Quando estava na minha primeira faculdade, passamos por uma longa greve de estudantes. No início, ia às assembleias discutir a razão de achar aquela greve inútil. Entre elas, a mais evidente era: estudantes de uma universidade pública (ou não) em greve nada importam para o dia a dia da cidade, por isso podem ficar 30 anos em greve. O único dano é aos colegas que querem avançar na vida.
Mas o que mais chamava minha atenção era como alguns colegas em bloco esvaziavam a assembleia até que só eles estivessem nela e votassem pela continuidade da greve. Golpe? Isso sim é golpe.
Entretanto, outra coisa também me chamava atenção: como gritavam frases feitas como se fossem um coral furioso. Hoje sabemos o que aquilo era: o nascimento dessa nova moda e praga chamada "coletivo". Não me refiro a transporte coletivo, como quando se diz "aí vem o coletivo". Refiro-me a um conjunto de estudantes (mas pode também ser de artistas ou similares) que se autodenominam "coletivo".
A ideia é que formam um coletivo no qual todos são iguais. Pensam em coletivo, falam em coletivo, agem em coletivo, assinam em coletivo. Recentemente, um professor de uma importante universidade brasileira teve dificuldade de se comunicar com um "aluno" (vai saber o que ele ou ela era de fato) porque ele ou ela se recusava a se identificar na comunicação escrita, já que ele –ou ela– não era uma "pessoa", mas um coletivo.
Imagino que, em cem anos, essa modinha será incluída no conjunto de psicopatologias da virada do século 20 para o 21, época que será vista pela sociologia do futuro como uma era de ressentidos e mimados: a mania por coletivos será classificada como ódio patológico à individualidade, suas responsabilidades e contradições.
Freud classificaria como um estágio da pulsão de morte, seguramente. Para o criador da psicanálise, a pulsão busca sempre uma posição regressiva. No caso da pulsão de morte, ela busca o "repouso na pedra". Na matéria inorgânica.
No caso dos coletivos, ela busca o repouso na destruição do "eu". Na dissolução do "eu" na manada.
Elias Canetti, intelectual judeu búlgaro que estudou as multidões (além do próprio Freud, claro), já apontava a dissolução do "eu" na manada, na "mancha" disforme da multidão. Há um prazer mórbido em se sentir parte de um coletivo: a morte do sujeito moderno, esse atormentado.
O fenômeno dos coletivos é um traço regressivo no embate com a solidão do homem moderno. É uma tentativa, canhestra e primitiva, de "voltar ao útero materno" para ver se o ruído insuportável da realidade disforme do mundo se dissolve porque grito palavras de ordem ou faço coisas pelas quais eu mesmo não sou responsabilizado, mas o "coletivo", essa "pessoa" indiferenciada que não existe.
A indiferenciação num todo sempre foi uma forma de gozo regressivo, de algum modo. As políticas utópicas socialistas históricas carregaram essa marca nelas. Além do mesmo ódio pelo indivíduo, que tentaram matar a todo custo. No fenômeno místico, visto pelos olhos do "sentimento oceânico", como cita Freud, há também um gozo, que pode desaguar em terroristas islâmicos ou dervixes sufis maravilhosos.
O filósofo inglês do século 20 Michael Oakeshott escreveu sobre como ser indivíduo ("projeto" burguês que deu errado) é quase impossível para a maioria das pessoas, justamente pela sua solidão intrínseca e pelas suas contradições.
Oakeshott descreveu inclusive o surgimento de movimentos "anti-indivíduos", que seriam marcados por totens. Esses totens poderiam ser pessoas carismáticas ou ideias que reuniriam massas de pessoas indiferenciadas e furiosas contra os indivíduos vistos por elas como egoístas, sujos, metidos e arrogantes, por serem "contra o coletivo". Acertou em cheio.
Fosse eu escrever um argumento ou roteiro para um curta, escreveria sobre como abelhas evoluíram no seu amor à colmeia, chegando aos coletivos de hoje em dia. E na fúria que caracteriza as abelhas quando você se aproxima da colmeia e da sua rainha, essas abelhas evoluídas odiariam o sapiens, e suas contradições sem fim.