domingo, agosto 14, 2016

Madame Natasha em Cidade de Deus - ELIO GASPARI

O GLOBO - 14/08

Madame Natasha concedeu sua primeira bolsa de estudos multilíngue para todos aqueles que usaram a palavra "favela" para designar o bairro de Cidade de Deus, berço de Rafaela Silva.

Cidade de Deus nunca foi uma favela. É o contrário. Ela foi construída em 1965, no auge da política de remoções. Era um dos símbolos do progresso da alvenaria, triunfando sobre os barracos e a miséria. Em 1969, misteriosas mãos higienistas tocaram fogo na favela da Praia do Pinto, à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, desabrigando 9.000 pessoas. Os favelados foram para Cidade de Deus e o terreno desocupado deu lugar a um conjunto de edifícios para a boa classe média, conhecido como Selva de Pedra. E assim o Leblon mudou de cara.

Cidade de Deus não recebeu obras de infraestrutura necessárias e aos poucos deslizou para o abandono pelo Estado. Já o Leblon...

A palavra favela tem um componente de anomalia, voluntarismo e exclusão. Favela é obra e moradia de pobres. Cidade de Deus foi um símbolo do planejamento estatal com suas promessas de inclusão social.

A joia da coroa da política de remoções que até hoje alimenta a demofobia das cidades brasileiras chamava-se Vila Kennedy, na região de Bangu, inaugurada em 1964, um ano antes do início das obras de Cidade de Deus. Era a menina dos olhos do governador Carlos Lacerda e do embaixador americano Lincoln Gordon, que despejou no projeto verbas da Aliança para o Progresso. Para lá foram moradores da favela do morro do Pasmado, por dentro do qual passa o primeiro túnel que leva a Copacabana. Tinha tudo para dar certo, mas o Estado sumiu e, quando Vila Kennedy comemorou seu décimo aniversário, foi chamada de "fracasso". No vigésimo, de "pesadelo". No trigésimo, esqueceram-na. A essa altura, com 150 mil moradores, ela só era notícia quando a tropa do Bope disputava o controle de algumas áreas com o Comando Vermelho. A Vila ganhou Unidade de Polícia Pacificadora e, entre 2013 e 2015, as denúncias de abuso de autoridade de policiais subiram de 4% para 30% na contabilidade do Disque-Denúncia.

Houve época em que diversos bairros do Rio degradaram-se. Ninguém chamou a Lapa da primeira metade do século passado de favela. Se Cidade de Deus é uma favela, a palavra serviria para designar moradores e não moradias. Nesse tipo de classificação, favela é o lugar onde vive gente negra e pobre, como Rafaela Silva, a moça da medalha de ouro.


QUEREM CRIAR A BOLSA CAIXA DOIS

A repórter Maria Cristina Fernandes mostrou que circula em Brasília a ideia de uma anistia para partidos e políticos beneficiados em suas campanhas por doações ilegais vindas de caixas dois de empresas.

Um advogado que não gosta da ideia e conhece o mundo das doações ilegais sugere: "Tudo bem, desde que a anistia dependa da confissão do partido e/ou do cidadão. Feita a confissão, o interessado deverá pagar uma multa. Para começar a conversa poderíamos fixá-la em 10% do valor recebido. Achou pouco? 20%. Sem a iniciativa da confissão e sem multa, não será anistia, mas passe livre".

A história do Brasil foi iluminada por mais de uma dezena de anistias e nenhuma equivaleu a um passe livre. A maior delas foi assinada pelo presidente João Figueiredo em 1979, beneficiando cerca de 5.000 pessoas. Todos os anistiados haviam sofrido alguma forma de violência ou constrangimento. A anistia que se articula equivaleria a uma Bolsa Caixa Dois, destinada a beneficiar os beneficiados.

DELÍRIO DE LULA

Em março, quando cozinhava sua nomeação para a chefia da Casa Civil de Dilma, Lula investiu-se da condição de regente da República e começou a formar seu ministério.

Apostou alto e convidou o empresário Jorge Paulo Lemann para uma pasta da área econômica. Como o bilionário estava na China, a conversa foi por telefone. Lemann tem uma fortuna que lhe permitiria rasgar dinheiro, mas não pode beber água fervendo. Não sendo doido, recusou.

Fica a suspeita de que Henrique Meirelles também tenha sido convidado por Lula.

O HOMEM-CHAVE

Os mais experimentados procuradores da Operação Lava Jato dão a Alberto Youssef a medalha do mérito da colaboração. Sem ele, muita coisa não teria saído do lugar, pois seus depoimentos serviram também para ensinar o caminho das pedras aos investigadores.

Youssef está preso em regime fechado desde 2014 e deve ser solto no ano que vem.

MAISON CHARCOT

As emoções e incertezas instaladas no palácio da Alvorada, onde Dilma Rousseff vive seus últimos dias de poder, ressuscitaram o apelido de "Maison Charcot". Nos anos 70, militantes da esquerda deram esse nome a um casarão de Havana onde viviam 28 quadros da ALN.

O médico francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) é considerado o pai da psiquiatria moderna. Chamavam-no de "Napoleão das neuroses".

TESTE DE VONTADE

Já houve pelo menos um caso em que um petista de peso no Congresso pediu ao novo governo um cargo na administração federal.

Até certo ponto, é o puro fisiologismo. Daí em diante, comissários petistas e hierarcas começaram a conversar. Michel Temer teve o cuidado de mostrar que está pronto para conversar.

GAME OF THRONES

O anúncio de que o imperador japonês Akihito (82 anos) pensa em abdicar reabrirá a bolsa de apostas em torno da abdicação de Elizabeth da Inglaterra (90 anos).

Antes do Brexit, era possível acreditar que ela deixaria o palácio de Buckingham quando enviuvasse (o príncipe Philip completou 95 anos). Com a Inglaterra dividida, o jogo muda.

Enquanto no Japão todo mundo acha razoável a coroação do príncipe Naruhito, na casa de Windsor o caso é outro. Uma parte dos súditos não quer o príncipe Charles (67 anos) no trono e todos querem seu filho William, o Duque de Cambridge. Para piorar, menos gente quer Camila como rainha (nesse grupo esteve a própria Elizabeth). E o mundo todo quer a companheira Kate com o manto. Ela seria a primeira rainha com diploma universitário e ascendência operária.

Elizabeth já planejou seu funeral nos mínimos detalhes, da lista de convidados às flores e à trilha sonora. A data continua nas mãos do Padre Eterno, que só chamou a mãe dela aos 101 anos.

MORO NOS AUTOS

Depois de ter defendido o uso de prova ilícitas contra cidadãos acusados de crimes desde que a polícia ou o Ministério Público estejam agindo de "boa-fé", o juiz Sergio Moro deveria evitar palestras. Sua força, e sua função, estão no que diz nos autos.

Afinal, quem define boa-fé? Ele? Eduardo Cunha?

Em pelo menos uma ocasião, Moro tratou um advogado como se estivesse investido de mandato divino transmitido por Luís 14.

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