista ex-ministro da Defesa Aldo Rebello. O que distinguiria o PT desses protagonistas?
Perdendo charme
O fato é que a esquerda tem se tornado um verbete que funciona mais como graxa para lustrar a cara de figuras que não adentraram as largas vias do século XXI. Perde charme, enquanto a direita engrossa suas fileiras. Patrocina com reservas o socialismo marxista, inspirado na análise do velho Karl Marx sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica evolução. A “violência como parteira da História”, dogma apregoado por Engels e que se firmou na segunda metade do século 19, até que tentou fazer escola entre nós nos idos de 1960. Foi repelida pela ditadura militar. A redemocratização do País abriu espaço para outros espaços no arco ideológico. Formou-se um novo território para acomodar as estacas do alquebrado socialismo revolucionário e os tijolos do liberalismo político e econômico.
Os novos partidos de esquerda afastaram jargões carcomidos, como exploração capitalista, Estado burguês, classe dominante, submissão a interesses do capital financeiro. Uma nova teia passou a ser costurada com a agulha de programas de distribuição de renda e uma equação que conjuga as bases de Estado mínimo e Estado máximo. O socialismo clássico alterou sua fisionomia para juntar posições até então inconciliáveis, gerando novos conceitos como “capitalismo de face humana” e “socialismo de feição liberal”. Batizou-se essa combinação de social-democracia. Que aportou no Brasil em fins dos anos 1980, ganhando do PSDB densa interpretação, como se vê no texto Os desafios do Brasil, que engloba abordagens sobre as crises da contemporaneidade, a textura da democracia social na Europa, as estratégias de crescimento e as políticas para o desenvolvimento.
Emergia a receita do Estado de bem-estar social (baseado na universalização dos direitos sociais e laborais e financiado com políticas fiscais progressistas), com o aumento da capacidade aquisitiva da população. Essa meta tinha como alavanca o aumento dos rendimentos do trabalho e a intervenção do Estado nas frentes de gastos e regulação de atividades-chave para a expansão econômica. A partir dos anos 70 a 80 os partidos social-democratas incorporaram princípios neoliberais, impregnando a ideologia dominante da União Europeia. A doutrina ganhou novos contornos na esteira da globalização. As siglas mudaram, transformando bases eleitorais (categorias trabalhadoras) em classes médias, mais conservadoras e com certo acesso ao capital financeiro.
Social-democracia
No Brasil, por tentativa e erro, nosso arremedo social-democrata adentrou no terceiro milênio, ganhou o centro do poder, sendo acusado de se curvar ao Consenso de Washington. A crítica saiu da artilharia do próprio PT e pequenos satélites. Deu certo. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria e tomaram assento no Palácio do Planalto. E o que ocorreu? As linhas gerais da tal política neoliberal foram preservadas e recriadas, agora com nova roupagem de traços nacionalistas. Luiz Inácio, mesmo jorrando um verbo duro contra a crueldade neocapitalista, acolhia a banca e os vetores do mercado. Na expressão de palanque, o appartheid social foi uma constante: nós e eles. A luta de classes emergia na expressão escandida com suor e ódio. Coisa de palanque.
Até que emergiu das sombras o fantasma do “mensalão”. A casa desmoronou. As últimas pilastras leninistas-marxistas “foram pro brejo”. Bandeiras da esquerda, do centro e da direita, todas juntas, sujaram-se no pântano. Os intelectuais que ainda brandiam a foice e o martelo tiveram de recolher suas armas. Uns poucos continuaram a berrar. Sindicalistas, atrelados ao Estado, buscaram nova modelagem para sua ação, entoando o refrão de defesa de conquistas trabalhistas. Qual a cor da esquerda no meio do lamaçal? O vermelho ficou sujo. Sobraram indistintos traços de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O velho PC do B tem dificuldade de se posicionar no olimpo da esquerda. As siglas afundaram na lama.
Ao mensalão, seguiu-se o petrolão, este com formação de tsunami. Jogado de um lado para outro por suas ondas, o PT vai tentar achar um rumo. Lula será o condutor desta empreitada. A ele, a missão de encontrar a tábua do náufrago. E, claro, sair-se bem dos dutos da Lava Jato. Dará certo?
O declínio do PT aponta para uma trajetória em direção à esquerda do arco ideológico, onde espera um convívio com movimentos sociais de viés radical. Continuará a proximidade com sua tradicional base de trabalhadores, principalmente de contingentes das frentes metalúrgica e bancária. Trata-se da estratégia de sobrevivência. Na busca do traçado que marcou sua origem, procurará também o apoio de parcelas da intelectualidade, remanescentes dos tempos pré-Muro de Berlim, que continuam a acreditar na luta de classes, a condenar o neoliberalismo e a elevar aos céus da América Latina a bandeira bolivarianista. Quem desbravará essa tortuosa trilha será ele mesmo, Luis Inácio, o ícone do petismo, agora com a missão de juntar alas divididas que querelam pelo domínio do poder no partido que, há três décadas, despontava como referência ética da política.
O primeiro obstáculo de Lula será a ocupação de espaço no arco ideológico. Na extremidade esquerda, o PT haverá de deparar com nichos ocupados por entes como PSOL e PSTU. O primeiro quer se firmar como opção da esquerda, contando com a contundência de perfis como o de Ivan Valente e a verve do carioca Chico Alencar. Que matiz o PT defenderá para se distinguir? Mais à direita dessa esquerda, esbarrará no PC do B, cujo ideario tem se diluído, eis que sua representação é difusa (e confusa), como denotam os discursos da senadora amazonense Vanessa Grazziotin e do nacionalista ex-ministro da Defesa Aldo Rebello. O que distinguiria o PT desses protagonistas?
Perdendo charme
O fato é que a esquerda tem se tornado um verbete que funciona mais como graxa para lustrar a cara de figuras que não adentraram as largas vias do século XXI. Perde charme, enquanto a direita engrossa suas fileiras. Patrocina com reservas o socialismo marxista, inspirado na análise do velho Karl Marx sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica evolução. A “violência como parteira da História”, dogma apregoado por Engels e que se firmou na segunda metade do século 19, até que tentou fazer escola entre nós nos idos de 1960. Foi repelida pela ditadura militar. A redemocratização do País abriu espaço para outros espaços no arco ideológico. Formou-se um novo território para acomodar as estacas do alquebrado socialismo revolucionário e os tijolos do liberalismo político e econômico.
Os novos partidos de esquerda afastaram jargões carcomidos, como exploração capitalista, Estado burguês, classe dominante, submissão a interesses do capital financeiro. Uma nova teia passou a ser costurada com a agulha de programas de distribuição de renda e uma equação que conjuga as bases de Estado mínimo e Estado máximo. O socialismo clássico alterou sua fisionomia para juntar posições até então inconciliáveis, gerando novos conceitos como “capitalismo de face humana” e “socialismo de feição liberal”. Batizou-se essa combinação de social-democracia. Que aportou no Brasil em fins dos anos 1980, ganhando do PSDB densa interpretação, como se vê no texto Os desafios do Brasil, que engloba abordagens sobre as crises da contemporaneidade, a textura da democracia social na Europa, as estratégias de crescimento e as políticas para o desenvolvimento.
Emergia a receita do Estado de bem-estar social (baseado na universalização dos direitos sociais e laborais e financiado com políticas fiscais progressistas), com o aumento da capacidade aquisitiva da população. Essa meta tinha como alavanca o aumento dos rendimentos do trabalho e a intervenção do Estado nas frentes de gastos e regulação de atividades-chave para a expansão econômica. A partir dos anos 70 a 80 os partidos social-democratas incorporaram princípios neoliberais, impregnando a ideologia dominante da União Europeia. A doutrina ganhou novos contornos na esteira da globalização. As siglas mudaram, transformando bases eleitorais (categorias trabalhadoras) em classes médias, mais conservadoras e com certo acesso ao capital financeiro.
Social-democracia
No Brasil, por tentativa e erro, nosso arremedo social-democrata adentrou no terceiro milênio, ganhou o centro do poder, sendo acusado de se curvar ao Consenso de Washington. A crítica saiu da artilharia do próprio PT e pequenos satélites. Deu certo. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria e tomaram assento no Palácio do Planalto. E o que ocorreu? As linhas gerais da tal política neoliberal foram preservadas e recriadas, agora com nova roupagem de traços nacionalistas. Luiz Inácio, mesmo jorrando um verbo duro contra a crueldade neocapitalista, acolhia a banca e os vetores do mercado. Na expressão de palanque, o appartheid social foi uma constante: nós e eles. A luta de classes emergia na expressão escandida com suor e ódio. Coisa de palanque.
Até que emergiu das sombras o fantasma do “mensalão”. A casa desmoronou. As últimas pilastras leninistas-marxistas “foram pro brejo”. Bandeiras da esquerda, do centro e da direita, todas juntas, sujaram-se no pântano. Os intelectuais que ainda brandiam a foice e o martelo tiveram de recolher suas armas. Uns poucos continuaram a berrar. Sindicalistas, atrelados ao Estado, buscaram nova modelagem para sua ação, entoando o refrão de defesa de conquistas trabalhistas. Qual a cor da esquerda no meio do lamaçal? O vermelho ficou sujo. Sobraram indistintos traços de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O velho PC do B tem dificuldade de se posicionar no olimpo da esquerda. As siglas afundaram na lama.
Ao mensalão, seguiu-se o petrolão, este com formação de tsunami. Jogado de um lado para outro por suas ondas, o PT vai tentar achar um rumo. Lula será o condutor desta empreitada. A ele, a missão de encontrar a tábua do náufrago. E, claro, sair-se bem dos dutos da Lava Jato. Dará certo?
Universidade dividida - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 14/08
O grevismo desenfreado, a radicalização ideológica e a banalização da violência, sob a forma de piquetes, ocupações, depredações e agressões físicas e morais estimuladas por microfacções de esquerda, estão dividindo de tal forma as universidades públicas paulistas, a ponto de comprometer seus principais pilares - o respeito ao princípio do mérito acadêmico, ao diálogo intelectual e à tolerância política.
Na USP, recentemente, um dos mais conhecidos professores da área de ciências sociais enfrentou dificuldades para dar uma palestra, por não ter aceito a determinação imposta por militantes para que defendesse a adoção de cotas raciais na instituição. Um dos mais respeitados professores de física, com 50 anos de carreira, foi tratado de forma truculenta pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) por não apoiar as reivindicações da entidade. E sempre que diretores de unidades tentam punir quem afronta a ordem, grupelhos de alunos, servidores e “personalidades” assinam notas de protesto.
Na Unicamp, que no primeiro semestre gastou com salários mais do que recebe do Estado e acaba de sair de uma greve deflagrada por alunos e servidores que pediam mais moradias gratuitas, alimentação subvencionada e aumento salarial, apesar de a arrecadação do ICMS estar caindo, a situação é mais grave. Docentes dos cursos de computação, engenharia e física que tentaram dar aula tiveram as salas invadidas por grevistas, apesar de a Justiça ter proibido essa prática. A Unicamp abriu uma sindicância para apurar o envolvimento de um estudante que foi filmado apagando as anotações de um professor de matemática na lousa tão logo ele as escrevia - e que por isso pode ser expulso -, mas não consegue colher os depoimentos por causa dos protestos do DCE, que conta com um ensurdecedor trio elétrico.
Apesar de o vídeo mostrar o constrangimento a que o professor foi submetido, os líderes do DCE alegam que ele teria agredido o estudante. E este, por seu lado, argumentou que na democracia direta as decisões das assembleias-gerais são soberanas, motivo pelo qual quem insiste em contrariá-las - como é o caso desse professor - estaria tentando impor o interesse individual sobre deliberações coletivas.
Além de classificar essas declarações como disparatadas, professores da área de ciências exatas acusam a reitoria da Unicamp de não agir com o devido rigor para impedir que servidores e estudantes promovam “intervenções artísticas e simbólicas”, simulando a Via-Crúcis, com o objetivo de tumultuar o funcionamento da instituição. Em nota, o Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp informou que a “simbologia do sacrifício” é uma forma de “questionar o ataque imposto à universidade” por meio de cortes orçamentários. “A Unicamp está rachada”, diz a professora Hildete Pinheiro, do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica. “Só há perdedores. O processo, na conjuntura atual do País, não permite vencedores”, argumenta Paulo Xavier de Oliveira, da Associação de Docentes da Unicamp.
Esse cenário de acirramento ideológico e de baderna generalizada nas universidades públicas estaduais é preocupante. Quando a ordem jurídica é afrontada e os baderneiros são tratados de modo leniente, a noção de responsabilidade fica comprometida e as instituições se enfraquecem. Quando elas permitem o sistemático desrespeito ao primado da lei, a democracia também se debilita. Em recente artigo publicado no Estado, José de Souza Martins, professor emérito da USP, colocou o dedo na ferida: “Antes da ditadura, as novas gerações tinham uma causa e uma esperança, a da definição de um projeto de nação para todos. Com o fim da ditadura, o sonho acabou, perdeu conteúdo e cedeu lugar às conveniências de poder e à busca de privilégios corporativos”. Com isso, as novas gerações já não teriam uma causa, explica Martins, passando a servir como marionetes dos mais variados grupelhos radicais, limitando-se “a gritar sem falar e a espernear sem caminhar” e, mais grave, confundindo democracia com impunidade.
O grevismo desenfreado, a radicalização ideológica e a banalização da violência, sob a forma de piquetes, ocupações, depredações e agressões físicas e morais estimuladas por microfacções de esquerda, estão dividindo de tal forma as universidades públicas paulistas, a ponto de comprometer seus principais pilares - o respeito ao princípio do mérito acadêmico, ao diálogo intelectual e à tolerância política.
Na USP, recentemente, um dos mais conhecidos professores da área de ciências sociais enfrentou dificuldades para dar uma palestra, por não ter aceito a determinação imposta por militantes para que defendesse a adoção de cotas raciais na instituição. Um dos mais respeitados professores de física, com 50 anos de carreira, foi tratado de forma truculenta pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) por não apoiar as reivindicações da entidade. E sempre que diretores de unidades tentam punir quem afronta a ordem, grupelhos de alunos, servidores e “personalidades” assinam notas de protesto.
Na Unicamp, que no primeiro semestre gastou com salários mais do que recebe do Estado e acaba de sair de uma greve deflagrada por alunos e servidores que pediam mais moradias gratuitas, alimentação subvencionada e aumento salarial, apesar de a arrecadação do ICMS estar caindo, a situação é mais grave. Docentes dos cursos de computação, engenharia e física que tentaram dar aula tiveram as salas invadidas por grevistas, apesar de a Justiça ter proibido essa prática. A Unicamp abriu uma sindicância para apurar o envolvimento de um estudante que foi filmado apagando as anotações de um professor de matemática na lousa tão logo ele as escrevia - e que por isso pode ser expulso -, mas não consegue colher os depoimentos por causa dos protestos do DCE, que conta com um ensurdecedor trio elétrico.
Apesar de o vídeo mostrar o constrangimento a que o professor foi submetido, os líderes do DCE alegam que ele teria agredido o estudante. E este, por seu lado, argumentou que na democracia direta as decisões das assembleias-gerais são soberanas, motivo pelo qual quem insiste em contrariá-las - como é o caso desse professor - estaria tentando impor o interesse individual sobre deliberações coletivas.
Além de classificar essas declarações como disparatadas, professores da área de ciências exatas acusam a reitoria da Unicamp de não agir com o devido rigor para impedir que servidores e estudantes promovam “intervenções artísticas e simbólicas”, simulando a Via-Crúcis, com o objetivo de tumultuar o funcionamento da instituição. Em nota, o Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp informou que a “simbologia do sacrifício” é uma forma de “questionar o ataque imposto à universidade” por meio de cortes orçamentários. “A Unicamp está rachada”, diz a professora Hildete Pinheiro, do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica. “Só há perdedores. O processo, na conjuntura atual do País, não permite vencedores”, argumenta Paulo Xavier de Oliveira, da Associação de Docentes da Unicamp.
Esse cenário de acirramento ideológico e de baderna generalizada nas universidades públicas estaduais é preocupante. Quando a ordem jurídica é afrontada e os baderneiros são tratados de modo leniente, a noção de responsabilidade fica comprometida e as instituições se enfraquecem. Quando elas permitem o sistemático desrespeito ao primado da lei, a democracia também se debilita. Em recente artigo publicado no Estado, José de Souza Martins, professor emérito da USP, colocou o dedo na ferida: “Antes da ditadura, as novas gerações tinham uma causa e uma esperança, a da definição de um projeto de nação para todos. Com o fim da ditadura, o sonho acabou, perdeu conteúdo e cedeu lugar às conveniências de poder e à busca de privilégios corporativos”. Com isso, as novas gerações já não teriam uma causa, explica Martins, passando a servir como marionetes dos mais variados grupelhos radicais, limitando-se “a gritar sem falar e a espernear sem caminhar” e, mais grave, confundindo democracia com impunidade.
Transparência - MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 14/08
A liderança política deve ser avaliada pela sua capacidade de negociar conflitos em benefício da maioria.
O discurso do governo enfatiza, corretamente, a necessidade de ajuste fiscal e de reformas para que o país possa retomar uma trajetória sustentável de crescimento. A sua prática, porém, preocupa pela excessiva sensibilidade ao corporativismo.
O reajuste salarial para diversas categorias do setor público fragilizou o governo. A derrota na aprovação de instrumentos importantes para o ajuste fiscal dos Estados despertou dúvidas sobre a qualidade da liderança.
Criticam-se as escolhas na negociação, não a necessidade da política.
O governo anterior acreditou que o desenvolvimento passava pela concessão de benefícios a grupos organizados, como a expansão do crédito subsidiado e as políticas de proteção setorial. O resultado foi agravar a crise fiscal e a piora significativa do ambiente de negócios, prejudicando a geração de emprego e de renda.
Retomar uma trajetória de crescimento econômico, como na década de 2000, requer rever benefícios e corrigir as distorções microeconômicas.
Os gastos com Previdência e assistência social, quase metade da despesa primária do governo federal, crescem 4% ao ano acima da inflação. Sem reformas que diminuam o seu crescimento, teremos o difícil dilema entre reduzir os demais gastos e enfrentar as consequências de uma trajetória insustentável da dívida pública.
A PEC que limita o crescimento dos gastos colabora com a deliberação do orçamento público, ao garantir maior transparência sobre as restrições.
A transparência sobre os problemas foi uma bem-vinda novidade no começo do governo, em forte contraste com a administração anterior.
Recentemente, o governo tem demonstrado dificuldade com a divergência e negado os problemas decorrentes das suas escolhas e das deliberações do Congresso.
Entretanto, reconhecer recuos, tratando com transparência as dificuldades, distingue as melhores lideranças.
A deliberação democrática se beneficiaria da análise da eficácia das diversas políticas públicas e dos grupos beneficiados, assim como de simulações sobre o ajuste necessário para estabilizar a dívida pública, evitando a retomada da inflação crônica nos próximos anos.
O debate deveria incluir todo o conjunto da obra, como as desonerações, as políticas de proteção setorial e o gasto com servidores.
Espera-se que os recuos nas últimas semanas tenham vida curta e que sejam propostas medidas que estabilizem a dívida.
Temos uma janela de oportunidade. Os próximos meses serão testemunhas da capacidade do governo em aproveitá-la.
A liderança política deve ser avaliada pela sua capacidade de negociar conflitos em benefício da maioria.
O discurso do governo enfatiza, corretamente, a necessidade de ajuste fiscal e de reformas para que o país possa retomar uma trajetória sustentável de crescimento. A sua prática, porém, preocupa pela excessiva sensibilidade ao corporativismo.
O reajuste salarial para diversas categorias do setor público fragilizou o governo. A derrota na aprovação de instrumentos importantes para o ajuste fiscal dos Estados despertou dúvidas sobre a qualidade da liderança.
Criticam-se as escolhas na negociação, não a necessidade da política.
O governo anterior acreditou que o desenvolvimento passava pela concessão de benefícios a grupos organizados, como a expansão do crédito subsidiado e as políticas de proteção setorial. O resultado foi agravar a crise fiscal e a piora significativa do ambiente de negócios, prejudicando a geração de emprego e de renda.
Retomar uma trajetória de crescimento econômico, como na década de 2000, requer rever benefícios e corrigir as distorções microeconômicas.
Os gastos com Previdência e assistência social, quase metade da despesa primária do governo federal, crescem 4% ao ano acima da inflação. Sem reformas que diminuam o seu crescimento, teremos o difícil dilema entre reduzir os demais gastos e enfrentar as consequências de uma trajetória insustentável da dívida pública.
A PEC que limita o crescimento dos gastos colabora com a deliberação do orçamento público, ao garantir maior transparência sobre as restrições.
A transparência sobre os problemas foi uma bem-vinda novidade no começo do governo, em forte contraste com a administração anterior.
Recentemente, o governo tem demonstrado dificuldade com a divergência e negado os problemas decorrentes das suas escolhas e das deliberações do Congresso.
Entretanto, reconhecer recuos, tratando com transparência as dificuldades, distingue as melhores lideranças.
A deliberação democrática se beneficiaria da análise da eficácia das diversas políticas públicas e dos grupos beneficiados, assim como de simulações sobre o ajuste necessário para estabilizar a dívida pública, evitando a retomada da inflação crônica nos próximos anos.
O debate deveria incluir todo o conjunto da obra, como as desonerações, as políticas de proteção setorial e o gasto com servidores.
Espera-se que os recuos nas últimas semanas tenham vida curta e que sejam propostas medidas que estabilizem a dívida.
Temos uma janela de oportunidade. Os próximos meses serão testemunhas da capacidade do governo em aproveitá-la.
Lula e Trump - JOSÉ PADILHA
O Globo -14/08
Por que conservadores americanos e socialistas brasileiros, extremos opostos, estão incorporando, cada vez mais, o cinismo às ideologias?
A qui nos EUA o processo até que foi engraçado, embora o desfecho possa ser trágico. Depois de uma primária republicana ridícula, em que os candidatos se mostraram extremamente fracos e foram gradativamente eliminados da disputa pelo populismo histriônico de Trump, os conservadores ficaram em quintanilhas. Ou se afastavam de Trump e entregavam a Presidência aos democratas, ou coroavam Trump na convenção do Partido Republicano. Fora algumas exceções, notadamente Ted Cruz, os conservadores fecharam com Trump.
Estão comendo o pão que o diabo amassou. Trump associou-os ao racismo (contra os mexicanos), à ideia de que é lícito que estrangeiros interfiram nas campanhas eleitorais americanas (Putin e os hackers da Rússia), ao ódio indiscriminado contra os muçulmanos e à renegociação intempestiva e unilateral de tratados comerciais e militares (inclusive o da Otan), entre outras barbaridades.
A despeito de tudo isso, muitos conservadores ainda relutam em dar o braço a torcer. Todavia, é crescente o desconforto entre eles. Devem estar se perguntando: e se o Trump continuar a falar besteiras? E se ele ganhar e fizer exatamente o que disse que vai fazer? O que vai acontecer com o conservadorismo americano? Será ridicularizado para todo o sempre?
Já no Brasil, depois da completa desmoralização de Lula e do Partido dos Trabalhadores durante o processo do mensalão, os socialistas também ficaram em sinuca de bico, tendo que optar entre reconhecer a desonestidade do PT e entregar o país à direita, ou continuar apoiando um projeto de poder claramente corrupto. Salvo raras exceções, escolheram a corrupção.
Agora, acuados pela Lava-Jato e incapazes de dar o braço a torcer, estão sendo forçados a adotar posições cada vez mais inverossímeis, o que a longo prazo pode levá-los ao completo descrédito: Lula não sabia do mensalão, Dilma não sabia da Eletrobras, Lula não sabia da OAS, Dilma não sabia de Pasadena, Lula não sabia do Vaccari, Dilma não sabia de Belo Monte, Lula não sabia do João Santana, Dilma não sabia do Paulo Bernardo, Lula não sabia do Palocci, Dilma não sabia do Edinho, Lula não sabia do Bumlai, Dilma não sabia do Odebrecht, Dilma e Lula, enfim, não sabiam do petrolão… Só rindo para não chorar.
Por que será que os conservadores americanos e os socialistas brasileiros, extremos opostos do espectro ideológico, estão sendo forçados a incorporar, cada vez mais, o cinismo às suas ideologias? Será mera coincidência? Acho que não. Apesar das diferenças ideológicas, os socialistas brasileiros e os conservadores americanos parecem ter algo em comum. Se você não acredita, olhe para a economia. Depois de um aumento desenfreado nos gastos públicos, somado a uma política de subsídio a grandes grupos empresariais via BNDES e a programas sociais meramente redistributivos, o Brasil viu milhões de pessoas saírem da miséria. Todavia, assim que a capacidade de endividamento do país acabou, assim que as “pedaladas” e fraudes contábeis se tornaram insustentáveis e muitos investimentos fracassaram por total inaptidão administrativa, a realidade bateu à porta. O PIB caiu 10% em dois anos. A arrecadação minguou. Hoje o Brasil tem 12 milhões de desempregados, a Petrobras deve até a alma, os estados estão falidos, e a União precisa cortar cerca de R$ 150 bilhões do Orçamento para recuperar o equilíbrio fiscal… Pessoas racionais concluiriam: para melhorar de vida não basta gastar a esmo e redistribuir renda. É preciso fazer investimentos que dão retorno. Sem capacitar a população e aumentar a produtividade, a pobreza volta quando o limite do cheque especial acaba. Os socialistas aprenderam a lição? Claro que não. A cada proposta de corte nos gastos públicos e a cada menção da palavra “privatização”, gritam slogans contra a volta da política neoliberal…
Por sua vez, depois do crescimento robusto da era Clinton e do crescimento risível da era Bush, além da trágica ocupação do Iraque, os conservadores americanos também viram suas doutrinas, militares e econômicas, serem refutadas uma a uma. A desregulamentação do sistema financeiro vai ajudar a economia… O Obama care vai quebrar o sistema de Saúde… O aumento dos gastos públicos vai desvalorizar o dólar e gerar inflação… Não há aquecimento global… Só bola fora. Mudaram de ideia? Claro que não. Continuam insistindo na tese de que austeridade fiscal e redução de impostos, sobretudo para os mais ricos, geram crescimento econômico. Para mostrar que estavam certos, aplicaram o receituário ao estado de Kansas, e Kansas quebrou…
A verdade é que tanto a doutrina dos conservadores americanos quanto a dos socialistas brasileiros só servem para gerar narrativas cativantes e slogans baratos, mas não para balizar políticas públicas sensatas.
De um lado temos os amigos do povo, os políticos altruístas e sábios que vão usar o Estado para promover justiça social e salvar os pobres da opressão dos ricos. Do outro, temos os grandes empresários e os empreendedores destemidos, que, livres das regulações e da tirania do Estado, vão desenvolver tecnologia, criar riquezas e beneficiara todos. A primeira história vende bem na América Latina, sobretudo para artistas, sindicalistas e pseudo intelectuais; a segunda vende bem no interior dos Estados Unidos, sobretudo para brancos de classe média e milionários. As duas narrativas são super simplificações da História econômica e não resistem a um minuto de reflexão séria. Acontece que tanto os socialistas de Lula quanto os conservadores de Trump são incapazes de pensar criticamente a respeito de suas próprias crenças; têm em comum uma profunda desonestidade intelectual. É natural, portanto, que tendam ao cinismo.
Por que conservadores americanos e socialistas brasileiros, extremos opostos, estão incorporando, cada vez mais, o cinismo às ideologias?
A qui nos EUA o processo até que foi engraçado, embora o desfecho possa ser trágico. Depois de uma primária republicana ridícula, em que os candidatos se mostraram extremamente fracos e foram gradativamente eliminados da disputa pelo populismo histriônico de Trump, os conservadores ficaram em quintanilhas. Ou se afastavam de Trump e entregavam a Presidência aos democratas, ou coroavam Trump na convenção do Partido Republicano. Fora algumas exceções, notadamente Ted Cruz, os conservadores fecharam com Trump.
Estão comendo o pão que o diabo amassou. Trump associou-os ao racismo (contra os mexicanos), à ideia de que é lícito que estrangeiros interfiram nas campanhas eleitorais americanas (Putin e os hackers da Rússia), ao ódio indiscriminado contra os muçulmanos e à renegociação intempestiva e unilateral de tratados comerciais e militares (inclusive o da Otan), entre outras barbaridades.
A despeito de tudo isso, muitos conservadores ainda relutam em dar o braço a torcer. Todavia, é crescente o desconforto entre eles. Devem estar se perguntando: e se o Trump continuar a falar besteiras? E se ele ganhar e fizer exatamente o que disse que vai fazer? O que vai acontecer com o conservadorismo americano? Será ridicularizado para todo o sempre?
Já no Brasil, depois da completa desmoralização de Lula e do Partido dos Trabalhadores durante o processo do mensalão, os socialistas também ficaram em sinuca de bico, tendo que optar entre reconhecer a desonestidade do PT e entregar o país à direita, ou continuar apoiando um projeto de poder claramente corrupto. Salvo raras exceções, escolheram a corrupção.
Agora, acuados pela Lava-Jato e incapazes de dar o braço a torcer, estão sendo forçados a adotar posições cada vez mais inverossímeis, o que a longo prazo pode levá-los ao completo descrédito: Lula não sabia do mensalão, Dilma não sabia da Eletrobras, Lula não sabia da OAS, Dilma não sabia de Pasadena, Lula não sabia do Vaccari, Dilma não sabia de Belo Monte, Lula não sabia do João Santana, Dilma não sabia do Paulo Bernardo, Lula não sabia do Palocci, Dilma não sabia do Edinho, Lula não sabia do Bumlai, Dilma não sabia do Odebrecht, Dilma e Lula, enfim, não sabiam do petrolão… Só rindo para não chorar.
Por que será que os conservadores americanos e os socialistas brasileiros, extremos opostos do espectro ideológico, estão sendo forçados a incorporar, cada vez mais, o cinismo às suas ideologias? Será mera coincidência? Acho que não. Apesar das diferenças ideológicas, os socialistas brasileiros e os conservadores americanos parecem ter algo em comum. Se você não acredita, olhe para a economia. Depois de um aumento desenfreado nos gastos públicos, somado a uma política de subsídio a grandes grupos empresariais via BNDES e a programas sociais meramente redistributivos, o Brasil viu milhões de pessoas saírem da miséria. Todavia, assim que a capacidade de endividamento do país acabou, assim que as “pedaladas” e fraudes contábeis se tornaram insustentáveis e muitos investimentos fracassaram por total inaptidão administrativa, a realidade bateu à porta. O PIB caiu 10% em dois anos. A arrecadação minguou. Hoje o Brasil tem 12 milhões de desempregados, a Petrobras deve até a alma, os estados estão falidos, e a União precisa cortar cerca de R$ 150 bilhões do Orçamento para recuperar o equilíbrio fiscal… Pessoas racionais concluiriam: para melhorar de vida não basta gastar a esmo e redistribuir renda. É preciso fazer investimentos que dão retorno. Sem capacitar a população e aumentar a produtividade, a pobreza volta quando o limite do cheque especial acaba. Os socialistas aprenderam a lição? Claro que não. A cada proposta de corte nos gastos públicos e a cada menção da palavra “privatização”, gritam slogans contra a volta da política neoliberal…
Por sua vez, depois do crescimento robusto da era Clinton e do crescimento risível da era Bush, além da trágica ocupação do Iraque, os conservadores americanos também viram suas doutrinas, militares e econômicas, serem refutadas uma a uma. A desregulamentação do sistema financeiro vai ajudar a economia… O Obama care vai quebrar o sistema de Saúde… O aumento dos gastos públicos vai desvalorizar o dólar e gerar inflação… Não há aquecimento global… Só bola fora. Mudaram de ideia? Claro que não. Continuam insistindo na tese de que austeridade fiscal e redução de impostos, sobretudo para os mais ricos, geram crescimento econômico. Para mostrar que estavam certos, aplicaram o receituário ao estado de Kansas, e Kansas quebrou…
A verdade é que tanto a doutrina dos conservadores americanos quanto a dos socialistas brasileiros só servem para gerar narrativas cativantes e slogans baratos, mas não para balizar políticas públicas sensatas.
De um lado temos os amigos do povo, os políticos altruístas e sábios que vão usar o Estado para promover justiça social e salvar os pobres da opressão dos ricos. Do outro, temos os grandes empresários e os empreendedores destemidos, que, livres das regulações e da tirania do Estado, vão desenvolver tecnologia, criar riquezas e beneficiara todos. A primeira história vende bem na América Latina, sobretudo para artistas, sindicalistas e pseudo intelectuais; a segunda vende bem no interior dos Estados Unidos, sobretudo para brancos de classe média e milionários. As duas narrativas são super simplificações da História econômica e não resistem a um minuto de reflexão séria. Acontece que tanto os socialistas de Lula quanto os conservadores de Trump são incapazes de pensar criticamente a respeito de suas próprias crenças; têm em comum uma profunda desonestidade intelectual. É natural, portanto, que tendam ao cinismo.
Conciliar o inconciliável - ELIANE CANTANHÊDE
ESTADÃO - 14/08
Quanto mais perto de se tornar presidente de fato e de direito, mais Michel Temer fica diante de um desafio e tanto: conciliar dois objetivos inconciliáveis por definição. Ele precisa conquistar apoio popular e, ao mesmo tempo, tomar medidas consideradas pelo senso comum como “impopulares”. Não se trata de opção ou de vontade. Buscar popularidade e patrocinar reformas é fundamental – e urgente.
O ponto central desse desafio de Temer é a reforma da Previdência, um debate que percorre igualmente países desenvolvidos e emergentes e é uma exigência da realidade também no Brasil. Fernando Henrique começou, Lula continuou, Dilma anunciou antes de cair e Temer não tem alternativa: é fazer ou fazer.
Apesar da defesa, a torto e a direito, de quem tem responsabilidade de governo e tem noções de contabilidade, a questão da Previdência está no foco das relações entre capital e trabalho e deixa o governo Temer entre a cruz e a espada, fustigado pela percepção da sociedade, a versão das centrais sindicais e a pressão dos investidores. Mas a encruzilhada de Temer vai além da reforma da Previdência. Há a grave questão fiscal, a regulação das relações Estado-iniciativa privada e a flexibilização das regras trabalhistas – sem contar a reforma política, às avessas: exigência da sociedade, enfrenta resistências no Congresso.
Bastou o impeachment definitivo de Dilma entrar na reta final para Temer mergulhar em reuniões com empresários e banqueiros pesos pesados, obviamente indispensáveis para reaquecer a economia e gerar empregos. Mas, de outro lado, cinco centrais sindicais divulgaram nota curta e grossa, de dois parágrafos, convocando um ato na próxima terça-feira e mandando um recado: rejeitam qualquer negociação “que vise retirar direitos trabalhistas e previdenciários da classe trabalhadora, ou precarizar ainda mais as relações de trabalho”. E essa nota uniu duas velhas inimigas: a CUT (petista) e a Força Sindical (antipetista).
Nesse ambiente, ministros de Temer, líderes governistas e até o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade, rebatem com o mesmo exemplo: a França, que, apesar de símbolo de democracia e de políticas sociais e trabalhistas, foi compelida a fazer reformas duras quando a crise na Grécia ameaçou cruzar fronteiras. “No mundo de hoje, não se pode governar a partir de dogmas, achando que as coisas são imutáveis”, diz Andrade.
É sob essa pressão do mercado e das forças trabalhistas que Temer tenta driblar os dogmas e atender a realidade, exercitando sua experiência política e discutindo como azeitar a comunicação. Assim como negociou o “Ponte para o Futuro” com o capital, ele precisa convencer o trabalho e a opinião pública de que a flexibilização trabalhista não é contra os trabalhadores e que a reforma da Previdência não é contra os velhinhos, mas exatamente para que os assalariados tenham emprego e que todos os velhinhos tenham direitos cada vez mais iguais. Aliás, que continuem tendo direitos. Como? Com novos limites de idade, equilíbrio entre contribuição e idade e um sistema único para o serviço público e o privado.
Como presidente efetivo, Temer terá mais condições de apresentar uma “atualização” do País nas áreas previdenciária, trabalhista e regulatória, e de negociar com o Congresso tendo na retaguarda o apoio do setor produtivo, a recuperação da confiança e a volta do investimento interno e externo. Mas ele também precisa da opinião pública e das centrais, sem se esquecer de que o maior problema estrutural do Brasil continua sendo a desigualdade e que populismo barato é uma coisa, justiça social é outra, obrigatória. Atualização do País, sim. Retroceder na inclusão, nunca. Isso acabaria com o governo dele e com o seu verbete na história.
Quanto mais perto de se tornar presidente de fato e de direito, mais Michel Temer fica diante de um desafio e tanto: conciliar dois objetivos inconciliáveis por definição. Ele precisa conquistar apoio popular e, ao mesmo tempo, tomar medidas consideradas pelo senso comum como “impopulares”. Não se trata de opção ou de vontade. Buscar popularidade e patrocinar reformas é fundamental – e urgente.
O ponto central desse desafio de Temer é a reforma da Previdência, um debate que percorre igualmente países desenvolvidos e emergentes e é uma exigência da realidade também no Brasil. Fernando Henrique começou, Lula continuou, Dilma anunciou antes de cair e Temer não tem alternativa: é fazer ou fazer.
Apesar da defesa, a torto e a direito, de quem tem responsabilidade de governo e tem noções de contabilidade, a questão da Previdência está no foco das relações entre capital e trabalho e deixa o governo Temer entre a cruz e a espada, fustigado pela percepção da sociedade, a versão das centrais sindicais e a pressão dos investidores. Mas a encruzilhada de Temer vai além da reforma da Previdência. Há a grave questão fiscal, a regulação das relações Estado-iniciativa privada e a flexibilização das regras trabalhistas – sem contar a reforma política, às avessas: exigência da sociedade, enfrenta resistências no Congresso.
Bastou o impeachment definitivo de Dilma entrar na reta final para Temer mergulhar em reuniões com empresários e banqueiros pesos pesados, obviamente indispensáveis para reaquecer a economia e gerar empregos. Mas, de outro lado, cinco centrais sindicais divulgaram nota curta e grossa, de dois parágrafos, convocando um ato na próxima terça-feira e mandando um recado: rejeitam qualquer negociação “que vise retirar direitos trabalhistas e previdenciários da classe trabalhadora, ou precarizar ainda mais as relações de trabalho”. E essa nota uniu duas velhas inimigas: a CUT (petista) e a Força Sindical (antipetista).
Nesse ambiente, ministros de Temer, líderes governistas e até o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade, rebatem com o mesmo exemplo: a França, que, apesar de símbolo de democracia e de políticas sociais e trabalhistas, foi compelida a fazer reformas duras quando a crise na Grécia ameaçou cruzar fronteiras. “No mundo de hoje, não se pode governar a partir de dogmas, achando que as coisas são imutáveis”, diz Andrade.
É sob essa pressão do mercado e das forças trabalhistas que Temer tenta driblar os dogmas e atender a realidade, exercitando sua experiência política e discutindo como azeitar a comunicação. Assim como negociou o “Ponte para o Futuro” com o capital, ele precisa convencer o trabalho e a opinião pública de que a flexibilização trabalhista não é contra os trabalhadores e que a reforma da Previdência não é contra os velhinhos, mas exatamente para que os assalariados tenham emprego e que todos os velhinhos tenham direitos cada vez mais iguais. Aliás, que continuem tendo direitos. Como? Com novos limites de idade, equilíbrio entre contribuição e idade e um sistema único para o serviço público e o privado.
Como presidente efetivo, Temer terá mais condições de apresentar uma “atualização” do País nas áreas previdenciária, trabalhista e regulatória, e de negociar com o Congresso tendo na retaguarda o apoio do setor produtivo, a recuperação da confiança e a volta do investimento interno e externo. Mas ele também precisa da opinião pública e das centrais, sem se esquecer de que o maior problema estrutural do Brasil continua sendo a desigualdade e que populismo barato é uma coisa, justiça social é outra, obrigatória. Atualização do País, sim. Retroceder na inclusão, nunca. Isso acabaria com o governo dele e com o seu verbete na história.
Economia moral - HELIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 14/08
O ser humano é bom ou mau? A questão já mobilizou filósofos e, principalmente, teólogos. A ciência moderna prefere uma resposta mais tucana. Somos uma espécie hipersocial, com cérebros programados para o altruísmo e a colaboração, até com estranhos, mas que podem também atuar de forma egoísta e mesmo violenta.
Como é grande o potencial destrutivo das ações dos oportunistas, acabamos construindo nossas instituições sociais imaginando que as pessoas agirão sempre de forma egoísta. Isso fica bem visível no direito e, especialmente, na economia, cujo modelo clássico tem como pressuposto agentes amorais que buscam maximizar seus interesses.
Como gostamos mesmo de melhorar nossas vidas, os incentivos econômicos funcionam na maioria das vezes. Mas, como a economia comportamental não cessa de revelar, em algumas situações o sistema de incentivos falha miseravelmente.
Samuel Bowles se debruça sobre essas falhas em "Moral Economy" (economia moral). O exemplo sempre citado é o da creche de Haifa (Israel) que passou a impor uma multa a pais que atrasassem para buscar seus filhos. Em vez de os atrasos diminuírem, como previa a teoria, eles aumentaram. Deixaram de ser considerados uma descortesia para com os professores, que eram obrigados a esperar, para ser vistos como um serviço prestado pela creche. Pior, depois que a escola decidiu retirar a multa, os atrasos não diminuíram.
Bowles pega esse e muitos outros casos e os destrincha, recorrendo a experimentos econômicos e estatística. Para o autor, é preciso muito cuidado ao desenhar incentivos, pois, quando eles transmitem a mensagem de que o regulador espera que os regulados atuem de forma egoísta, as pessoas podem começar a agir exatamente assim. A conclusão de Bowles é a que está no subtítulo da obra: bons incentivos não são substituto para bons cidadãos.
O ser humano é bom ou mau? A questão já mobilizou filósofos e, principalmente, teólogos. A ciência moderna prefere uma resposta mais tucana. Somos uma espécie hipersocial, com cérebros programados para o altruísmo e a colaboração, até com estranhos, mas que podem também atuar de forma egoísta e mesmo violenta.
Como é grande o potencial destrutivo das ações dos oportunistas, acabamos construindo nossas instituições sociais imaginando que as pessoas agirão sempre de forma egoísta. Isso fica bem visível no direito e, especialmente, na economia, cujo modelo clássico tem como pressuposto agentes amorais que buscam maximizar seus interesses.
Como gostamos mesmo de melhorar nossas vidas, os incentivos econômicos funcionam na maioria das vezes. Mas, como a economia comportamental não cessa de revelar, em algumas situações o sistema de incentivos falha miseravelmente.
Samuel Bowles se debruça sobre essas falhas em "Moral Economy" (economia moral). O exemplo sempre citado é o da creche de Haifa (Israel) que passou a impor uma multa a pais que atrasassem para buscar seus filhos. Em vez de os atrasos diminuírem, como previa a teoria, eles aumentaram. Deixaram de ser considerados uma descortesia para com os professores, que eram obrigados a esperar, para ser vistos como um serviço prestado pela creche. Pior, depois que a escola decidiu retirar a multa, os atrasos não diminuíram.
Bowles pega esse e muitos outros casos e os destrincha, recorrendo a experimentos econômicos e estatística. Para o autor, é preciso muito cuidado ao desenhar incentivos, pois, quando eles transmitem a mensagem de que o regulador espera que os regulados atuem de forma egoísta, as pessoas podem começar a agir exatamente assim. A conclusão de Bowles é a que está no subtítulo da obra: bons incentivos não são substituto para bons cidadãos.
A história mais feia não cabe nos balanços - ROLF KUNTZ
ESTADÃO - 14/08
Saqueada por um bando de ladrões e devastada por 13 anos de erros e irresponsabilidades, a maior empresa do Brasil, a Petrobrás, apenas começa a emergir do atoleiro. O lucro trimestral de R$ 370 milhões ficou muito abaixo dos R$ 2 bilhões projetados por analistas financeiros. Mas pelo menos as contas ficaram positivas depois de três períodos no vermelho. A reconstrução ainda vai ser demorada e será impossível, já avisaram os novos administradores, completar os investimentos de US$ 20 bilhões programados para este ano. Com prejuízo de R$ 2,17 bilhões no primeiro semestre, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também exibe as marcas do governo petista. Em um ano a provisão para risco de crédito passou de R$ 480 milhões para R$ 4,44 bilhões, aumentando 824,4%. Mas os danos à Petrobrás e a outras estatais são apenas marcas especialmente visíveis dos estragos causados por uma rara combinação de incompetência, irresponsabilidade, arrogância e corrupção. Não cabe nessas tabelas a parte mais importante e mais impressionante da história.
Nem tudo é explicitado nos balanços e nas demonstrações de lucros e perdas. Não aparecem, por exemplo, as consequências econômicas – para a empresa e para o País – do enfraquecimento da Petrobrás. Não se explicitam os efeitos do enorme desperdício de recursos nas operações do BNDES ou de outros bancos estatais. Não se passa diretamente dessas contas para a inflação e para a deterioração da economia nacional, mas todos esses fatos são componentes da mesma história.
Parte do balanço dessa longa noitada de farras e desmandos vem sendo realizada pela Operação Lava Jato. Nenhuma investigação igualmente profunda foi iniciada em outras áreas da administração indireta, mas um de seus desdobramentos atingiu a Eletronuclear e já resultou em condenação. Como o aparelhamento, o loteamento e a barganha têm dominado a alocação de altos postos no sistema estatal, ninguém se surpreenderá se novas investigações mostrarem uma rede muito mais ampla de escândalos.
Neste emaranhado de bandalheiras e de irresponsabilidades, nem sempre é fácil distinguir o crime da mera incompetência. Mas os dois conjuntos de ações convergiram na produção do desastre maior. Só de transferências do Tesouro o BNDES recebeu mais de R$ 400 bilhões a partir de 2009. Era dinheiro destinado ao Programa de Sustentação do Investimento (PSI), criado para durar poucos meses, como parte do combate à recessão, mas só extinto no ano passado.
As aplicações do banco, destinadas preferencialmente a grandes grupos e vinculadas à criação de campeões nacionais, consumiram enormes volumes de dinheiro, com resultados abaixo de pífios e, em alguns casos, escandalosos.
A crise da indústria, iniciada no meio do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, comprova há muito tempo o erro das decisões. Pelos dados oficiais, a produção geral da indústria cresceu 0,4% em 2011, diminuiu 2,3% em 2012, aumentou 2,1% em 2013 e depois encolheu sem parar. Houve resultados negativos de 3% em 2014, 8,2% em 2015 e 9,1% no primeiro semestre de 2016.
Não houve apenas um enorme recuo da produção. Houve também, mais grave que isso, uma desastrosa perda de produtividade e de poder de competição. O governo gastou bilhões em subsídios ao crédito, perdeu bilhões em desonerações fiscais e criou programas vinculados a protecionismo comercial. Nada funcionou, porque os setores favorecidos se acomodaram no esquema de favores, enquanto puderam, e deixaram de investir.
A maior prova disso é o recuo tanto da produção quanto da importação de bens de capital (máquinas e equipamentos). A Petrobrás, submetida a uma política de conteúdo nacional na compra de equipamentos e componentes, teve de suportar custos maiores e de perder eficiência também por isso. A crise da fornecedora de sondas Sete Brasil, levada à recuperação judicial, é parte dessa história altamente imprópria para menores.
O desarranjo das contas públicas, a inflação acima dos padrões dos países desenvolvidos e emergentes, a recessão, o desemprego de mais de 11 milhões e a contração do comércio exterior são efeitos desses erros e desmandos. Uma história mais completa incluiria as pedaladas e a maquiagem das contas públicas, a gestão desastrosa do setor elétrico e a contenção de preços da gasolina, mas nem é preciso avançar nesses detalhes.
O superávit comercial só voltou a ocorrer porque as importações caíram mais que as exportações. De janeiro a julho o valor dos bens importados foi 27,6% menor que o de um ano antes, pela média dos dias úteis. A receita das vendas externas foi apenas 5,6% inferior à de janeiro a julho de 2015. Ainda assim, o superávit de US$ 28,23 bilhões só foi possível porque o agronegócio teve um saldo positivo de US$ 45,58 bilhões, suficiente para compensar com sobras o déficit conjunto dos demais setores.
Há sinais de estabilização da economia. Se o governo provisório se converter em efetivo, terá mais força para implantar medidas de arrumação das contas públicas. O crescimento poderá recomeçar, facilitado pela enorme capacidade ociosa da indústria. Mas crescimento para valer – duradouro e pelo menos na faixa de 4% a 5% ao ano – só virá se a economia se tornar muito mais eficiente e competitiva. Isso dependerá de contas fiscais em condições aceitáveis, de inflação menor (com juros também menores) e de muito investimento em capital fixo e em boa educação.
A política educacional só irá para o rumo necessário se o populismo for abandonado e a qualidade, revalorizada. Perdeu-se tempo alargando as portas de ingresso em faculdades, enquanto se desprezava a boa formação fundamental e média.
A exigência de boa formação em linguagem, matemática e ciências foi rotulada como preconceito elitista, como se nos países mais capazes de competir e de gerar bons empregos a educação fosse tratada com populismo e descuido. A recriação de um país próspero vai dar muito mais trabalho que a mera reativação da economia.
Saqueada por um bando de ladrões e devastada por 13 anos de erros e irresponsabilidades, a maior empresa do Brasil, a Petrobrás, apenas começa a emergir do atoleiro. O lucro trimestral de R$ 370 milhões ficou muito abaixo dos R$ 2 bilhões projetados por analistas financeiros. Mas pelo menos as contas ficaram positivas depois de três períodos no vermelho. A reconstrução ainda vai ser demorada e será impossível, já avisaram os novos administradores, completar os investimentos de US$ 20 bilhões programados para este ano. Com prejuízo de R$ 2,17 bilhões no primeiro semestre, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também exibe as marcas do governo petista. Em um ano a provisão para risco de crédito passou de R$ 480 milhões para R$ 4,44 bilhões, aumentando 824,4%. Mas os danos à Petrobrás e a outras estatais são apenas marcas especialmente visíveis dos estragos causados por uma rara combinação de incompetência, irresponsabilidade, arrogância e corrupção. Não cabe nessas tabelas a parte mais importante e mais impressionante da história.
Nem tudo é explicitado nos balanços e nas demonstrações de lucros e perdas. Não aparecem, por exemplo, as consequências econômicas – para a empresa e para o País – do enfraquecimento da Petrobrás. Não se explicitam os efeitos do enorme desperdício de recursos nas operações do BNDES ou de outros bancos estatais. Não se passa diretamente dessas contas para a inflação e para a deterioração da economia nacional, mas todos esses fatos são componentes da mesma história.
Parte do balanço dessa longa noitada de farras e desmandos vem sendo realizada pela Operação Lava Jato. Nenhuma investigação igualmente profunda foi iniciada em outras áreas da administração indireta, mas um de seus desdobramentos atingiu a Eletronuclear e já resultou em condenação. Como o aparelhamento, o loteamento e a barganha têm dominado a alocação de altos postos no sistema estatal, ninguém se surpreenderá se novas investigações mostrarem uma rede muito mais ampla de escândalos.
Neste emaranhado de bandalheiras e de irresponsabilidades, nem sempre é fácil distinguir o crime da mera incompetência. Mas os dois conjuntos de ações convergiram na produção do desastre maior. Só de transferências do Tesouro o BNDES recebeu mais de R$ 400 bilhões a partir de 2009. Era dinheiro destinado ao Programa de Sustentação do Investimento (PSI), criado para durar poucos meses, como parte do combate à recessão, mas só extinto no ano passado.
As aplicações do banco, destinadas preferencialmente a grandes grupos e vinculadas à criação de campeões nacionais, consumiram enormes volumes de dinheiro, com resultados abaixo de pífios e, em alguns casos, escandalosos.
A crise da indústria, iniciada no meio do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, comprova há muito tempo o erro das decisões. Pelos dados oficiais, a produção geral da indústria cresceu 0,4% em 2011, diminuiu 2,3% em 2012, aumentou 2,1% em 2013 e depois encolheu sem parar. Houve resultados negativos de 3% em 2014, 8,2% em 2015 e 9,1% no primeiro semestre de 2016.
Não houve apenas um enorme recuo da produção. Houve também, mais grave que isso, uma desastrosa perda de produtividade e de poder de competição. O governo gastou bilhões em subsídios ao crédito, perdeu bilhões em desonerações fiscais e criou programas vinculados a protecionismo comercial. Nada funcionou, porque os setores favorecidos se acomodaram no esquema de favores, enquanto puderam, e deixaram de investir.
A maior prova disso é o recuo tanto da produção quanto da importação de bens de capital (máquinas e equipamentos). A Petrobrás, submetida a uma política de conteúdo nacional na compra de equipamentos e componentes, teve de suportar custos maiores e de perder eficiência também por isso. A crise da fornecedora de sondas Sete Brasil, levada à recuperação judicial, é parte dessa história altamente imprópria para menores.
O desarranjo das contas públicas, a inflação acima dos padrões dos países desenvolvidos e emergentes, a recessão, o desemprego de mais de 11 milhões e a contração do comércio exterior são efeitos desses erros e desmandos. Uma história mais completa incluiria as pedaladas e a maquiagem das contas públicas, a gestão desastrosa do setor elétrico e a contenção de preços da gasolina, mas nem é preciso avançar nesses detalhes.
O superávit comercial só voltou a ocorrer porque as importações caíram mais que as exportações. De janeiro a julho o valor dos bens importados foi 27,6% menor que o de um ano antes, pela média dos dias úteis. A receita das vendas externas foi apenas 5,6% inferior à de janeiro a julho de 2015. Ainda assim, o superávit de US$ 28,23 bilhões só foi possível porque o agronegócio teve um saldo positivo de US$ 45,58 bilhões, suficiente para compensar com sobras o déficit conjunto dos demais setores.
Há sinais de estabilização da economia. Se o governo provisório se converter em efetivo, terá mais força para implantar medidas de arrumação das contas públicas. O crescimento poderá recomeçar, facilitado pela enorme capacidade ociosa da indústria. Mas crescimento para valer – duradouro e pelo menos na faixa de 4% a 5% ao ano – só virá se a economia se tornar muito mais eficiente e competitiva. Isso dependerá de contas fiscais em condições aceitáveis, de inflação menor (com juros também menores) e de muito investimento em capital fixo e em boa educação.
A política educacional só irá para o rumo necessário se o populismo for abandonado e a qualidade, revalorizada. Perdeu-se tempo alargando as portas de ingresso em faculdades, enquanto se desprezava a boa formação fundamental e média.
A exigência de boa formação em linguagem, matemática e ciências foi rotulada como preconceito elitista, como se nos países mais capazes de competir e de gerar bons empregos a educação fosse tratada com populismo e descuido. A recriação de um país próspero vai dar muito mais trabalho que a mera reativação da economia.
Nem vira-lata nem Brasil potência - SERGIO FAUSTO
ESTADÃO - 14/08
Nelson Rodrigues criou a expressão “síndrome de vira-lata” para se referir ao sentimento de inferioridade que abatia os jogadores brasileiros em confrontos internacionais, só superado depois da conquista do primeiro título mundial, em 1958, na Suécia. Com o tempo, a expressão ultrapassou as quatro linhas do gramado e passou a ser empregada para designar uma descrença atávica na possibilidade de o País realizar grandes feitos em outros campos da atividade humana.
No polo oposto da síndrome de vira-lata surgiu a mania do “Brasil potência”, resultado do cruzamento do nativismo romântico (“gigante pela própria natureza”) com o nacionalismo autoritário (“ninguém segura este país”). Ao longo dos últimos 40 anos, pelo menos, oscilamos entre um extremo e outro da autoestima nacional, numa ciclotimia que produziu um enorme desperdício de recursos produtivos, ambientais e financeiros.
É verdade que o primeiro laivo de “Brasil potência” apareceu com os “50 anos em 5” de Juscelino Kubitschek. No entanto, apesar da expansão monetária excessiva e da inflação acelerada, JK deixou sua marca de político democrata, presidente “bossa nova”, símbolo de um Brasil criativo e conectado ao mundo.
O auge do ufanismo do “Brasil potência” deu-se na ditadura militar, a partir do chamado “milagre brasileiro”, período, entre 1968 e 1973, em que o produto interno bruto (PIB) cresceu à média de 10% ao ano, mas a renda se concentrou como nunca antes, em meio à mais dura repressão política. Houve progresso material, sim, mas social e regionalmente mal dividido e ambientalmente custoso, pelo inchaço das grandes cidades e pela ocupação desordenada da Amazônia. Pior, a censura e a tortura tornaram-se políticas de Estado.
Para dar sobrevida ao “milagre”, quando as condições internas e, sobretudo, as externas não mais o permitiam, o Brasil redobrou a aposta no projeto do país potência. Diante do primeiro “choque do petróleo”, mergulhamos na ilusão de que éramos “uma ilha de prosperidade num mundo em crise”. A prosperidade viria de um grande programa de investimentos estatais financiado pelos petrodólares reciclados nos bancos internacionais. A ilusão, como sempre, terminou mal: o endividamento temerário na segunda metade dos anos 70 levou-nos à crise da dívida externa e à inflação alta, crônica e crescente nos anos 80.
Em uma década perdida do ponto de vista econômico, só não afundamos em mais uma fase aguda da “síndrome de vira-lata” porque a força de uma nova sociedade civil e a sabedoria de líderes políticos produziram o fim da ditadura militar e a transição para a democracia. Apesar de seus equívocos, a Constituição de 1988 condensou as aspirações de um País democrático e mais justo. Se as liberdades civis e políticas logo se fizeram sentir em sua plenitude, os avanços sociais e econômicos só puderam passar a ocorrer de fato depois que o Plano Real pôs fim à superinflação e as reformas subsequentes modernizaram parcialmente o Estado e a economia.
Parecíamos inaugurar uma nova fase, assentada na ideia de que o progresso de um país depende fundamentalmente do contínuo aperfeiçoamento de suas instituições, da melhoria da eficiência e eficácia das ações do governo, notadamente na área social, da previsibilidade e transparência de suas ações, da regulação adequada do setor privado, da manutenção de uma inflação baixa e de contas públicas sob controle. Muito bem feita a transição de poder de Fernando Henrique Cardoso para Lula, o primeiro governo do líder petista nos deu a impressão de que a ciclotimia do passado era página virada.
Mas eis que os ganhos obtidos com a condução prudente da política econômica, o boom das commodities, a “descoberta” do pré-sal, os bons resultados da resposta inicial à crise financeira global em 2008, a badalação internacional de mercados e governos em torno do Brasil e do presidente Lula, o apetite do PT por permanecer no poder, tudo isso se somou para atiçar o imaginário do Brasil potência, não apenas econômica, mas agora também geopolítica, com projeção de poder militar, sob a égide de um capitalismo de Estado socialmente includente e o comando de um partido hegemônico cujo líder maior era considerado “o cara” pelos grandes do mundo.
Embalados em certo delírio de grandeza, chegamos à crise atual. Que a estejamos atravessando dentro da normalidade institucional e com avanços no combate democrático à corrupção é motivo para não recairmos em mais uma fase aguda da “síndrome de vira-lata”. Mas não basta.
Está mais do que na hora de encontrarmos um ponto de equilíbrio mais estável e de definirmos melhor o tamanho e, sobretudo, a natureza das nossas aspirações como país. Não se trata apenas de melhor adequar meios e fins ao longo do tempo, reconhecendo que os meios são finitos e a vontade política não tem o condão de expandi-los da noite para o dia, mas também de discutir os próprios fins.
Para construir uma boa sociedade, coisa bem diferente de um país potência, o que é prioritário: erguer refinarias de petróleo e dispor de submarinos a propulsão nuclear ou aumentar a cobertura do saneamento básico e melhorar a qualidade da educação? Para melhorar a educação, o que é preferível: aumentar o investimento e o subsídio na educação superior ou fortalecer a educação básica? E para melhorar a qualidade da educação básica: é mais importante edificar escolas ou investir na formação dos professores?
Na resposta a essas perguntas devemos lembrar-nos de que a potência de um país consiste na capacidade dos seus cidadãos para desenvolver, por competição e cooperação, o máximo de seu potencial individual e coletivo para a criação de riquezas em sentido amplo. Como no futebol, o Brasil deve aspirar ao jogo competitivo e eficiente, mas também ao jogo bonito, a exemplo do que fizemos pela primeira vez em 1958, na Suécia.
Nelson Rodrigues criou a expressão “síndrome de vira-lata” para se referir ao sentimento de inferioridade que abatia os jogadores brasileiros em confrontos internacionais, só superado depois da conquista do primeiro título mundial, em 1958, na Suécia. Com o tempo, a expressão ultrapassou as quatro linhas do gramado e passou a ser empregada para designar uma descrença atávica na possibilidade de o País realizar grandes feitos em outros campos da atividade humana.
No polo oposto da síndrome de vira-lata surgiu a mania do “Brasil potência”, resultado do cruzamento do nativismo romântico (“gigante pela própria natureza”) com o nacionalismo autoritário (“ninguém segura este país”). Ao longo dos últimos 40 anos, pelo menos, oscilamos entre um extremo e outro da autoestima nacional, numa ciclotimia que produziu um enorme desperdício de recursos produtivos, ambientais e financeiros.
É verdade que o primeiro laivo de “Brasil potência” apareceu com os “50 anos em 5” de Juscelino Kubitschek. No entanto, apesar da expansão monetária excessiva e da inflação acelerada, JK deixou sua marca de político democrata, presidente “bossa nova”, símbolo de um Brasil criativo e conectado ao mundo.
O auge do ufanismo do “Brasil potência” deu-se na ditadura militar, a partir do chamado “milagre brasileiro”, período, entre 1968 e 1973, em que o produto interno bruto (PIB) cresceu à média de 10% ao ano, mas a renda se concentrou como nunca antes, em meio à mais dura repressão política. Houve progresso material, sim, mas social e regionalmente mal dividido e ambientalmente custoso, pelo inchaço das grandes cidades e pela ocupação desordenada da Amazônia. Pior, a censura e a tortura tornaram-se políticas de Estado.
Para dar sobrevida ao “milagre”, quando as condições internas e, sobretudo, as externas não mais o permitiam, o Brasil redobrou a aposta no projeto do país potência. Diante do primeiro “choque do petróleo”, mergulhamos na ilusão de que éramos “uma ilha de prosperidade num mundo em crise”. A prosperidade viria de um grande programa de investimentos estatais financiado pelos petrodólares reciclados nos bancos internacionais. A ilusão, como sempre, terminou mal: o endividamento temerário na segunda metade dos anos 70 levou-nos à crise da dívida externa e à inflação alta, crônica e crescente nos anos 80.
Em uma década perdida do ponto de vista econômico, só não afundamos em mais uma fase aguda da “síndrome de vira-lata” porque a força de uma nova sociedade civil e a sabedoria de líderes políticos produziram o fim da ditadura militar e a transição para a democracia. Apesar de seus equívocos, a Constituição de 1988 condensou as aspirações de um País democrático e mais justo. Se as liberdades civis e políticas logo se fizeram sentir em sua plenitude, os avanços sociais e econômicos só puderam passar a ocorrer de fato depois que o Plano Real pôs fim à superinflação e as reformas subsequentes modernizaram parcialmente o Estado e a economia.
Parecíamos inaugurar uma nova fase, assentada na ideia de que o progresso de um país depende fundamentalmente do contínuo aperfeiçoamento de suas instituições, da melhoria da eficiência e eficácia das ações do governo, notadamente na área social, da previsibilidade e transparência de suas ações, da regulação adequada do setor privado, da manutenção de uma inflação baixa e de contas públicas sob controle. Muito bem feita a transição de poder de Fernando Henrique Cardoso para Lula, o primeiro governo do líder petista nos deu a impressão de que a ciclotimia do passado era página virada.
Mas eis que os ganhos obtidos com a condução prudente da política econômica, o boom das commodities, a “descoberta” do pré-sal, os bons resultados da resposta inicial à crise financeira global em 2008, a badalação internacional de mercados e governos em torno do Brasil e do presidente Lula, o apetite do PT por permanecer no poder, tudo isso se somou para atiçar o imaginário do Brasil potência, não apenas econômica, mas agora também geopolítica, com projeção de poder militar, sob a égide de um capitalismo de Estado socialmente includente e o comando de um partido hegemônico cujo líder maior era considerado “o cara” pelos grandes do mundo.
Embalados em certo delírio de grandeza, chegamos à crise atual. Que a estejamos atravessando dentro da normalidade institucional e com avanços no combate democrático à corrupção é motivo para não recairmos em mais uma fase aguda da “síndrome de vira-lata”. Mas não basta.
Está mais do que na hora de encontrarmos um ponto de equilíbrio mais estável e de definirmos melhor o tamanho e, sobretudo, a natureza das nossas aspirações como país. Não se trata apenas de melhor adequar meios e fins ao longo do tempo, reconhecendo que os meios são finitos e a vontade política não tem o condão de expandi-los da noite para o dia, mas também de discutir os próprios fins.
Para construir uma boa sociedade, coisa bem diferente de um país potência, o que é prioritário: erguer refinarias de petróleo e dispor de submarinos a propulsão nuclear ou aumentar a cobertura do saneamento básico e melhorar a qualidade da educação? Para melhorar a educação, o que é preferível: aumentar o investimento e o subsídio na educação superior ou fortalecer a educação básica? E para melhorar a qualidade da educação básica: é mais importante edificar escolas ou investir na formação dos professores?
Na resposta a essas perguntas devemos lembrar-nos de que a potência de um país consiste na capacidade dos seus cidadãos para desenvolver, por competição e cooperação, o máximo de seu potencial individual e coletivo para a criação de riquezas em sentido amplo. Como no futebol, o Brasil deve aspirar ao jogo competitivo e eficiente, mas também ao jogo bonito, a exemplo do que fizemos pela primeira vez em 1958, na Suécia.
Madame Natasha em Cidade de Deus - ELIO GASPARI
O GLOBO - 14/08
Madame Natasha concedeu sua primeira bolsa de estudos multilíngue para todos aqueles que usaram a palavra "favela" para designar o bairro de Cidade de Deus, berço de Rafaela Silva.
Cidade de Deus nunca foi uma favela. É o contrário. Ela foi construída em 1965, no auge da política de remoções. Era um dos símbolos do progresso da alvenaria, triunfando sobre os barracos e a miséria. Em 1969, misteriosas mãos higienistas tocaram fogo na favela da Praia do Pinto, à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, desabrigando 9.000 pessoas. Os favelados foram para Cidade de Deus e o terreno desocupado deu lugar a um conjunto de edifícios para a boa classe média, conhecido como Selva de Pedra. E assim o Leblon mudou de cara.
Cidade de Deus não recebeu obras de infraestrutura necessárias e aos poucos deslizou para o abandono pelo Estado. Já o Leblon...
A palavra favela tem um componente de anomalia, voluntarismo e exclusão. Favela é obra e moradia de pobres. Cidade de Deus foi um símbolo do planejamento estatal com suas promessas de inclusão social.
A joia da coroa da política de remoções que até hoje alimenta a demofobia das cidades brasileiras chamava-se Vila Kennedy, na região de Bangu, inaugurada em 1964, um ano antes do início das obras de Cidade de Deus. Era a menina dos olhos do governador Carlos Lacerda e do embaixador americano Lincoln Gordon, que despejou no projeto verbas da Aliança para o Progresso. Para lá foram moradores da favela do morro do Pasmado, por dentro do qual passa o primeiro túnel que leva a Copacabana. Tinha tudo para dar certo, mas o Estado sumiu e, quando Vila Kennedy comemorou seu décimo aniversário, foi chamada de "fracasso". No vigésimo, de "pesadelo". No trigésimo, esqueceram-na. A essa altura, com 150 mil moradores, ela só era notícia quando a tropa do Bope disputava o controle de algumas áreas com o Comando Vermelho. A Vila ganhou Unidade de Polícia Pacificadora e, entre 2013 e 2015, as denúncias de abuso de autoridade de policiais subiram de 4% para 30% na contabilidade do Disque-Denúncia.
Houve época em que diversos bairros do Rio degradaram-se. Ninguém chamou a Lapa da primeira metade do século passado de favela. Se Cidade de Deus é uma favela, a palavra serviria para designar moradores e não moradias. Nesse tipo de classificação, favela é o lugar onde vive gente negra e pobre, como Rafaela Silva, a moça da medalha de ouro.
QUEREM CRIAR A BOLSA CAIXA DOIS
A repórter Maria Cristina Fernandes mostrou que circula em Brasília a ideia de uma anistia para partidos e políticos beneficiados em suas campanhas por doações ilegais vindas de caixas dois de empresas.
Um advogado que não gosta da ideia e conhece o mundo das doações ilegais sugere: "Tudo bem, desde que a anistia dependa da confissão do partido e/ou do cidadão. Feita a confissão, o interessado deverá pagar uma multa. Para começar a conversa poderíamos fixá-la em 10% do valor recebido. Achou pouco? 20%. Sem a iniciativa da confissão e sem multa, não será anistia, mas passe livre".
A história do Brasil foi iluminada por mais de uma dezena de anistias e nenhuma equivaleu a um passe livre. A maior delas foi assinada pelo presidente João Figueiredo em 1979, beneficiando cerca de 5.000 pessoas. Todos os anistiados haviam sofrido alguma forma de violência ou constrangimento. A anistia que se articula equivaleria a uma Bolsa Caixa Dois, destinada a beneficiar os beneficiados.
DELÍRIO DE LULA
Em março, quando cozinhava sua nomeação para a chefia da Casa Civil de Dilma, Lula investiu-se da condição de regente da República e começou a formar seu ministério.
Apostou alto e convidou o empresário Jorge Paulo Lemann para uma pasta da área econômica. Como o bilionário estava na China, a conversa foi por telefone. Lemann tem uma fortuna que lhe permitiria rasgar dinheiro, mas não pode beber água fervendo. Não sendo doido, recusou.
Fica a suspeita de que Henrique Meirelles também tenha sido convidado por Lula.
O HOMEM-CHAVE
Os mais experimentados procuradores da Operação Lava Jato dão a Alberto Youssef a medalha do mérito da colaboração. Sem ele, muita coisa não teria saído do lugar, pois seus depoimentos serviram também para ensinar o caminho das pedras aos investigadores.
Youssef está preso em regime fechado desde 2014 e deve ser solto no ano que vem.
MAISON CHARCOT
As emoções e incertezas instaladas no palácio da Alvorada, onde Dilma Rousseff vive seus últimos dias de poder, ressuscitaram o apelido de "Maison Charcot". Nos anos 70, militantes da esquerda deram esse nome a um casarão de Havana onde viviam 28 quadros da ALN.
O médico francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) é considerado o pai da psiquiatria moderna. Chamavam-no de "Napoleão das neuroses".
TESTE DE VONTADE
Já houve pelo menos um caso em que um petista de peso no Congresso pediu ao novo governo um cargo na administração federal.
Até certo ponto, é o puro fisiologismo. Daí em diante, comissários petistas e hierarcas começaram a conversar. Michel Temer teve o cuidado de mostrar que está pronto para conversar.
GAME OF THRONES
O anúncio de que o imperador japonês Akihito (82 anos) pensa em abdicar reabrirá a bolsa de apostas em torno da abdicação de Elizabeth da Inglaterra (90 anos).
Antes do Brexit, era possível acreditar que ela deixaria o palácio de Buckingham quando enviuvasse (o príncipe Philip completou 95 anos). Com a Inglaterra dividida, o jogo muda.
Enquanto no Japão todo mundo acha razoável a coroação do príncipe Naruhito, na casa de Windsor o caso é outro. Uma parte dos súditos não quer o príncipe Charles (67 anos) no trono e todos querem seu filho William, o Duque de Cambridge. Para piorar, menos gente quer Camila como rainha (nesse grupo esteve a própria Elizabeth). E o mundo todo quer a companheira Kate com o manto. Ela seria a primeira rainha com diploma universitário e ascendência operária.
Elizabeth já planejou seu funeral nos mínimos detalhes, da lista de convidados às flores e à trilha sonora. A data continua nas mãos do Padre Eterno, que só chamou a mãe dela aos 101 anos.
MORO NOS AUTOS
Depois de ter defendido o uso de prova ilícitas contra cidadãos acusados de crimes desde que a polícia ou o Ministério Público estejam agindo de "boa-fé", o juiz Sergio Moro deveria evitar palestras. Sua força, e sua função, estão no que diz nos autos.
Afinal, quem define boa-fé? Ele? Eduardo Cunha?
Em pelo menos uma ocasião, Moro tratou um advogado como se estivesse investido de mandato divino transmitido por Luís 14.
Madame Natasha concedeu sua primeira bolsa de estudos multilíngue para todos aqueles que usaram a palavra "favela" para designar o bairro de Cidade de Deus, berço de Rafaela Silva.
Cidade de Deus nunca foi uma favela. É o contrário. Ela foi construída em 1965, no auge da política de remoções. Era um dos símbolos do progresso da alvenaria, triunfando sobre os barracos e a miséria. Em 1969, misteriosas mãos higienistas tocaram fogo na favela da Praia do Pinto, à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, desabrigando 9.000 pessoas. Os favelados foram para Cidade de Deus e o terreno desocupado deu lugar a um conjunto de edifícios para a boa classe média, conhecido como Selva de Pedra. E assim o Leblon mudou de cara.
Cidade de Deus não recebeu obras de infraestrutura necessárias e aos poucos deslizou para o abandono pelo Estado. Já o Leblon...
A palavra favela tem um componente de anomalia, voluntarismo e exclusão. Favela é obra e moradia de pobres. Cidade de Deus foi um símbolo do planejamento estatal com suas promessas de inclusão social.
A joia da coroa da política de remoções que até hoje alimenta a demofobia das cidades brasileiras chamava-se Vila Kennedy, na região de Bangu, inaugurada em 1964, um ano antes do início das obras de Cidade de Deus. Era a menina dos olhos do governador Carlos Lacerda e do embaixador americano Lincoln Gordon, que despejou no projeto verbas da Aliança para o Progresso. Para lá foram moradores da favela do morro do Pasmado, por dentro do qual passa o primeiro túnel que leva a Copacabana. Tinha tudo para dar certo, mas o Estado sumiu e, quando Vila Kennedy comemorou seu décimo aniversário, foi chamada de "fracasso". No vigésimo, de "pesadelo". No trigésimo, esqueceram-na. A essa altura, com 150 mil moradores, ela só era notícia quando a tropa do Bope disputava o controle de algumas áreas com o Comando Vermelho. A Vila ganhou Unidade de Polícia Pacificadora e, entre 2013 e 2015, as denúncias de abuso de autoridade de policiais subiram de 4% para 30% na contabilidade do Disque-Denúncia.
Houve época em que diversos bairros do Rio degradaram-se. Ninguém chamou a Lapa da primeira metade do século passado de favela. Se Cidade de Deus é uma favela, a palavra serviria para designar moradores e não moradias. Nesse tipo de classificação, favela é o lugar onde vive gente negra e pobre, como Rafaela Silva, a moça da medalha de ouro.
QUEREM CRIAR A BOLSA CAIXA DOIS
A repórter Maria Cristina Fernandes mostrou que circula em Brasília a ideia de uma anistia para partidos e políticos beneficiados em suas campanhas por doações ilegais vindas de caixas dois de empresas.
Um advogado que não gosta da ideia e conhece o mundo das doações ilegais sugere: "Tudo bem, desde que a anistia dependa da confissão do partido e/ou do cidadão. Feita a confissão, o interessado deverá pagar uma multa. Para começar a conversa poderíamos fixá-la em 10% do valor recebido. Achou pouco? 20%. Sem a iniciativa da confissão e sem multa, não será anistia, mas passe livre".
A história do Brasil foi iluminada por mais de uma dezena de anistias e nenhuma equivaleu a um passe livre. A maior delas foi assinada pelo presidente João Figueiredo em 1979, beneficiando cerca de 5.000 pessoas. Todos os anistiados haviam sofrido alguma forma de violência ou constrangimento. A anistia que se articula equivaleria a uma Bolsa Caixa Dois, destinada a beneficiar os beneficiados.
DELÍRIO DE LULA
Em março, quando cozinhava sua nomeação para a chefia da Casa Civil de Dilma, Lula investiu-se da condição de regente da República e começou a formar seu ministério.
Apostou alto e convidou o empresário Jorge Paulo Lemann para uma pasta da área econômica. Como o bilionário estava na China, a conversa foi por telefone. Lemann tem uma fortuna que lhe permitiria rasgar dinheiro, mas não pode beber água fervendo. Não sendo doido, recusou.
Fica a suspeita de que Henrique Meirelles também tenha sido convidado por Lula.
O HOMEM-CHAVE
Os mais experimentados procuradores da Operação Lava Jato dão a Alberto Youssef a medalha do mérito da colaboração. Sem ele, muita coisa não teria saído do lugar, pois seus depoimentos serviram também para ensinar o caminho das pedras aos investigadores.
Youssef está preso em regime fechado desde 2014 e deve ser solto no ano que vem.
MAISON CHARCOT
As emoções e incertezas instaladas no palácio da Alvorada, onde Dilma Rousseff vive seus últimos dias de poder, ressuscitaram o apelido de "Maison Charcot". Nos anos 70, militantes da esquerda deram esse nome a um casarão de Havana onde viviam 28 quadros da ALN.
O médico francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) é considerado o pai da psiquiatria moderna. Chamavam-no de "Napoleão das neuroses".
TESTE DE VONTADE
Já houve pelo menos um caso em que um petista de peso no Congresso pediu ao novo governo um cargo na administração federal.
Até certo ponto, é o puro fisiologismo. Daí em diante, comissários petistas e hierarcas começaram a conversar. Michel Temer teve o cuidado de mostrar que está pronto para conversar.
GAME OF THRONES
O anúncio de que o imperador japonês Akihito (82 anos) pensa em abdicar reabrirá a bolsa de apostas em torno da abdicação de Elizabeth da Inglaterra (90 anos).
Antes do Brexit, era possível acreditar que ela deixaria o palácio de Buckingham quando enviuvasse (o príncipe Philip completou 95 anos). Com a Inglaterra dividida, o jogo muda.
Enquanto no Japão todo mundo acha razoável a coroação do príncipe Naruhito, na casa de Windsor o caso é outro. Uma parte dos súditos não quer o príncipe Charles (67 anos) no trono e todos querem seu filho William, o Duque de Cambridge. Para piorar, menos gente quer Camila como rainha (nesse grupo esteve a própria Elizabeth). E o mundo todo quer a companheira Kate com o manto. Ela seria a primeira rainha com diploma universitário e ascendência operária.
Elizabeth já planejou seu funeral nos mínimos detalhes, da lista de convidados às flores e à trilha sonora. A data continua nas mãos do Padre Eterno, que só chamou a mãe dela aos 101 anos.
MORO NOS AUTOS
Depois de ter defendido o uso de prova ilícitas contra cidadãos acusados de crimes desde que a polícia ou o Ministério Público estejam agindo de "boa-fé", o juiz Sergio Moro deveria evitar palestras. Sua força, e sua função, estão no que diz nos autos.
Afinal, quem define boa-fé? Ele? Eduardo Cunha?
Em pelo menos uma ocasião, Moro tratou um advogado como se estivesse investido de mandato divino transmitido por Luís 14.
Perigo de retrocesso - MERVAL PEREIRA
O Globo - 14/08
Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) está causando polêmica, pois altera um ponto central da Lei da Ficha Limpa, liberando a maioria dos prefeitos que são considerados inelegíveis ao terem suas contas rejeitadas pelos tribunais de contas municipais.
Oplenário do STF decidiu que somente a votação da Câmara Municipal pode confirmar a inelegibilidade do prefeito e, em caso de omissão dos vereadores, o parecer emitido pelo Tribunal de Contas não gera a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar 64/1990, conhecida como Lei da Ficha Limpa.
Essa decisão é a parte mais polêmica, pois um prefeito que teve as contas rejeitadas por um tribunal pode permanecer impune para sempre, desde que consiga que os vereadores não se reúnam para analisar suas contas. Para se ter uma ideia, o Congresso Nacional tem contas de governos anteriores que ainda não foram analisadas.
O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas vê apenas um problema na decisão do Supremo, que de resto considera em consonância com a modelagem constitucional no plano federal: quando se trata da ordenação de despesas por parte dos prefeitos e dos governadores:
“O TCU ‘julga’ as contas de todos os gestores (ministros, dirigentes de estatais e autarquias etc) de recursos federais, exceto o presidente da República (que é julgado pelo Congresso com base no parecer prévio do TCU). Por simetria, não me parece desarrazoado que os TCEs/ TCMs também tenham competência para julgar todos os gestores e, quanto ao chefe do Executivo, disponham apenas de atribuição opinativa (exatamente como o TCU)”, diz ele.
Na verdade, tecnicamente os TCEs/TCMs têm até mais poder que o TCU, pois para derrubar o parecer é exigido quórum de 2/3. No plano federal não existe esse quórum qualificadíssimo, reforça Bruno Dantas. Há, porém, um aspecto importante a ser considerado, ressalta o ministro do TCU: o presidente da República não ordena despesas. O que o Congresso julga (com auxílio do parecer do TCU) são as contas da gestão. No caso dos prefeitos, além das contas de gestão, muitas vezes eles também ordenam despesas diretamente.
“Creio que nesses casos (e somente neles), os prefeitos se igualam aos demais gestores e deveriam se sujeitar ao julgamento dos tribunais de contas. Como, no julgamento desta semana, o STF não fez essa distinção, a equação não fecha, e criou-se uma incoerência relevante: os prefeitos, quando ordenam despesas com recursos federais, são julgados diretamente pelo TCU, mas o mesmo não acontece com os TCEs quando são ordenadas despesas com recursos estaduais ou municipais”.
Também o procurador Júlio Marcelo Oliveira considerou um retrocesso a decisão do STF: “Ao negar aos tribunais de contas a competência para julgar as contas de prefeitos que atuem como ordenadores de despesa, o STF negou vigência ao artigo 71, inciso II, da Constituição, e esvaziou em 80% a aplicação da Lei da Ficha Limpa, alimentando a impunidade que assola nosso país. Não é razoável o STF esvaziar a Lei da Ficha Limpa por causa das deficiências dos tribunais de contas, que ele mesmo não ajuda a combater”.
O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral pretende apresentar ao STF um embargo de declaração para tentar reverter a decisão de limitar o alcance dos pareceres dos tribunais de contas municipais. O Supremo ainda tem condições de esclarecer sua decisão, alterando o alcance da medida para compatibilizá-la à vigência da Lei de Ficha Limpa.
Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) está causando polêmica, pois altera um ponto central da Lei da Ficha Limpa, liberando a maioria dos prefeitos que são considerados inelegíveis ao terem suas contas rejeitadas pelos tribunais de contas municipais.
Oplenário do STF decidiu que somente a votação da Câmara Municipal pode confirmar a inelegibilidade do prefeito e, em caso de omissão dos vereadores, o parecer emitido pelo Tribunal de Contas não gera a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar 64/1990, conhecida como Lei da Ficha Limpa.
Essa decisão é a parte mais polêmica, pois um prefeito que teve as contas rejeitadas por um tribunal pode permanecer impune para sempre, desde que consiga que os vereadores não se reúnam para analisar suas contas. Para se ter uma ideia, o Congresso Nacional tem contas de governos anteriores que ainda não foram analisadas.
O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas vê apenas um problema na decisão do Supremo, que de resto considera em consonância com a modelagem constitucional no plano federal: quando se trata da ordenação de despesas por parte dos prefeitos e dos governadores:
“O TCU ‘julga’ as contas de todos os gestores (ministros, dirigentes de estatais e autarquias etc) de recursos federais, exceto o presidente da República (que é julgado pelo Congresso com base no parecer prévio do TCU). Por simetria, não me parece desarrazoado que os TCEs/ TCMs também tenham competência para julgar todos os gestores e, quanto ao chefe do Executivo, disponham apenas de atribuição opinativa (exatamente como o TCU)”, diz ele.
Na verdade, tecnicamente os TCEs/TCMs têm até mais poder que o TCU, pois para derrubar o parecer é exigido quórum de 2/3. No plano federal não existe esse quórum qualificadíssimo, reforça Bruno Dantas. Há, porém, um aspecto importante a ser considerado, ressalta o ministro do TCU: o presidente da República não ordena despesas. O que o Congresso julga (com auxílio do parecer do TCU) são as contas da gestão. No caso dos prefeitos, além das contas de gestão, muitas vezes eles também ordenam despesas diretamente.
“Creio que nesses casos (e somente neles), os prefeitos se igualam aos demais gestores e deveriam se sujeitar ao julgamento dos tribunais de contas. Como, no julgamento desta semana, o STF não fez essa distinção, a equação não fecha, e criou-se uma incoerência relevante: os prefeitos, quando ordenam despesas com recursos federais, são julgados diretamente pelo TCU, mas o mesmo não acontece com os TCEs quando são ordenadas despesas com recursos estaduais ou municipais”.
Também o procurador Júlio Marcelo Oliveira considerou um retrocesso a decisão do STF: “Ao negar aos tribunais de contas a competência para julgar as contas de prefeitos que atuem como ordenadores de despesa, o STF negou vigência ao artigo 71, inciso II, da Constituição, e esvaziou em 80% a aplicação da Lei da Ficha Limpa, alimentando a impunidade que assola nosso país. Não é razoável o STF esvaziar a Lei da Ficha Limpa por causa das deficiências dos tribunais de contas, que ele mesmo não ajuda a combater”.
O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral pretende apresentar ao STF um embargo de declaração para tentar reverter a decisão de limitar o alcance dos pareceres dos tribunais de contas municipais. O Supremo ainda tem condições de esclarecer sua decisão, alterando o alcance da medida para compatibilizá-la à vigência da Lei de Ficha Limpa.
Direito de greve de servidor precisa ser regulamentado - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 14/08
É necessária uma regulamentação que dê espaço a reivindicações justas mas impeça que a conta vá apenas para a população
A notícia de que os professores da rede estadual decidiram tirar férias este mês e só repor a partir de setembro as aulas perdidas durante quase cinco meses de paralisação aponta para a necessidade urgente de regulamentação do direito de greve dos servidores públicos, garantido pela Constituição de 1988, mas ainda objeto de interpretações diversas por parte da Justiça. A decisão — tomada unilateralmente pelo Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação — causa prejuízos irrecuperáveis aos alunos.
A greve, por si só, já traz enorme dano aos estudantes, visto que a aprendizagem é processo gradativo e permanente, pressupondo assim um calendário. Se a reposição das aulas, quando há, é incerta, o problema só se agrava.
Não menos dramática é a situação de pacientes da rede pública de saúde em paralisações que — ainda que não fechem as emergências — exigem a remarcação de exames e consultas acertadas há meses, o que pode significar uma sentença de morte. Ou ainda de segurados, em caso de greve de funcionários da Previdência. A paralisação dos médicos peritos, encerradas em janeiro deste ano, deixou 1,3 milhão de trabalhadores aguardando a perícia do INSS e o recebimento do benefício. O tempo médio de espera pelo agendamento subiu de 20 para 88 dias.
Diante de tais transtornos, já passou da hora de haver uma regulamentação que, ao mesmo tempo que dê espaço a reivindicações justas de funcionários públicos, impeça que a conta vá apenas para uma população que já é punida por serviços de má qualidade e uma das maiores cargas tributárias do mundo — a mais elevada entre os países emergentes.
Em outubro de 2015, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado aprovou o projeto que regulamenta o direito de greve de servidores. Atualmente, o texto está na Comissão de Constituição e Justiça, aguardando inclusão na pauta de votação.
O texto determina, entre outras coisas, que os dias parados podem ser descontados, e que durante a greve as unidades administrativas devem continuar prestando serviços com, no mínimo, 30% dos funcionários. Pode ser aperfeiçoado para equilibrar de forma justa direitos de servidores e da população. E, certamente, haverá controvérsias quando de sua discussão em plenário, como é parte do jogo democrático. Mas o que não se pode admitir é que algo que afeta tão drasticamente a população continue sujeito à indefinição, por pressões corporativistas.
A notícia de que os professores da rede estadual decidiram tirar férias este mês e só repor a partir de setembro as aulas perdidas durante quase cinco meses de paralisação aponta para a necessidade urgente de regulamentação do direito de greve dos servidores públicos, garantido pela Constituição de 1988, mas ainda objeto de interpretações diversas por parte da Justiça. A decisão — tomada unilateralmente pelo Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação — causa prejuízos irrecuperáveis aos alunos.
A greve, por si só, já traz enorme dano aos estudantes, visto que a aprendizagem é processo gradativo e permanente, pressupondo assim um calendário. Se a reposição das aulas, quando há, é incerta, o problema só se agrava.
Não menos dramática é a situação de pacientes da rede pública de saúde em paralisações que — ainda que não fechem as emergências — exigem a remarcação de exames e consultas acertadas há meses, o que pode significar uma sentença de morte. Ou ainda de segurados, em caso de greve de funcionários da Previdência. A paralisação dos médicos peritos, encerradas em janeiro deste ano, deixou 1,3 milhão de trabalhadores aguardando a perícia do INSS e o recebimento do benefício. O tempo médio de espera pelo agendamento subiu de 20 para 88 dias.
Diante de tais transtornos, já passou da hora de haver uma regulamentação que, ao mesmo tempo que dê espaço a reivindicações justas de funcionários públicos, impeça que a conta vá apenas para uma população que já é punida por serviços de má qualidade e uma das maiores cargas tributárias do mundo — a mais elevada entre os países emergentes.
Em outubro de 2015, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado aprovou o projeto que regulamenta o direito de greve de servidores. Atualmente, o texto está na Comissão de Constituição e Justiça, aguardando inclusão na pauta de votação.
O texto determina, entre outras coisas, que os dias parados podem ser descontados, e que durante a greve as unidades administrativas devem continuar prestando serviços com, no mínimo, 30% dos funcionários. Pode ser aperfeiçoado para equilibrar de forma justa direitos de servidores e da população. E, certamente, haverá controvérsias quando de sua discussão em plenário, como é parte do jogo democrático. Mas o que não se pode admitir é que algo que afeta tão drasticamente a população continue sujeito à indefinição, por pressões corporativistas.