quarta-feira, setembro 14, 2016

O exemplo que se espera do Supremo - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO 14/09

Uma característica que chama a atenção no estilo da nova presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, fartamente revelado ao longo dos mais de 10 anos em que ela integra aquela Corte, é a capacidade de tratar os temas mais ásperos e controvertidos em tom sempre muito firme, mas ameno, pontuado por frequentes citações literárias que predispõem a reflexões serenas sobre questões essenciais da vida nacional. Foi exatamente o que fez, em seu discurso de posse, a segunda mulher a assumir a presidência do STF, ao destacar a responsabilidade de sua nova investidura – a de “guardar e fazer garantir a satisfação do sentimento de Justiça de cada um e de todos os brasileiros”, uma vez que “há de se reconhecer que o cidadão não há de estar satisfeito, hoje, com o Poder Judiciário”.

De fato, em tempos em que são cassados os mandatos de uma presidente da República e de um presidente da Câmara dos Deputados, contra o pano de fundo de uma devassa sem precedentes nas entranhas de um sistema político-partidário e de gestão da coisa pública que elevou a corrupção à condição de método, não se pode imaginar que o brasileiro esteja minimamente satisfeito com a realidade que o cerca. E o Poder Judiciário não pode se isentar de responsabilidade nessa crise, como admitiu em sua fala e ministra Cármen Lucia: “Homens e mulheres estão nas praças pelos seus direitos e pelos seus interesses. Quer-se um Brasil mais justo e é imprescindível que o construamos”.

A corrupção institucionalizada que mais de uma década de lulopetismo deixa de herança não é o único, mas talvez seja o principal fator do impasse político, do desastre econômico, da angústia e do sofrimento da população e, sobretudo, da dificuldade que o cidadão brasileiro tem hoje para compreender e se posicionar sobre valores que dão lastro a uma sociedade livre, próspera e justa.

Nesse contexto, tem importância preponderante o Poder Judiciário. Ao dar consequência, ao longo dos últimos dois anos e meio, à ação da Lava Jato e operações congêneres, colocando atrás das grades articuladores, operadores e empresários, a Justiça responde ao anseio nacional pelo combate à corrupção. Mas não escapa a uma observação mais atenta o fato de que, salvo as exceções que confirmam a regra, um amplo contingente de gordas raposas da política brasileira sob investigação – senadores, deputados, ex-presidentes e ministros de Estado – consegue permanecer distante das barras dos tribunais.

De acordo com levantamento feito pela revistaCongresso em Foco, em meados de 2013 havia 542 inquéritos e ações contra 224 parlamentares parados no STF. Essa pesquisa carece de atualização, mas nada leva a crer que três anos depois esses números sejam muito diferentes. Provavelmente, aumentaram, já que a Lava Jato começou a operar nos primeiros meses de 2014.

O STF tem tomado algumas decisões importantes e até ousadas no combate à corrupção, como foi o caso da decisão unânime que afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara e do mandato de deputado porque estava atrapalhando as investigações de que era alvo. E os próprios policiais, procuradores e magistrados de primeira instância explicam que as investigações que envolvem pessoas que dispõem de foro privilegiado são naturalmente mais demoradas, porque exigem um conjunto probatório mais complexo. Pode ser. Mas a investigação e o julgamento de figurões da política, pela gravidade da ofensa que cometem contra a sociedade que deveriam representar, precisam ter um caráter de exemplaridade do qual a urgência possível faz parte. Não podem ser relegados à vala comum dos processos acumulados.

Esse exemplo o aparelho judiciário brasileiro, infelizmente, não tem dado. Não é uma deficiência que possa ser debitada ao quadro geral da morosidade da Justiça no País. Casos como esses, pela sua condição simbólica, devem ser objeto de absoluta prioridade, como sugeriu o decano Celso de Mello, no veemente discurso contra a corrupção feito ao apresentar a presidente Cármen Lúcia: é preciso combater a “delinquência governamental”. E, no Estado de Direito, só o Supremo pode fazê-lo.


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