ZERO HORA - 25/05
“Te desejo toda a felicidade que puder aguentar”. Foi com essa frase que uma pessoa que gosta de mim encerrou seu e-mail, e fiquei petrificada diante do computador, um pouco pela explosão de gentileza de alguém que nem conheço, e outro tanto pela contundência que me fez pensar: quanta felicidade eu aguento?
Desde que lancei um livro com a palavra “feliz” no título (a coletânea de crônicas Feliz por Nada, de 2011) que respondo até hoje a uma infinidade de entrevistas com esse mote: o que é, afinal, ser feliz?
Bom, quando estou triste, estou feliz. Não sei se isso responde.
Felicidade não tem a ver com oba-oba, riso frouxo, vida ganha. Isso é alegria, que também é ótima, mas que não tem a profundidade de uma felicidade genuína que engloba não só a alegria como a tristeza também. Felicidade é ter consciência de que estar apto para o sentimento é um privilégio, e que quando estou melancólica, nostálgica, introvertida, decepcionada, isso também é uma conexão com o mundo, isso também traz evolução, aprendizado.
Feliz de quem cresce. Mesmo aos trancos.
Infelicidade, ao contrário, é inércia. A pessoa pode passar a vida inteira sem ter sofrido nada de relevante, nenhuma dor aguda, mas atravessa os dias sem entusiasmo, anestesiada pelo lugar comum, paralisada por seu próprio olhar crítico, que julga aos outros sem nenhuma condescendência. Para ela, todos são fracos, desajustados ou incompetentes, e não sobra afetividade nem para si mesma: se está sozinha ou acompanhada, tanto faz. Se lá fora o sol brilha ou se chove, tanto faz. Se há a expectativa de uma festa ou a iminência de uma indiada, tanto faz.
Essa indiferença em relação ao que os dias oferecem é uma morte que respira, mas ainda assim, uma morte.
Eu reajo, eu me movo, eu procuro, eu arrisco – essa perseguição a algo que nem sei se existe é a uma homenagem que presto à minha biografia. Nada me amortece, tudo me liga, tanto aquilo que dá certo como também o que dá errado. Felicidade é uma palavrinha enjoada, que remete só ao bom, mas dou a ela outro significado: é uma inclinação abrangente e corajosa para a vida, que nunca é só boa.
Já a infelicidade é uma blindagem contra o encantamento, é negar-se a extrair das miudezas o mesmo feitiço que as grandezas proporcionam.
Eu celebro o suco de laranja matinal, o telefonema de uma amiga, a saudade que eu sinto de algumas pessoas, o sol caindo no horizonte, a luz que entra pela janela do quarto ao amanhecer, a música que escuto solitária e que me remete a uma inocência que já tive – e pelo visto ainda tenho. Celebro o já vivido e o que está por vir, as risadas compartilhadas e o choro silencioso, e todas as perguntas que um dia talvez sejam respondidas.
Como esta: quanta felicidade eu aguento? Não sei. Que venha. Recusá-la é que não vou.
domingo, maio 25, 2014
Ser ou não ser - JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO - 25/05
Não parece haver, nem de longe, o entusiasmo anterior. Ninguém discute a escalação do time, ninguém pintou rua ou fachada
Acho que já tive a oportunidade de referir-me aqui às muitas glórias futebolísticas de Itaparica. Poderia estender tais glórias a diversos outros esportes, mas estes estão sujeitos a controvérsias, como a protagonizada por meu saudoso amigo Luiz Cuiuba, já lá se vai algum tempo. Em acalorada discussão no Largo da Quitanda, ele sustentou que as Olimpíadas eram uma jogada ardilosa para subverter nossos valores mais caros e, principalmente, trocar nossas lindas mulheres pelos bagulhos dos gringos. Baseado na conformação física de algumas atletas estrangeiras que vira na televisão, notadamente as campeãs de lançamento ou levantamento de pesos, ele não conseguia compreender como aquelas jamantas descomunais podiam ser o ideal olímpico. Claro que era para ludibriar a gente. Queriam convencer-nos a nos livrar de nossas mulheres, afamadas em todo o mundo pela sua excelsa formosura, e, em troca, recebermos ideais olímpicos, Deus que nos protegesse daquelas baleias parrudas, opinião esta acatada pela grande maioria dos presentes.
Portanto, para não entrar em terreno muito polêmico, fico no futebol, suficiente para render diversos volumes de histórias. Difícil é saber por onde começar. Nasceu em Itaparica, por exemplo, Chupeta, o maior jogador de futebol que os céus do Brasil jamais cobriram e ainda há testemunhas que não me deixam mentir. Foi com um time itaparicano que ocorreu um evento singular, já lembrado aqui, mas merecedor de nova menção. Num jogo, se não me engano, contra uma agremiação de Maragogipe, Vavá Paparrão fraturou a perna em dois lugares, mas só notou depois que o jogo acabou e o sangue esfriou. Finado Nascimento, respeitado no futebol e na clarineta, era o juiz de maior autoridade no Recôncavo e grande disciplinador, chegando a aplicar cascudos em certos atletas de conduta particularmente reprovável.
Em matéria tática, houve muitas inovações na ilha, que não foram à frente por uma série de circunstâncias. Assim ocorreu com o esquema bolado pelo técnico e cartola Júlio Perrengue, o injustiçado 10-10, que nunca foi adotado por ninguém, mas devia ter tido uma oportunidade. Júlio me explicou uma vez que o esquema dele consistia em fazer os dez jogadores de campo saírem de bolo para cima do adversário, arreganhando os dentes e dando gritos de guerra, assim infundindo terror nas hostes opositoras. Menção se faça, outrossim, a avanços notáveis que, por falta de marketing, se perderam, entre eles o jogo eólico, que consistia em usar os ventos do dia em proveito do time. Antigamente, isso era feito com a ajuda de um mestre de saveiros conhecedor íntimo dos ventos e das virações, mas hoje deve ser programável para computadores. Por exemplo, o jogador sabe que, naquele instante, o vento forte tal ou qual vai soprar e aí cobra o escanteio conforme o dito vento, é uma coisa altamente científica, que a ilha já praticava em priscas eras.
Nas Copas, como em todos os eventos que envolvem a nacionalidade, nossa participação nunca faltou. A de 1950 foi trágica, com gente passando mal, revolta ou até rompimento com os santos e outros eventos traumáticos, até hoje recordados pelos mais antigos. A de 1954 não valeu, por causa de Mr. Ellis, um juiz inglês, cujo nome nunca esqueci, vastamente denunciado como ladrão pelos narradores e comentaristas e responsável claro pelos quatro a dois que a Hungria nos aplicou. Houve pancadaria no estádio, durante e depois do jogo, e vários conterrâneos se ofereceram para combater na guerra que viria, contra a Inglaterra, a Hungria, as duas juntas ou quem lá fosse, pois que nunca corremos de guerra.
Na nossa primeira Copa, em 1958, lançamos aos ares a campanha Seca Lidirrólmi para a final. Lidirrólmi, na pronúncia local, era Liedholm, artilheiro da Suécia que fez o primeiro gol do jogo contra o Brasil. O brado “seca Lidirrólmi!” prorrompeu do Jardim do Forte e rasgou as nuvens por sobre todo o Recôncavo. Jamais alguém havia sido secado daquela forma tão unânime e simultânea. Vozes despeitadas podem negar, mas o fato é que Lidirrólmi não fez mais gol nenhum, e, naquele dia inesquecível, como sabemos, o time dele perdeu de cinco a dois.
Desta feita, contudo, não parece haver, nem de longe, o entusiasmo anterior. Ninguém discute a escalação do time, ninguém pintou rua ou fachada, ninguém comprou bandeira nova para pendurar em cima da varanda. Que estaria acontecendo? O patriotismo que parecia ser parte indissociável do DNA itaparicano foi atacado por algum vírus destrutivo? Graves questões, acompanhadas do pressentimento de que o mundo vai acabar, ou qualquer coisa assim. E mais lenha foi lançada à fogueira depois do pronunciamento de Zecamunista. O festejado líder subversivo voltou, como sempre vitorioso, de um concorrido torneio de pôquer em Ipiaú e, ao chegar ao Bar de Espanha e ver que se falava sobre a Copa, começou um imediato discurso em que afirmou que era dever de todo patriota brasileiro ser contra a Copa.
— Nós vamos organizar uma grande manifestação, uma passeata geral! — disse ele, com o punho no ar. — Essa Copa não é nossa, é deles! O povo da ilha sairá em peso às ruas para protestar!
E, segundo ele me informou ao telefone, a coisa ficou séria e a ideia da passeata recebeu a adesão de praticamente toda a ilha.
— Mas agora eu tenho de desligar, não posso perder a reunião da organização da passeata, que vai ser daqui a pouquinho.
— Eu pensei que já estava tudo organizado.
— Mas não está — disse ele. — Eu descobri que temos que mudar a hora da passeata para todo mundo ter tempo de ver o jogo.
Amigos da inflação e seus disfarces - GUSTAVO FRANCO
O GLOBO - 25/05
Arsenal de pretextos para a complacência com a inflação é uma espécie de ressurreição torta da ‘inflação estrutural’
As primeiras teorias sobre a inflação eram como a cartografia primitiva: roteiros para a imaginação muito mais que representações científicas e confiáveis da verdadeira geografia.
A inflação surgiu mais ou menos na mesma época e lugar que o “papel moeda”, sendo muito natural e espontâneo que se associasse uma coisa à outra. Afinal, a inflação é a perda de poder aquisitivo da moeda, simples assim.
No Brasil, entretanto, logo emergiu uma visão alternativa e imaginosa que tomava emprestada à engenharia uma palavra que mudaria para sempre nossa maneira de olhar as mazelas da economia: dizia-se que a inflação brasileira era “estrutural”.
Esse palavreado nos colocava em pleno Quartier Latin e, com toda razão, conferia a devida complexidade ao fenômeno, que deixava de pertencer às más intenções de governantes fabricantes de papel pintado e passava ao domínio de criaturas temíveis, como os monstros que ilustravam os espaços vazios dos mapas de antigamente: latifúndios, gargalos, cartéis e pontos de estrangulamento. Tinha-se, assim, de forma nem tão sutil, uma transferência da culpa pelo problema, um truque de grande impacto sobre os debates públicos sobre o combate à inflação.
A “inflação estrutural”, em suas múltiplas encarnações, sempre compreendia uma variação recorrente de um preço importante, geralmente os de alimentos, mercê da (supostamente) baixa produtividade no setor causada pela estrutura agrária dominada pelo latifúndio, e da repercussão viciosa do “choque de oferta” patrocinado pelos oligopólios e oligopsônios.
Não era uma boa teoria, tanto que caiu para a gaveta das curiosidades próprias dos primeiros anos em que o fenômeno se apresentou. Mas a mensagem central resultou duradoura: essa inflação que tinha “raízes no setor real” deveria ser combatida através de reformas que atacassem “estruturas”, agrária ou de classes sociais, de tal sorte que parecia tolo pensar que a política monetária pudesse afetar o poder de compra da moeda. A estabilização apenas ocorreria com a reforma agrária, ou com o socialismo.
O legado mais duradouro e popular da “teoria da inflação estrutural” era tão simples quanto devastador: a (suposta) inutilidade das políticas de estabilização convencionais, argumento que ainda soa como poesia para os amigos da inflação.
Poucos se dão conta da importância e da contundência desse drible dado pelos “estruturalistas”: nunca se fazia uma defesa aberta da inflação, mas um ataque às políticas monetárias ortodoxas e à austeridade. Em retrospecto, deveria ser claro que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” e que os “estruturalistas” estavam trabalhando a favor da inflação, às vezes admitindo “expropriar os rentistas”, ou “tributar a riqueza ociosa”, um argumento que frequentemente se associava a Lord Keynes.
Porém, os “desenvolvimentistas” sempre conseguiam se afastar da (autoria da) inflação, que se tornava, assim, uma criatura órfã, um mal impessoal, um cadáver sem o assassino para se tornar um inimigo público. Quem eram os amigos da inflação? Não deveria ser difícil apontar os culpados, mas o fato é que o Brasil nunca teve um rosto para tornar o patrono da inflação. Quem percorrer os cadernos de imagens dos livros sobre a inflação, como o da jornalista Miriam Leitão, vai encontrar fotos de prateleiras vazias, máquinas de remarcação e cédulas cheias de zeros ou carimbos, mas nenhum economista desses que criticam os “métodos convencionais” de combate à inflação.
Em tempos mais recentes, os amigos da inflação ampliaram o arsenal de pretextos para a complacência com a inflação com uma espécie de ressurreição torta da “inflação estrutural”, eis que a inflação observada no segmento de serviços do IPCA — que está rodando na faixa de 10% anuais — estaria associada à ascensão da classe média, processo desejável, uma espécie de “inflação do bem”, refletindo fenômenos fora do alcance da política monetária. O inflacionismo estaria em busca de uma aliança com o politicamente correto.
Há enorme heterogeneidade dentro de “serviços” no IPCA, com uma infinidade de histórias sobre mercados específicos. Há fenômenos associados ao ciclo imobiliário (aluguel, condomínio, estacionamento), outros às ventanias do turismo (passagens aéreas, hotéis, motéis, espetáculos), e os serviços que incluem componentes digitais (celulares, internet, fotocópia). Há a “inflação médica”, decorrente de mais “tecnologia embarcada”, mas o setor seguramente possui economias de escala, o mesmo valendo para os serviços educacionais. E há os itens afetados pelo salário mínimo (consertos e serviços pessoais), e também a deflação dos eletrônicos (duráveis, ou mais baratos ou melhores).
O que há de comum nesses enredos?
Existem centenas, talvez milhares de histórias sobre mudanças de preços relativos, vale dizer, sobre “inflação (ou deflação) estrutural”, pois o sistema de preços está sempre a vibrar, como um organismo vivo e irrequieto. Quem tem cinquenta teorias sobre inflação estrutural na verdade não tem nenhuma. Se existe algum traço comum em cada uma dessas narrativas de “choques de oferta” é que todos os preços são denominados na mesma moeda, que pode valer mais ou menos dependendo da política monetária.
A verdadeira discussão não é sobre se a inflação nos serviços é “benigna”, mas sobre complacência com a inflação. A alusão a uma nova inflação estrutural serve apenas para trazer de volta uma tese conhecida e maléfica: se há uma boa explicação “não monetária” para a existência da inflação, segue-se que a política monetária não funciona, ou produz um desemprego desnecessário para corrigir o incorrigível.
A própria presidente disse recentemente que reduzir a meta de inflação de 4,5% (na verdade 6,5%) para 3% faria o desemprego pular para 8% ou mais.
De onde saiu essa matemática?
Se fosse verdade, a redução na taxa de inflação de 916% para 5%, observada entre 1994 e 1997 (taxas acumuladas para o ano calendário), teria criado um caos. Em vez disso, o desemprego oscilou de 5,1% para 5,7%. Para quem não é do ramo parece mágica, não é mesmo?
O fato é que as autoridades governamentais prosseguem com o velho truque de antagonizar o combate à inflação e não a inflação, assim se esquivando canhestramente de fazer uma defesa aberta dessa sua criatura amiga, órfã apenas na aparência, e que parece nascer de causas naturais sem que ninguém lhe dê o que comer.
Quem são os amigos da inflação?
Basta olhar para os inimigos do combate à inflação.
Arsenal de pretextos para a complacência com a inflação é uma espécie de ressurreição torta da ‘inflação estrutural’
As primeiras teorias sobre a inflação eram como a cartografia primitiva: roteiros para a imaginação muito mais que representações científicas e confiáveis da verdadeira geografia.
A inflação surgiu mais ou menos na mesma época e lugar que o “papel moeda”, sendo muito natural e espontâneo que se associasse uma coisa à outra. Afinal, a inflação é a perda de poder aquisitivo da moeda, simples assim.
No Brasil, entretanto, logo emergiu uma visão alternativa e imaginosa que tomava emprestada à engenharia uma palavra que mudaria para sempre nossa maneira de olhar as mazelas da economia: dizia-se que a inflação brasileira era “estrutural”.
Esse palavreado nos colocava em pleno Quartier Latin e, com toda razão, conferia a devida complexidade ao fenômeno, que deixava de pertencer às más intenções de governantes fabricantes de papel pintado e passava ao domínio de criaturas temíveis, como os monstros que ilustravam os espaços vazios dos mapas de antigamente: latifúndios, gargalos, cartéis e pontos de estrangulamento. Tinha-se, assim, de forma nem tão sutil, uma transferência da culpa pelo problema, um truque de grande impacto sobre os debates públicos sobre o combate à inflação.
A “inflação estrutural”, em suas múltiplas encarnações, sempre compreendia uma variação recorrente de um preço importante, geralmente os de alimentos, mercê da (supostamente) baixa produtividade no setor causada pela estrutura agrária dominada pelo latifúndio, e da repercussão viciosa do “choque de oferta” patrocinado pelos oligopólios e oligopsônios.
Não era uma boa teoria, tanto que caiu para a gaveta das curiosidades próprias dos primeiros anos em que o fenômeno se apresentou. Mas a mensagem central resultou duradoura: essa inflação que tinha “raízes no setor real” deveria ser combatida através de reformas que atacassem “estruturas”, agrária ou de classes sociais, de tal sorte que parecia tolo pensar que a política monetária pudesse afetar o poder de compra da moeda. A estabilização apenas ocorreria com a reforma agrária, ou com o socialismo.
O legado mais duradouro e popular da “teoria da inflação estrutural” era tão simples quanto devastador: a (suposta) inutilidade das políticas de estabilização convencionais, argumento que ainda soa como poesia para os amigos da inflação.
Poucos se dão conta da importância e da contundência desse drible dado pelos “estruturalistas”: nunca se fazia uma defesa aberta da inflação, mas um ataque às políticas monetárias ortodoxas e à austeridade. Em retrospecto, deveria ser claro que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” e que os “estruturalistas” estavam trabalhando a favor da inflação, às vezes admitindo “expropriar os rentistas”, ou “tributar a riqueza ociosa”, um argumento que frequentemente se associava a Lord Keynes.
Porém, os “desenvolvimentistas” sempre conseguiam se afastar da (autoria da) inflação, que se tornava, assim, uma criatura órfã, um mal impessoal, um cadáver sem o assassino para se tornar um inimigo público. Quem eram os amigos da inflação? Não deveria ser difícil apontar os culpados, mas o fato é que o Brasil nunca teve um rosto para tornar o patrono da inflação. Quem percorrer os cadernos de imagens dos livros sobre a inflação, como o da jornalista Miriam Leitão, vai encontrar fotos de prateleiras vazias, máquinas de remarcação e cédulas cheias de zeros ou carimbos, mas nenhum economista desses que criticam os “métodos convencionais” de combate à inflação.
Em tempos mais recentes, os amigos da inflação ampliaram o arsenal de pretextos para a complacência com a inflação com uma espécie de ressurreição torta da “inflação estrutural”, eis que a inflação observada no segmento de serviços do IPCA — que está rodando na faixa de 10% anuais — estaria associada à ascensão da classe média, processo desejável, uma espécie de “inflação do bem”, refletindo fenômenos fora do alcance da política monetária. O inflacionismo estaria em busca de uma aliança com o politicamente correto.
Há enorme heterogeneidade dentro de “serviços” no IPCA, com uma infinidade de histórias sobre mercados específicos. Há fenômenos associados ao ciclo imobiliário (aluguel, condomínio, estacionamento), outros às ventanias do turismo (passagens aéreas, hotéis, motéis, espetáculos), e os serviços que incluem componentes digitais (celulares, internet, fotocópia). Há a “inflação médica”, decorrente de mais “tecnologia embarcada”, mas o setor seguramente possui economias de escala, o mesmo valendo para os serviços educacionais. E há os itens afetados pelo salário mínimo (consertos e serviços pessoais), e também a deflação dos eletrônicos (duráveis, ou mais baratos ou melhores).
O que há de comum nesses enredos?
Existem centenas, talvez milhares de histórias sobre mudanças de preços relativos, vale dizer, sobre “inflação (ou deflação) estrutural”, pois o sistema de preços está sempre a vibrar, como um organismo vivo e irrequieto. Quem tem cinquenta teorias sobre inflação estrutural na verdade não tem nenhuma. Se existe algum traço comum em cada uma dessas narrativas de “choques de oferta” é que todos os preços são denominados na mesma moeda, que pode valer mais ou menos dependendo da política monetária.
A verdadeira discussão não é sobre se a inflação nos serviços é “benigna”, mas sobre complacência com a inflação. A alusão a uma nova inflação estrutural serve apenas para trazer de volta uma tese conhecida e maléfica: se há uma boa explicação “não monetária” para a existência da inflação, segue-se que a política monetária não funciona, ou produz um desemprego desnecessário para corrigir o incorrigível.
A própria presidente disse recentemente que reduzir a meta de inflação de 4,5% (na verdade 6,5%) para 3% faria o desemprego pular para 8% ou mais.
De onde saiu essa matemática?
Se fosse verdade, a redução na taxa de inflação de 916% para 5%, observada entre 1994 e 1997 (taxas acumuladas para o ano calendário), teria criado um caos. Em vez disso, o desemprego oscilou de 5,1% para 5,7%. Para quem não é do ramo parece mágica, não é mesmo?
O fato é que as autoridades governamentais prosseguem com o velho truque de antagonizar o combate à inflação e não a inflação, assim se esquivando canhestramente de fazer uma defesa aberta dessa sua criatura amiga, órfã apenas na aparência, e que parece nascer de causas naturais sem que ninguém lhe dê o que comer.
Quem são os amigos da inflação?
Basta olhar para os inimigos do combate à inflação.
Hora de mudar o foco - ARMINIO FRAGA E MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 25/05
Proteção e incentivos a setores selecionados resultam em grupos de interesse que tendem a dificultar reformas que beneficiem a sociedade
A política econômica retornou ao centro do debate com seu sucesso em estimular o consumo, porém não o investimento e o crescimento. Pouco se discute o lado da oferta, onde se encontra o maior desafio: aumentar a produtividade da economia, essencial para a convergência dos padrões de vida da população aos dos países mais ricos.
O debate sobre políticas públicas esbarra na carência de evidências robustas que auxiliem a sua avaliação, sendo frequentemente dominado por crenças preconcebidas. A experiência de outros países pode ser útil para a discussão, como nos parece ser o caso da Austrália.
Na década de 1920, a Austrália criou um Conselho das Tarifas (de importação). Tal conselho tinha por objetivo encorajar o desenvolvimento de setores eficientes, o que por anos foi feito por meio da recomendação de crescente proteção tarifária. Na década de 1960, no entanto, o conselho se conscientizou do dano que essa proteção vinha causando à eficiência econômica e ao crescimento. Essa conclusão levou a uma interessante evolução institucional.
Após duas etapas na década de 1980, quando o conselho se transformou primeiramente na Comissão de Assistência Setorial e depois na Comissão Setorial, foi finalmente criada em 1998 a Comissão de Produtividade, que tem por missão fazer estudos e recomendações sobre como melhorar a produtividade e o desempenho da economia.
O ponto mais importante do seu mandato pode ser encontrado no topo da lista de princípios que o regem: todas as políticas devem ter como preocupação o bem-estar da comunidade como um todo, e não os interesses particulares de um grupo ou setor. Esse deveria ser o foco de todas as políticas públicas no Brasil.
Outros objetivos da comissão são promover a redução de regulamentações desnecessárias, estimular setores eficientes e competitivos internacionalmente, facilitar mudanças estruturais, levando em conta os interesses daqueles afetados por reformas, e garantir o desenvolvimento ecologicamente sustentável.
O contraste com a Argentina é notável. No começo do século 20, Austrália e Argentina estavam entre as economias mais produtivas do mundo. Durante as décadas seguintes, no entanto, ambos os países adotaram crescentemente medidas de estímulo à indústria doméstica e elevadas tarifas de proteção ao comércio exterior. Progressivamente, os dois países foram ficando atrás das economias mais desenvolvidas.
Na década de 1980, a Austrália apresentava taxa de crescimento anual da produtividade menor que a da maioria dos países da OCDE, inclusive a Grécia. A Argentina, por sua vez, enfrentou sucessivas crises econômicas, e seu PIB per capita caiu para 30% do americano.
Nas últimas décadas, os dois países fizeram opções distintas de política econômica. A história argentina é bem conhecida, com medidas heterodoxas à esquerda e à direita, pouco controle das contas públicas e forte intervenção governamental.
A Austrália fez outra escolha: a da redução progressiva do protecionismo, acompanhada da avaliação das políticas públicas, e a criação de agências independentes do Estado com metas de desempenho, inclusive o Banco Central.
Políticas de desenvolvimento baseadas em proteção, subsídios e incentivos a setores selecionados resultam no estabelecimento formal e informal de grupos de interesse, que dependem da sua manutenção. Esses grupos tendem a dificultar reformas que beneficiem a sociedade como um todo. No caso da política econômica, essa dificuldade é ainda maior pela impossibilidade do contrafactual, ou seja, aquilo que poderia ter ocorrido caso a escolha tivesse sido outra.
A saída passa por adotar critérios e regras de políticas públicas voltados ao interesse maior da sociedade, promover avaliações regulares e independentes dessas políticas e garantir ao público o acesso a informações que permitam o contraditório.
Proteção e incentivos a setores selecionados resultam em grupos de interesse que tendem a dificultar reformas que beneficiem a sociedade
A política econômica retornou ao centro do debate com seu sucesso em estimular o consumo, porém não o investimento e o crescimento. Pouco se discute o lado da oferta, onde se encontra o maior desafio: aumentar a produtividade da economia, essencial para a convergência dos padrões de vida da população aos dos países mais ricos.
O debate sobre políticas públicas esbarra na carência de evidências robustas que auxiliem a sua avaliação, sendo frequentemente dominado por crenças preconcebidas. A experiência de outros países pode ser útil para a discussão, como nos parece ser o caso da Austrália.
Na década de 1920, a Austrália criou um Conselho das Tarifas (de importação). Tal conselho tinha por objetivo encorajar o desenvolvimento de setores eficientes, o que por anos foi feito por meio da recomendação de crescente proteção tarifária. Na década de 1960, no entanto, o conselho se conscientizou do dano que essa proteção vinha causando à eficiência econômica e ao crescimento. Essa conclusão levou a uma interessante evolução institucional.
Após duas etapas na década de 1980, quando o conselho se transformou primeiramente na Comissão de Assistência Setorial e depois na Comissão Setorial, foi finalmente criada em 1998 a Comissão de Produtividade, que tem por missão fazer estudos e recomendações sobre como melhorar a produtividade e o desempenho da economia.
O ponto mais importante do seu mandato pode ser encontrado no topo da lista de princípios que o regem: todas as políticas devem ter como preocupação o bem-estar da comunidade como um todo, e não os interesses particulares de um grupo ou setor. Esse deveria ser o foco de todas as políticas públicas no Brasil.
Outros objetivos da comissão são promover a redução de regulamentações desnecessárias, estimular setores eficientes e competitivos internacionalmente, facilitar mudanças estruturais, levando em conta os interesses daqueles afetados por reformas, e garantir o desenvolvimento ecologicamente sustentável.
O contraste com a Argentina é notável. No começo do século 20, Austrália e Argentina estavam entre as economias mais produtivas do mundo. Durante as décadas seguintes, no entanto, ambos os países adotaram crescentemente medidas de estímulo à indústria doméstica e elevadas tarifas de proteção ao comércio exterior. Progressivamente, os dois países foram ficando atrás das economias mais desenvolvidas.
Na década de 1980, a Austrália apresentava taxa de crescimento anual da produtividade menor que a da maioria dos países da OCDE, inclusive a Grécia. A Argentina, por sua vez, enfrentou sucessivas crises econômicas, e seu PIB per capita caiu para 30% do americano.
Nas últimas décadas, os dois países fizeram opções distintas de política econômica. A história argentina é bem conhecida, com medidas heterodoxas à esquerda e à direita, pouco controle das contas públicas e forte intervenção governamental.
A Austrália fez outra escolha: a da redução progressiva do protecionismo, acompanhada da avaliação das políticas públicas, e a criação de agências independentes do Estado com metas de desempenho, inclusive o Banco Central.
Políticas de desenvolvimento baseadas em proteção, subsídios e incentivos a setores selecionados resultam no estabelecimento formal e informal de grupos de interesse, que dependem da sua manutenção. Esses grupos tendem a dificultar reformas que beneficiem a sociedade como um todo. No caso da política econômica, essa dificuldade é ainda maior pela impossibilidade do contrafactual, ou seja, aquilo que poderia ter ocorrido caso a escolha tivesse sido outra.
A saída passa por adotar critérios e regras de políticas públicas voltados ao interesse maior da sociedade, promover avaliações regulares e independentes dessas políticas e garantir ao público o acesso a informações que permitam o contraditório.
Ainda a estagnação do crescimento - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
O Estado de S.Paulo - 25/05
Viajei esta semana a Cuiabá para participar de um evento e levei um choque. Embora soubesse que lá a preparação para a Copa não ia bem, a situação ao vivo e em cores mostrou-se muito pior do que imaginava. No aeroporto, a única coisa pronta é a parte velha e tudo indica que pouco vai mudar até o dia 13 de junho, data do primeiro jogo a ser lá realizado. Apanhar um táxi é uma aventura, tal é o estado da praça em frente ao terminal de passageiros. A jovem que vendeu o tíquete da Cooperativa pediu que tivesse cuidado para não ser atropelado, dada a confusão de veículos.
O aeroporto fica no município de Vargem Grande e é relativamente distante do centro de Cuiabá. Todo o trajeto foi feito por ruas secundárias, numa incrível confusão viária. As vias principais estão em obras e não me parece que estarão adequadamente prontas até junho. Finalmente, o mais incrível é que a construção do veículo leve de transporte (VLT) está no seu início, mas os buracos ocupam o canteiro central da avenida. Com humor resignado, um executivo de lá me disse que até a Olimpíada a obra deverá ficar pronta. Pena que o evento seja realizado no Rio de Janeiro.
O descrito acima ilustra uma realidade bastante clara. O efeito econômico da Copa será muito menor do que o imaginado por seus organizadores. Os investimentos serão muito menores do que os prometidos, concentrando-se mais nas próprias arenas, boa parte das quais ficará completamente subutilizada nos anos subsequentes, uma vez que não há torcida que preencha minimamente muito dos estádios (meu filho, André, informou-me que a última final do campeonato amazonense foi assistida por pouco mais de 3.100 espectadores), incluindo grandes eventos musicais. Poucos investimentos que deixariam efeitos multiplicadores permanentes, como metrôs, VLTs, trens e outros do tipo, foram realizados.
Além disso, a Copa pouco empolgou a população, como mostrou pesquisa recente do Datafolha, quando 66% das pessoas consultadas disseram que o evento trará mais prejuízos do que benefícios para o País. Essa percepção reforçou uma situação de redução nas expectativas de consumidores e produtores, acelerando a queda na atividade. Não apenas os produtos associados à Copa venderam pouco, como boa parte do comércio relata uma alta inesperada de estoques, levando muitos fornecedores a reduzir a sua atividade. A Whirlpool, por exemplo, acaba de dar férias coletivas para 5 mil dos seus funcionários, reforçando o movimento de outros setores importantes, como o setor automotivo. É bastante provável que alguns desses funcionários sejam dispensados nos próximos meses.
Os inúmeros feriados dos próximos dias também contribuirão para a redução das vendas, produção e PIB. Como as pesquisas mostram, as expectativas empresariais também estão sendo afetadas pelas incertezas e custos associados à energia elétrica, e a taxa de investimentos deve se manter relativamente estável, similar ao baixo nível dos últimos anos.
Não tenho dúvida que deveremos rever, para baixo, nossa atual projeção de 1,3% para o crescimento do PIB deste ano, ainda mais uma vez.
Com esse cenário, a estagnação econômica dos últimos quatro anos estará mais do que caracterizada. Um período longo como esse revela algo estrutural e não um evento fortuito. Fica demonstrado que algumas das hipóteses utilizadas pela política econômica atual se mostraram totalmente equivocadas, a saber:
(1) Um pouco mais de inflação não criaria problemas. Desde que o teto da meta não seja ultrapassado, tudo estará bem. Como se sabe, não apenas a inflação deste ano vai ultrapassar o teto da meta, como a redução e controle artificial de preços de energia e de transportes tem de ser mantida a qualquer custo;
(2) Bastaria estimular a demanda, que a oferta cresceria. Na realidade, isso até aconteceu, mas o que cresceu mesmo foram as importações. Que o diga a indústria;
(3) Os investimentos subiriam com o tamanho do orçamento do BNDES e outros bancos públicos, bem como no volume de incentivos (ou como gosto de chamar, caramelos) tributários. Os dados do IBGE mostram a estagnação na taxa de investimento brasileiro em níveis compatíveis apenas com crescimento modestíssimo, como o dos últimos tempos;
(4) Os investimentos subiriam em decorrência de um intenso ativismo governamental que criasse "modelos" para as operações das empresas. O desastre do setor elétrico ilustra bem o que ocorreu;
(5) A economia cresceria puxada por uma elite de super campeões nacionais. Além de não existir crescimento, vários desastres empresariais recentes mostram a fragilidade da proposição. A realidade é que não existirão muitas empresas campeãs globais num sistema pouco competitivo. E o Brasil vai muito mal no quesito competitividade. O indicador do IMD, divulgado na semana passada, mostra que, nos últimos quatro anos, o Brasil perdeu posições, caindo do 38.º lugar para o 54.º, num grupo de 60 economias analisadas. Como colocou o professor Carlos Arruda (da Fundação Dom Cabral e coordenador do estudo), "entre 2010 e 2013, o Brasil vinha perdendo posições relativas, porque a competitividade de outros países vinha aumentando. Agora, em 2014, aconteceu algo diferente, a perda foi absoluta. O Brasil perdeu para ele mesmo. A competitividade, de fato, diminuiu".
Os casos de sucesso, como a Embraer, ainda são exceções e resultam de um processo de longo prazo e de condições especiais. Ainda assim, como mostra a própria Embraer, não haverá campeões de verdade sem um desenvolvimento tecnológico contínuo e consistente. O exemplo da cadeia do agronegócio é ilustrativo: seus custos (de mão de obra, logística e tributários) têm subido como em todos os outros setores da economia. Entretanto, a cadeia é competitiva porque há uma contínua elevação da eficiência e da produtividade, que permite a absorção de maiores despesas sem perda de competitividade nos mercados globais.
Como não me canso de repetir, crescer não é fácil. Discursos triunfalistas não resolvem o problema.
Viajei esta semana a Cuiabá para participar de um evento e levei um choque. Embora soubesse que lá a preparação para a Copa não ia bem, a situação ao vivo e em cores mostrou-se muito pior do que imaginava. No aeroporto, a única coisa pronta é a parte velha e tudo indica que pouco vai mudar até o dia 13 de junho, data do primeiro jogo a ser lá realizado. Apanhar um táxi é uma aventura, tal é o estado da praça em frente ao terminal de passageiros. A jovem que vendeu o tíquete da Cooperativa pediu que tivesse cuidado para não ser atropelado, dada a confusão de veículos.
O aeroporto fica no município de Vargem Grande e é relativamente distante do centro de Cuiabá. Todo o trajeto foi feito por ruas secundárias, numa incrível confusão viária. As vias principais estão em obras e não me parece que estarão adequadamente prontas até junho. Finalmente, o mais incrível é que a construção do veículo leve de transporte (VLT) está no seu início, mas os buracos ocupam o canteiro central da avenida. Com humor resignado, um executivo de lá me disse que até a Olimpíada a obra deverá ficar pronta. Pena que o evento seja realizado no Rio de Janeiro.
O descrito acima ilustra uma realidade bastante clara. O efeito econômico da Copa será muito menor do que o imaginado por seus organizadores. Os investimentos serão muito menores do que os prometidos, concentrando-se mais nas próprias arenas, boa parte das quais ficará completamente subutilizada nos anos subsequentes, uma vez que não há torcida que preencha minimamente muito dos estádios (meu filho, André, informou-me que a última final do campeonato amazonense foi assistida por pouco mais de 3.100 espectadores), incluindo grandes eventos musicais. Poucos investimentos que deixariam efeitos multiplicadores permanentes, como metrôs, VLTs, trens e outros do tipo, foram realizados.
Além disso, a Copa pouco empolgou a população, como mostrou pesquisa recente do Datafolha, quando 66% das pessoas consultadas disseram que o evento trará mais prejuízos do que benefícios para o País. Essa percepção reforçou uma situação de redução nas expectativas de consumidores e produtores, acelerando a queda na atividade. Não apenas os produtos associados à Copa venderam pouco, como boa parte do comércio relata uma alta inesperada de estoques, levando muitos fornecedores a reduzir a sua atividade. A Whirlpool, por exemplo, acaba de dar férias coletivas para 5 mil dos seus funcionários, reforçando o movimento de outros setores importantes, como o setor automotivo. É bastante provável que alguns desses funcionários sejam dispensados nos próximos meses.
Os inúmeros feriados dos próximos dias também contribuirão para a redução das vendas, produção e PIB. Como as pesquisas mostram, as expectativas empresariais também estão sendo afetadas pelas incertezas e custos associados à energia elétrica, e a taxa de investimentos deve se manter relativamente estável, similar ao baixo nível dos últimos anos.
Não tenho dúvida que deveremos rever, para baixo, nossa atual projeção de 1,3% para o crescimento do PIB deste ano, ainda mais uma vez.
Com esse cenário, a estagnação econômica dos últimos quatro anos estará mais do que caracterizada. Um período longo como esse revela algo estrutural e não um evento fortuito. Fica demonstrado que algumas das hipóteses utilizadas pela política econômica atual se mostraram totalmente equivocadas, a saber:
(1) Um pouco mais de inflação não criaria problemas. Desde que o teto da meta não seja ultrapassado, tudo estará bem. Como se sabe, não apenas a inflação deste ano vai ultrapassar o teto da meta, como a redução e controle artificial de preços de energia e de transportes tem de ser mantida a qualquer custo;
(2) Bastaria estimular a demanda, que a oferta cresceria. Na realidade, isso até aconteceu, mas o que cresceu mesmo foram as importações. Que o diga a indústria;
(3) Os investimentos subiriam com o tamanho do orçamento do BNDES e outros bancos públicos, bem como no volume de incentivos (ou como gosto de chamar, caramelos) tributários. Os dados do IBGE mostram a estagnação na taxa de investimento brasileiro em níveis compatíveis apenas com crescimento modestíssimo, como o dos últimos tempos;
(4) Os investimentos subiriam em decorrência de um intenso ativismo governamental que criasse "modelos" para as operações das empresas. O desastre do setor elétrico ilustra bem o que ocorreu;
(5) A economia cresceria puxada por uma elite de super campeões nacionais. Além de não existir crescimento, vários desastres empresariais recentes mostram a fragilidade da proposição. A realidade é que não existirão muitas empresas campeãs globais num sistema pouco competitivo. E o Brasil vai muito mal no quesito competitividade. O indicador do IMD, divulgado na semana passada, mostra que, nos últimos quatro anos, o Brasil perdeu posições, caindo do 38.º lugar para o 54.º, num grupo de 60 economias analisadas. Como colocou o professor Carlos Arruda (da Fundação Dom Cabral e coordenador do estudo), "entre 2010 e 2013, o Brasil vinha perdendo posições relativas, porque a competitividade de outros países vinha aumentando. Agora, em 2014, aconteceu algo diferente, a perda foi absoluta. O Brasil perdeu para ele mesmo. A competitividade, de fato, diminuiu".
Os casos de sucesso, como a Embraer, ainda são exceções e resultam de um processo de longo prazo e de condições especiais. Ainda assim, como mostra a própria Embraer, não haverá campeões de verdade sem um desenvolvimento tecnológico contínuo e consistente. O exemplo da cadeia do agronegócio é ilustrativo: seus custos (de mão de obra, logística e tributários) têm subido como em todos os outros setores da economia. Entretanto, a cadeia é competitiva porque há uma contínua elevação da eficiência e da produtividade, que permite a absorção de maiores despesas sem perda de competitividade nos mercados globais.
Como não me canso de repetir, crescer não é fácil. Discursos triunfalistas não resolvem o problema.
O PIB dos economistas e o PIB do povo - SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 25/05
O 'PIB do povo' cresceu mais do que o 'PIB dos economistas', mas à custa da piora nas contas externas
Na terça feira da semana passada, ampla reportagem do jornal "Valor" noticiou o entusiasmo do titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e meu colega da FGV, Marcelo Neri, com os avanços sociais na última década e, em particular, no quadriênio de Dilma Rousseff.
Adicionalmente o ministro apontou a defasagem que há entre a evolução do produto per capita do país, também chamado de "PIB dos economistas", e a renda pessoal medida pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, o "PIB do povo".
Entre 2003 e 2012, ano da Pnad mais recente disponível, o PIB per capita cresceu em termos reais 28%, enquanto a renda mediana domiciliar per capita teve aumento de 78%! Houve defasagem na velocidade de crescimento dos PIBs "do povo" e "dos economistas" de 50 pontos percentuais.
Marcelo é reconhecido como um dos melhores microeconomistas da área de economia do trabalho no Brasil. Microeconomistas trabalham em geral com bases de dados muito amplas e estudam em detalhe a natureza de cada indivíduo. Diz-se que olham as árvores sem se preocupar com a floresta. Já os macroeconomistas estudam a floresta sem se preocupar com cada uma de suas árvores.
O risco da análise macroeconômica é não notar pequenas dinâmicas que aos poucos ganham corpo e acabam por ter impactos agregados importantes.
Já os microeconomistas correm o risco de não reconhecer que a dinâmica da árvore pode depender de fatores agregados que estejam a atingir toda a floresta. Por exemplo, é possível que a árvore esteja crescendo mais rápido porque as condições climáticas alteraram-se transitoriamente, em favor do crescimento. Quando o clima retor- nar ao padrão usual, a bonança perderá fôlego.
Parece que esse longo período no qual o PIB do povo andou além do PIB dos economistas foi acompanhado da construção de desequilíbrios em outras variáveis macroeconômicas que colocam em xeque a manutenção do processo.
Entre 2003 e 2012, o deficit de transações correntes como proporção do PIB elevou-se em 3,2 pontos percentuais. Como mostrei na semana passada, nesse período os termos de troca, isto é, o preço da pauta exportadora em unidades da pauta importadora, cresceu mais de 20%. Conta simples sugere que, se não tivesse havido a alteração dos preços em nosso favor, a variação do deficit de transações correntes entre 2003 e 2012 seria de mais de sete pontos percentuais do PIB, visto que nesse período a absorção (consumo e investimento dos setores público e privado) cresceu 60%, e o produto, 40%.
Ou seja, parece haver associação entre o fortíssimo crescimento do PIB do povo além do PIB dos economistas e a elevação do deficit externo, que saiu de um superavit de 1,76% do PIB em 2004 para um deficit hoje na casa de 4%.
Para verificar essa possível associação, tomei as Pnads de 1981 até 2012. Calculei a renda individual mediana de todos os trabalhos a preços de 2012. Essa será a minha medida do PIB do povo. Para o PIB dos economistas, considerei o PIB per capita a preços de 2012.
Para cada um dos anos, tomei a diferença entre as taxas de crescimento do PIB do povo e do PIB dos economistas entre 1981 e a referida data. Sempre que essa estatística for positiva, significa que, entre 1981 e a referida data, o PIB do povo andou além do PIB dos economistas. Quando for negativa, o PIB do povo andou aquém do PIB dos economistas. Chamei essa variável de defasagem entre os PIBs.
A má notícia é que a correlação entre o deficit de transações correntes e a defasagem entre os PIBs é de 75%. Desde a década de 1980, três quartos da variação do PIB do povo não explicada pela trajetória do PIB dos economistas está associada à piora das contas externas.
Enquanto os microeconomistas do governo municiam a presidente e seus auxiliares com informações positivas associadas ao bom desempenho do PIB do povo, seria oportuno que os macroeconomistas do governo se debruçassem sobre o problemão de arrumar a casa --isto é, reduzir o deficit externo, entre outras coisas-- sem fazer com que o PIB do povo ande muito aquém do PIB dos economistas.
O 'PIB do povo' cresceu mais do que o 'PIB dos economistas', mas à custa da piora nas contas externas
Na terça feira da semana passada, ampla reportagem do jornal "Valor" noticiou o entusiasmo do titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e meu colega da FGV, Marcelo Neri, com os avanços sociais na última década e, em particular, no quadriênio de Dilma Rousseff.
Adicionalmente o ministro apontou a defasagem que há entre a evolução do produto per capita do país, também chamado de "PIB dos economistas", e a renda pessoal medida pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, o "PIB do povo".
Entre 2003 e 2012, ano da Pnad mais recente disponível, o PIB per capita cresceu em termos reais 28%, enquanto a renda mediana domiciliar per capita teve aumento de 78%! Houve defasagem na velocidade de crescimento dos PIBs "do povo" e "dos economistas" de 50 pontos percentuais.
Marcelo é reconhecido como um dos melhores microeconomistas da área de economia do trabalho no Brasil. Microeconomistas trabalham em geral com bases de dados muito amplas e estudam em detalhe a natureza de cada indivíduo. Diz-se que olham as árvores sem se preocupar com a floresta. Já os macroeconomistas estudam a floresta sem se preocupar com cada uma de suas árvores.
O risco da análise macroeconômica é não notar pequenas dinâmicas que aos poucos ganham corpo e acabam por ter impactos agregados importantes.
Já os microeconomistas correm o risco de não reconhecer que a dinâmica da árvore pode depender de fatores agregados que estejam a atingir toda a floresta. Por exemplo, é possível que a árvore esteja crescendo mais rápido porque as condições climáticas alteraram-se transitoriamente, em favor do crescimento. Quando o clima retor- nar ao padrão usual, a bonança perderá fôlego.
Parece que esse longo período no qual o PIB do povo andou além do PIB dos economistas foi acompanhado da construção de desequilíbrios em outras variáveis macroeconômicas que colocam em xeque a manutenção do processo.
Entre 2003 e 2012, o deficit de transações correntes como proporção do PIB elevou-se em 3,2 pontos percentuais. Como mostrei na semana passada, nesse período os termos de troca, isto é, o preço da pauta exportadora em unidades da pauta importadora, cresceu mais de 20%. Conta simples sugere que, se não tivesse havido a alteração dos preços em nosso favor, a variação do deficit de transações correntes entre 2003 e 2012 seria de mais de sete pontos percentuais do PIB, visto que nesse período a absorção (consumo e investimento dos setores público e privado) cresceu 60%, e o produto, 40%.
Ou seja, parece haver associação entre o fortíssimo crescimento do PIB do povo além do PIB dos economistas e a elevação do deficit externo, que saiu de um superavit de 1,76% do PIB em 2004 para um deficit hoje na casa de 4%.
Para verificar essa possível associação, tomei as Pnads de 1981 até 2012. Calculei a renda individual mediana de todos os trabalhos a preços de 2012. Essa será a minha medida do PIB do povo. Para o PIB dos economistas, considerei o PIB per capita a preços de 2012.
Para cada um dos anos, tomei a diferença entre as taxas de crescimento do PIB do povo e do PIB dos economistas entre 1981 e a referida data. Sempre que essa estatística for positiva, significa que, entre 1981 e a referida data, o PIB do povo andou além do PIB dos economistas. Quando for negativa, o PIB do povo andou aquém do PIB dos economistas. Chamei essa variável de defasagem entre os PIBs.
A má notícia é que a correlação entre o deficit de transações correntes e a defasagem entre os PIBs é de 75%. Desde a década de 1980, três quartos da variação do PIB do povo não explicada pela trajetória do PIB dos economistas está associada à piora das contas externas.
Enquanto os microeconomistas do governo municiam a presidente e seus auxiliares com informações positivas associadas ao bom desempenho do PIB do povo, seria oportuno que os macroeconomistas do governo se debruçassem sobre o problemão de arrumar a casa --isto é, reduzir o deficit externo, entre outras coisas-- sem fazer com que o PIB do povo ande muito aquém do PIB dos economistas.
A Copa das mazelas - CELSO MING
O Estado de S.Paulo - 25/05
Quando disputou e arrancou o privilégio de sediar a Copa do Mundo, o governo Lula pretendeu aproveitar o evento para uma super exibição do Brasil para o mundo, em capacidade administrativa e potência econômica.
Enormes focos de luz estão dirigidos agora para cá e para tudo o que há de errado. A curiosidade do exterior não se limita à degustação de coisas daqui, como caipirinha, suco de maracujá e pão de queijo. Extravasa para a nossa incompetência. O Brasil está frustrando as expectativas criadas quando se tornou o B do Brics. Algumas matérias, as do jornal inglês Financial Times, de 4/5, e da revista alemã Der Spiegel, de 11/5, foram demolidoras.
Além de advertir os visitantes para os riscos que correm por aqui com segurança pessoal e alimentação nem sempre confiável, os grandes jornais e revistas, a TV e a internet não param de desnudar as mazelas e a desorganização do País. Os preparativos para a Copa foram sucessão de encrencas: falhas de planejamento, estouro injustificável de custos, desperdícios, atrasos enormes e baixa qualidade de algumas obras. "Isso me envergonha" -- disse sexta-feira o campeão Ronaldo Fenômeno.
Ontem, o correspondente do Estadão em Genebra, Jamil Chade, relatou que a Copa baterá todos os recordes de lucro da história do futebol (veja abaixo). Será sucesso de bilheteria, de arrecadação de direitos para a Fifa e de lucros para as patrocinadoras. Mas, na percepção do brasileiro comum, pouco sobrará para ele além de eventuais alegrias com as vitórias de sua seleção.
As manifestações que pipocam em todas as grandes cidades, inclusive entre movimentos protegidos pelo governo, como o MST, levantam dúvidas sobre o acerto da decisão que deu prioridade às obras dos estádios, em detrimento dos investimentos em ensino, em saúde e em transporte público. Esperava-se que este fosse um dos bons resultados indiretos. Mas nessa área as coisas estão piorando. O próprio Lula considera "babaquice" a construção de linhas de metrô que atendam a estádios de futebol, sem levar em conta as necessidades das populações vizinhas. Ele deve discordar da presidente Dilma que, na sexta-feira, afirmou que a construção e a ampliação dos aeroportos não vieram para benefício dos torcedores estrangeiros, mas para atender a 112 milhões de passageiros no Brasil. Não faz sentido argumentar que as imposições da Fifa são descabidas. Estão, são condições já previstas por quem se apresentou como candidato à sede da Copa.
É provável que, a partir do momento em que a seleção canarinho entrar em campo, as manifestações de indignação refluam e sejam deixadas para depois. Mas não dá para esconder que as novas classes médias se sentem fortemente frustradas com a baixa qualidade dos serviços públicos e com o derretimento da capacidade de consumo provocado pela inflação de mais de 6% ao ano. Isso exige conserto da economia que não aparece em nenhuma das prioridades do governo Dilma.
Quando disputou e arrancou o privilégio de sediar a Copa do Mundo, o governo Lula pretendeu aproveitar o evento para uma super exibição do Brasil para o mundo, em capacidade administrativa e potência econômica.
Enormes focos de luz estão dirigidos agora para cá e para tudo o que há de errado. A curiosidade do exterior não se limita à degustação de coisas daqui, como caipirinha, suco de maracujá e pão de queijo. Extravasa para a nossa incompetência. O Brasil está frustrando as expectativas criadas quando se tornou o B do Brics. Algumas matérias, as do jornal inglês Financial Times, de 4/5, e da revista alemã Der Spiegel, de 11/5, foram demolidoras.
Além de advertir os visitantes para os riscos que correm por aqui com segurança pessoal e alimentação nem sempre confiável, os grandes jornais e revistas, a TV e a internet não param de desnudar as mazelas e a desorganização do País. Os preparativos para a Copa foram sucessão de encrencas: falhas de planejamento, estouro injustificável de custos, desperdícios, atrasos enormes e baixa qualidade de algumas obras. "Isso me envergonha" -- disse sexta-feira o campeão Ronaldo Fenômeno.
Ontem, o correspondente do Estadão em Genebra, Jamil Chade, relatou que a Copa baterá todos os recordes de lucro da história do futebol (veja abaixo). Será sucesso de bilheteria, de arrecadação de direitos para a Fifa e de lucros para as patrocinadoras. Mas, na percepção do brasileiro comum, pouco sobrará para ele além de eventuais alegrias com as vitórias de sua seleção.
As manifestações que pipocam em todas as grandes cidades, inclusive entre movimentos protegidos pelo governo, como o MST, levantam dúvidas sobre o acerto da decisão que deu prioridade às obras dos estádios, em detrimento dos investimentos em ensino, em saúde e em transporte público. Esperava-se que este fosse um dos bons resultados indiretos. Mas nessa área as coisas estão piorando. O próprio Lula considera "babaquice" a construção de linhas de metrô que atendam a estádios de futebol, sem levar em conta as necessidades das populações vizinhas. Ele deve discordar da presidente Dilma que, na sexta-feira, afirmou que a construção e a ampliação dos aeroportos não vieram para benefício dos torcedores estrangeiros, mas para atender a 112 milhões de passageiros no Brasil. Não faz sentido argumentar que as imposições da Fifa são descabidas. Estão, são condições já previstas por quem se apresentou como candidato à sede da Copa.
É provável que, a partir do momento em que a seleção canarinho entrar em campo, as manifestações de indignação refluam e sejam deixadas para depois. Mas não dá para esconder que as novas classes médias se sentem fortemente frustradas com a baixa qualidade dos serviços públicos e com o derretimento da capacidade de consumo provocado pela inflação de mais de 6% ao ano. Isso exige conserto da economia que não aparece em nenhuma das prioridades do governo Dilma.
Em uma dura semana - MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 25/05
A notícia começou a correr de boca em boca no meio da tarde de terça-feira. A cidade iria parar. Não uma cidade qualquer, mas a maior do Brasil, a que costuma medir seus engarrafamentos por quilômetros que parecem sempre cada vez mais esticados. Os trabalhadores voltaram para casa com dificuldade. No dia seguinte, amanheceram mais cedo para a luta de chegar ao trabalho.
Com o relato dessas cenas, expostas nos noticiários de TV, rádio, jornal, blogs e sites, é que li a entrevista do sociólogo Domenico De Masi, comemorando, mais uma vez, em seu novo livro, a suposta indolência brasileira. Segundo ele, graças aos índios, o ideal da eficiência e do produtivismo não pegou o Brasil. “Os índios não trabalhavam. Não era necessário. Tudo estava na natureza. Não precisavam nem se vestir porque o clima era bom. O brasileiro herdou do índio esse senso de ócio.”
É difícil encontrar visão mais superficial e estereótipo mais antigo sobre o Brasil, em geral; os índios, em particular. Se ele queria nos elogiar, escorregou para um lugar comum distante da realidade em todas as áreas.
Naquela quarta-feira, milhões de trabalhadores tentariam superar o quase insuperável obstáculo de uma cidade enorme com uma greve de ônibus para ir ao trabalho. Há quem tenha andado quilômetros, mesmo sem saber se ao fim do dia conseguiria voltar. Aconteceu o mesmo dias antes no Rio, com a vantagem que a greve foi anunciada no fim de um dia para começar no outro, e as pessoas puderam se organizar.
Domenico De Masi é simpático, bonachão, diz gostar muito do Brasil e tem boas ideias sobre abrir espaço no cotidiano para a criatividade e o prazer, mas ele tem errado na avaliação do que somos nós. Às vezes, até parece que o sociólogo italiano tem razão quando vemos a comparação dos índices de produtividade do Brasil comparado a outros países. Eles estão baixos e em queda. Somos reprovados em qualquer ranking feitos pelas várias entidades que se dispõem a comparar a produtividade no mundo.
O problema não é que o trabalhador brasileiro não queira ser produtivo, é que ele enfrenta barreiras demais. Não é por falta de empenho do trabalho, mas sim pelos enormes e conhecidos obstáculos que existem para que a economia seja mais produtiva. Governo após governo, especialistas apontam o dedo para a infraestrutura deficiente, a logística irracional, o excesso de burocracia, os impostos muitos e complexos, as dificuldades criadas pelo Estado que impedem que a produtividade avance.
O trabalhador brasileiro dedica 150 dias de trabalho do ano apenas para pagar impostos, calculou-se na semana passada. E, mesmo assim, diligentemente ele vai ao trabalho nesta corrida diária de obstáculos. A piora da mobilidade urbana tira horas e forças dos trabalhadores nas empresas e, pior, tempo de convívio com a família. A verdade sobre os brasileiros é que trabalhamos muito, a despeito das dificuldades criadas pela falta de investimento na limpeza do caminho que nos leva e traz do trabalho e escoa mercadorias.
A ideia da abundância da natureza tornando os índios indolentes ignora questões elementares. É difícil viver da floresta, preservando-a. Não é fácil acordar a cada dia e buscar alimentos que não estão disponíveis numa prateleira de supermercado, têm que ser extraídos, preparados, caçados, pescados, mantendo-se o delicado equilíbrio de uma floresta. Sobre o clima ameno que dispensava roupa, seria bom contar aos desavisados que dentro de uma floresta tropical a temperatura cai fortemente à noite. Não é fácil a tarefa de se adaptar a essas oscilações fortes.
O ócio criativo contém uma ideia melhor do que Domenico de Masi sugere ao explicar o Brasil e sua suposta negação do “produtivismo” e eficiência. Como “produtivismo”, ele explica que vem da influência ruim dos americanos. No mundo globalizado, todos temos que ser eficientes e não há nada de errado nisso, nem o conceito pertence a um país.
Já fomos vítimas das simplificações grosseiras do pensamento etnocêntrico estrangeiro várias vezes. Mas, numa semana em que o Brasil exausto lutava para trabalhar, para elevar sua produtividade, contra todos os obstáculos criados pela conjuntura e por problemas de infraestrutura, foi pior. Temos qualidades a serem ressaltadas por quem nos olha com visão amiga, mas a indolência não é elogio, é ofensa. Que o simpático italiano se aprofunde mais em nos entender. Ele encontrará o que elogiar.
A notícia começou a correr de boca em boca no meio da tarde de terça-feira. A cidade iria parar. Não uma cidade qualquer, mas a maior do Brasil, a que costuma medir seus engarrafamentos por quilômetros que parecem sempre cada vez mais esticados. Os trabalhadores voltaram para casa com dificuldade. No dia seguinte, amanheceram mais cedo para a luta de chegar ao trabalho.
Com o relato dessas cenas, expostas nos noticiários de TV, rádio, jornal, blogs e sites, é que li a entrevista do sociólogo Domenico De Masi, comemorando, mais uma vez, em seu novo livro, a suposta indolência brasileira. Segundo ele, graças aos índios, o ideal da eficiência e do produtivismo não pegou o Brasil. “Os índios não trabalhavam. Não era necessário. Tudo estava na natureza. Não precisavam nem se vestir porque o clima era bom. O brasileiro herdou do índio esse senso de ócio.”
É difícil encontrar visão mais superficial e estereótipo mais antigo sobre o Brasil, em geral; os índios, em particular. Se ele queria nos elogiar, escorregou para um lugar comum distante da realidade em todas as áreas.
Naquela quarta-feira, milhões de trabalhadores tentariam superar o quase insuperável obstáculo de uma cidade enorme com uma greve de ônibus para ir ao trabalho. Há quem tenha andado quilômetros, mesmo sem saber se ao fim do dia conseguiria voltar. Aconteceu o mesmo dias antes no Rio, com a vantagem que a greve foi anunciada no fim de um dia para começar no outro, e as pessoas puderam se organizar.
Domenico De Masi é simpático, bonachão, diz gostar muito do Brasil e tem boas ideias sobre abrir espaço no cotidiano para a criatividade e o prazer, mas ele tem errado na avaliação do que somos nós. Às vezes, até parece que o sociólogo italiano tem razão quando vemos a comparação dos índices de produtividade do Brasil comparado a outros países. Eles estão baixos e em queda. Somos reprovados em qualquer ranking feitos pelas várias entidades que se dispõem a comparar a produtividade no mundo.
O problema não é que o trabalhador brasileiro não queira ser produtivo, é que ele enfrenta barreiras demais. Não é por falta de empenho do trabalho, mas sim pelos enormes e conhecidos obstáculos que existem para que a economia seja mais produtiva. Governo após governo, especialistas apontam o dedo para a infraestrutura deficiente, a logística irracional, o excesso de burocracia, os impostos muitos e complexos, as dificuldades criadas pelo Estado que impedem que a produtividade avance.
O trabalhador brasileiro dedica 150 dias de trabalho do ano apenas para pagar impostos, calculou-se na semana passada. E, mesmo assim, diligentemente ele vai ao trabalho nesta corrida diária de obstáculos. A piora da mobilidade urbana tira horas e forças dos trabalhadores nas empresas e, pior, tempo de convívio com a família. A verdade sobre os brasileiros é que trabalhamos muito, a despeito das dificuldades criadas pela falta de investimento na limpeza do caminho que nos leva e traz do trabalho e escoa mercadorias.
A ideia da abundância da natureza tornando os índios indolentes ignora questões elementares. É difícil viver da floresta, preservando-a. Não é fácil acordar a cada dia e buscar alimentos que não estão disponíveis numa prateleira de supermercado, têm que ser extraídos, preparados, caçados, pescados, mantendo-se o delicado equilíbrio de uma floresta. Sobre o clima ameno que dispensava roupa, seria bom contar aos desavisados que dentro de uma floresta tropical a temperatura cai fortemente à noite. Não é fácil a tarefa de se adaptar a essas oscilações fortes.
O ócio criativo contém uma ideia melhor do que Domenico de Masi sugere ao explicar o Brasil e sua suposta negação do “produtivismo” e eficiência. Como “produtivismo”, ele explica que vem da influência ruim dos americanos. No mundo globalizado, todos temos que ser eficientes e não há nada de errado nisso, nem o conceito pertence a um país.
Já fomos vítimas das simplificações grosseiras do pensamento etnocêntrico estrangeiro várias vezes. Mas, numa semana em que o Brasil exausto lutava para trabalhar, para elevar sua produtividade, contra todos os obstáculos criados pela conjuntura e por problemas de infraestrutura, foi pior. Temos qualidades a serem ressaltadas por quem nos olha com visão amiga, mas a indolência não é elogio, é ofensa. Que o simpático italiano se aprofunde mais em nos entender. Ele encontrará o que elogiar.
O econômico e o social nas eleições - SUELY CALDAS
O Estado de S.Paulo - 25/05
Os candidatos intensificaram a presença na TV, a fria campanha eleitoral amornou e as pesquisas de voto seguem clareando o cenário da disputa. Entraram em cena os marqueteiros e, com eles, o vale-tudo para exaltar seu candidato e destruir adversários. Como fez o programa de propaganda do PT com os motes "o Brasil não quer voltar atrás" e "os fantasmas do passado" - fantasmas que acabaram com a inflação, fizeram o Plano Real e deram início à prosperidade econômica e social do País dos últimos 20 anos. O que têm na cartola Dilma Rousseff, Aécio Neves e Eduardo Campos para exibirem aos eleitores na TV?
O mau desempenho da economia na gestão Dilma é o maior trunfo dos dois candidatos de oposição. Dilma errou ao adiar as privatizações e quando acordou errou nas regras de licitação; o investimento em infraestrutura - tardio e atrapalhado - levou a taxas medíocres de crescimento; a inflação voltou; o setor externo da economia deteriorou; a falta de confiança fez investidores baterem em retirada; a equipe econômica destruiu a seriedade nas contas públicas; Petrobrás e Eletrobrás viraram apêndices de políticas do governo, seu valor de mercado despenca e voltaram a dar prejuízo. Enfim, a lista de fracassos é grande e certamente será explorada por Aécio e Eduardo.
Os avanços na área social são o maior trunfo de Dilma. Ela deu continuidade às políticas sociais de Lula voltadas para atender às necessidades essenciais dos mais pobres e conseguiu êxito em algumas, como o Bolsa Família (o Bolsa Escola do fantasma FHC), ampliado por Lula, reforçado por ela, hoje com um orçamento de R$ 24,6 bilhões e 13 milhões de famílias atendidas. A taxa de desemprego em 4,9% numa conjuntura de baixíssimo crescimento é outro destaque, embora venha perdendo força na indústria, onde foram eliminados 69 mil postos de trabalho só entre março e abril passados.
Mas o próximo presidente precisa corrigir distorções em muitos programas sociais, e o Seguro-Desemprego é um deles. Como não há fiscalização nem transparência na aplicação do dinheiro, os gastos para pagar supostos desempregados explodiram, contrariando a conjuntura de emprego em alta e desemprego em baixa, o que levou Dilma a injetar mais R$ 4,9 bilhões no programa em 2013. Ainda na área do trabalho, há enorme desleixo em relação à qualificação do trabalhador. Dinheiro não falta, o que falta é fiscalização, gestão eficiente e cobrança de resultados. Além de bilhões de reais (o governo gosta de divulgar a cifra) repassados ao Sistema S (Sesc, Senac, Sesi, etc.), outra bolada de dinheiro é despejada nos sindicatos para qualificação profissional. E o Brasil fracassa, perde feio em produtividade no trabalho: em 2013 perdeu oito posições e ocupou o 56.º lugar no ranking do Fórum Econômico Mundial. Ou seja, oito países passaram à frente e o Brasil foi empurrado para trás. Afinal, o que esperar de um país onde, na média, o trabalhador levou 20 anos para avançar do estágio de 5,7 para apenas 8,8 anos de estudo?
Na TV o marqueteiro até pode pegar cenas dos melhores momentos, mas a candidata do PT tem pouco a dizer em saúde e educação, justo duas áreas-chave para uma política social bem-sucedida. Com exceção de alguns programas de inclusão social em universidades, a qualidade do ensino não melhorou e o analfabetismo funcional ampliou, sobretudo no ensino fundamental. A demora por uma consulta ou cirurgia, o desaparelhamento de hospitais, a escassez de médicos e postos de atendimento desenham um cotidiano sofrido para a população que precisa de saúde pública e que o programa Mais Médicos não conseguiu aliviar.
Mas o grande trunfo que Dilma vai explorar é a ascensão de 35 milhões de pobres que migraram para a classe média. Embora seja questionável o critério para classificar a classe média (o governo inclui quem tem renda per capita entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00/mês), a ascensão é um fato real. Esses emergentes vivem com a corda no pescoço, endividam-se, mas passaram a ter acesso a computador, a telefone, a eletrodomésticos, dão impulso e movimentam a economia.
Os candidatos intensificaram a presença na TV, a fria campanha eleitoral amornou e as pesquisas de voto seguem clareando o cenário da disputa. Entraram em cena os marqueteiros e, com eles, o vale-tudo para exaltar seu candidato e destruir adversários. Como fez o programa de propaganda do PT com os motes "o Brasil não quer voltar atrás" e "os fantasmas do passado" - fantasmas que acabaram com a inflação, fizeram o Plano Real e deram início à prosperidade econômica e social do País dos últimos 20 anos. O que têm na cartola Dilma Rousseff, Aécio Neves e Eduardo Campos para exibirem aos eleitores na TV?
O mau desempenho da economia na gestão Dilma é o maior trunfo dos dois candidatos de oposição. Dilma errou ao adiar as privatizações e quando acordou errou nas regras de licitação; o investimento em infraestrutura - tardio e atrapalhado - levou a taxas medíocres de crescimento; a inflação voltou; o setor externo da economia deteriorou; a falta de confiança fez investidores baterem em retirada; a equipe econômica destruiu a seriedade nas contas públicas; Petrobrás e Eletrobrás viraram apêndices de políticas do governo, seu valor de mercado despenca e voltaram a dar prejuízo. Enfim, a lista de fracassos é grande e certamente será explorada por Aécio e Eduardo.
Os avanços na área social são o maior trunfo de Dilma. Ela deu continuidade às políticas sociais de Lula voltadas para atender às necessidades essenciais dos mais pobres e conseguiu êxito em algumas, como o Bolsa Família (o Bolsa Escola do fantasma FHC), ampliado por Lula, reforçado por ela, hoje com um orçamento de R$ 24,6 bilhões e 13 milhões de famílias atendidas. A taxa de desemprego em 4,9% numa conjuntura de baixíssimo crescimento é outro destaque, embora venha perdendo força na indústria, onde foram eliminados 69 mil postos de trabalho só entre março e abril passados.
Mas o próximo presidente precisa corrigir distorções em muitos programas sociais, e o Seguro-Desemprego é um deles. Como não há fiscalização nem transparência na aplicação do dinheiro, os gastos para pagar supostos desempregados explodiram, contrariando a conjuntura de emprego em alta e desemprego em baixa, o que levou Dilma a injetar mais R$ 4,9 bilhões no programa em 2013. Ainda na área do trabalho, há enorme desleixo em relação à qualificação do trabalhador. Dinheiro não falta, o que falta é fiscalização, gestão eficiente e cobrança de resultados. Além de bilhões de reais (o governo gosta de divulgar a cifra) repassados ao Sistema S (Sesc, Senac, Sesi, etc.), outra bolada de dinheiro é despejada nos sindicatos para qualificação profissional. E o Brasil fracassa, perde feio em produtividade no trabalho: em 2013 perdeu oito posições e ocupou o 56.º lugar no ranking do Fórum Econômico Mundial. Ou seja, oito países passaram à frente e o Brasil foi empurrado para trás. Afinal, o que esperar de um país onde, na média, o trabalhador levou 20 anos para avançar do estágio de 5,7 para apenas 8,8 anos de estudo?
Na TV o marqueteiro até pode pegar cenas dos melhores momentos, mas a candidata do PT tem pouco a dizer em saúde e educação, justo duas áreas-chave para uma política social bem-sucedida. Com exceção de alguns programas de inclusão social em universidades, a qualidade do ensino não melhorou e o analfabetismo funcional ampliou, sobretudo no ensino fundamental. A demora por uma consulta ou cirurgia, o desaparelhamento de hospitais, a escassez de médicos e postos de atendimento desenham um cotidiano sofrido para a população que precisa de saúde pública e que o programa Mais Médicos não conseguiu aliviar.
Mas o grande trunfo que Dilma vai explorar é a ascensão de 35 milhões de pobres que migraram para a classe média. Embora seja questionável o critério para classificar a classe média (o governo inclui quem tem renda per capita entre R$ 291,00 e R$ 1.019,00/mês), a ascensão é um fato real. Esses emergentes vivem com a corda no pescoço, endividam-se, mas passaram a ter acesso a computador, a telefone, a eletrodomésticos, dão impulso e movimentam a economia.
Acabou o gás - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 25/05
Situação de salário, emprego, crédito, gasto público e confiança aponta quase estagnação
A ECONOMIA BRASILEIRA parece perder o resto do gás que ainda sobrava. Nos últimos seis meses, o combustível dá indícios de se exaurir, seja qual for o tanque que se meça.
A história de que o país "não ia tão bem como se imaginava (faz quatro anos) nem vai tão mal agora" é uma conversa mole que em nada ajuda a pensar o que seja lá esteja acontecendo. O palavrório sobre o país "explodir" ou "bombar" daqui até o ano que vem, mais do que conversa fiada, é bobagem politiqueira muito vulgar.
Nos últimos seis meses, a economia parece estacionar num patamar até alto, pelos padrões de vida históricos e pelo baixo nível de produtividade do país. Mas estaciona. Difícil imaginar de onde possa vir um impulso que faça a carruagem andar, tão cedo.
Os salários ainda davam algum alento. Não mais, pelo menos por ora. O salário médio está mais ou menos na mesma desde novembro do ano passado. A massa salarial, o total dos salários pagos, praticamente estagnou desde o início do ano. Aliás, nos últimos seis meses cresce ao menor ritmo em cerca de 10 anos (dados anualizados).
O crédito fora um aditivo para o consumo, em particular no tombo de crescimento entre 2008 e 2009, devido ao contágio da crise mundial. Mas perde ritmo desde então.
O total de dinheiro emprestado crescia na casa dos 25% ao ano em 2008 (em termos reais), passou para algo em torno de 13% entre 2009 e 2011, para 12% em 2011 e desceu até o ritmo de 8,7% de agora. O impulso restante vinha dos empréstimos dos bancos estatais, alimentados de dinheiro extra pelo governo, que fazia dívida para anabolizar seus bancos. Esse dinheiro também está minguando.
Os aumentos do salário mínimo eram outro impulso que minguou, pois vinculados ao crescimento da economia, inferior a 2% ao ano sob Dilma Rousseff. O aumento da despesa do governo é contido pela arrecadação de impostos menor, em parte devida também ao crescimento menor do PIB.
O governo vem "compensando" o aumento menor da receita com redução de sua poupança, desde 2012. Isto é, fazendo mais dívida, o que no entanto ajuda a chutar para cima a taxa de juros, o que emperra a economia por outro lado.
A falta de gás aparece até nas vendas do comércio, que no primeiro trimestre cresceram só 0,3% sobre o trimestre anterior, o segundo pior resultado desde a queda de vendas no final do ano crítico de 2008.
Os efeitos piores da campanha de aumento da taxa de juros pelo Banco Central ainda estão pela frente, segundo os economistas. Mesmo que sobrevenha uma melhoria da atividade econômica mundial, o efeito sobre a economia doméstica será desprezível. A confiança de empresários e consumidores está no nível de 2009, ano ruim, e caindo.
Massa de salários, número de empregados, crédito, gasto público, confiança: nada disso está em alta ou pelo menos desacelera. Dada a nossa história, o país até que não vai mal, em termos de "economia do povo", no cotidiano. Mas o país não vai mais, ao menos por ora.
Ao final dos anos Dilma, o PIB per capita terá crescido 1% ao ano, pelos dados disponíveis hoje. Um ritmo no qual dobraríamos o nosso padrão de vida médio em 70 anos.
Situação de salário, emprego, crédito, gasto público e confiança aponta quase estagnação
A ECONOMIA BRASILEIRA parece perder o resto do gás que ainda sobrava. Nos últimos seis meses, o combustível dá indícios de se exaurir, seja qual for o tanque que se meça.
A história de que o país "não ia tão bem como se imaginava (faz quatro anos) nem vai tão mal agora" é uma conversa mole que em nada ajuda a pensar o que seja lá esteja acontecendo. O palavrório sobre o país "explodir" ou "bombar" daqui até o ano que vem, mais do que conversa fiada, é bobagem politiqueira muito vulgar.
Nos últimos seis meses, a economia parece estacionar num patamar até alto, pelos padrões de vida históricos e pelo baixo nível de produtividade do país. Mas estaciona. Difícil imaginar de onde possa vir um impulso que faça a carruagem andar, tão cedo.
Os salários ainda davam algum alento. Não mais, pelo menos por ora. O salário médio está mais ou menos na mesma desde novembro do ano passado. A massa salarial, o total dos salários pagos, praticamente estagnou desde o início do ano. Aliás, nos últimos seis meses cresce ao menor ritmo em cerca de 10 anos (dados anualizados).
O crédito fora um aditivo para o consumo, em particular no tombo de crescimento entre 2008 e 2009, devido ao contágio da crise mundial. Mas perde ritmo desde então.
O total de dinheiro emprestado crescia na casa dos 25% ao ano em 2008 (em termos reais), passou para algo em torno de 13% entre 2009 e 2011, para 12% em 2011 e desceu até o ritmo de 8,7% de agora. O impulso restante vinha dos empréstimos dos bancos estatais, alimentados de dinheiro extra pelo governo, que fazia dívida para anabolizar seus bancos. Esse dinheiro também está minguando.
Os aumentos do salário mínimo eram outro impulso que minguou, pois vinculados ao crescimento da economia, inferior a 2% ao ano sob Dilma Rousseff. O aumento da despesa do governo é contido pela arrecadação de impostos menor, em parte devida também ao crescimento menor do PIB.
O governo vem "compensando" o aumento menor da receita com redução de sua poupança, desde 2012. Isto é, fazendo mais dívida, o que no entanto ajuda a chutar para cima a taxa de juros, o que emperra a economia por outro lado.
A falta de gás aparece até nas vendas do comércio, que no primeiro trimestre cresceram só 0,3% sobre o trimestre anterior, o segundo pior resultado desde a queda de vendas no final do ano crítico de 2008.
Os efeitos piores da campanha de aumento da taxa de juros pelo Banco Central ainda estão pela frente, segundo os economistas. Mesmo que sobrevenha uma melhoria da atividade econômica mundial, o efeito sobre a economia doméstica será desprezível. A confiança de empresários e consumidores está no nível de 2009, ano ruim, e caindo.
Massa de salários, número de empregados, crédito, gasto público, confiança: nada disso está em alta ou pelo menos desacelera. Dada a nossa história, o país até que não vai mal, em termos de "economia do povo", no cotidiano. Mas o país não vai mais, ao menos por ora.
Ao final dos anos Dilma, o PIB per capita terá crescido 1% ao ano, pelos dados disponíveis hoje. Um ritmo no qual dobraríamos o nosso padrão de vida médio em 70 anos.
O governo da anarquia - SACHA CALMON
CORREIO BRAZILIENSE - 25/05
Em conferência em Salvador, Clóvis Torres, jovem e talentoso advogado, estampou uma citação da Ayn Rand: "Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada". O Brasil agora é o exemplo mais completo de frase de Ayn Rand, bem perto do que os gregos mais temiam, a anomia (ausência de aplicação da lei) a abulia (falta de vontade) e da anarquia (ausência de governo).
O povo está descrente. Primeiro, houve a falência do Estado, como agente da ordem e da lei. Traficantes e quadrilhas despacham armas, narcóticos e contrabandos tranquilamente pelas fronteiras terrestres e nos portos brasileiros, desde Belém até Paranaguá. Não temos guarda-marinha. As fronteiras continuam terra de ninguém. A violência tomou conta do país e assola tanto o rico como o pobre, o nacional e o estrangeiro.
Em paralelo, houve a falência do governo, infestado de corruptos e corruptores. Nove ministros foram tirados. Houve o mensalão. Não há como desmerecer o ministro Joaquim Barbosa e a Corte indicada por Lula. Os escândalos na Petrobras deixam a nação estarrecida; 39 ministérios e 33 partidos tornam o pais ingovernável.
Finalmente, há a falência da gestão da casa pública. O Brasil detinha o 11º lugar como país da energia mais cara no início do mandato de Dilma Rousseff. Agora está em 4º lugar, após a derrapada da Medida Provisória nº 579. Dizem que, em 2015, alcançaremos o pódio nesse item. No atual governo, a Petrobras viu suas ações perderem dois terços de valor na Bolsa. No entanto, para se reeleger a presidente segura os reajustes dos preços dos combustíveis. Quando forem soltos, a Petrobras estará descapitalizada e a inflação dará um salto, pois tudo é movido a petróleo, gasolina e diesel.
Está na ordem do dia no Congresso a compra superfaturada da refinaria de Pasadena, nos EUA, mas ela não é nada diante dos cambalachos da refinaria de Pernambuco. A Petrobras deu carta branca para que seu ex-diretor da área de abastecimento Paulo Roberto Costa negociasse a contratação de fornecedores e aditivos para as obras da Refinaria Abreu e Lima e tomasse decisões sem submetê-las ao conselho de administração ou à diretoria da estatal. Essa liberdade, apurou o Valor, significou a aprovação de mais de R$ 6,5 bilhões em contratos e aditivos para a refinaria.
Os fatos começaram com Lula, mas se deram até 2012, já no governo de Dilma. O distanciamento que a alta cúpula da Petrobras mantinha das decisões do conselho da refinaria ficou claro no depoimento do ex-presidente da estatal José Sergio Gabrielli à CPI da Petrobras. Ele minimizou o fato de o conselho ter assinado mais de 150 aditivos. "Não é tanto aditivo. Sabem quantos contratos tem a Refinaria Abreu Lima? 260." É o fim da picada. O estouro do orçamento da construção da Refinaria Abreu e Lima e os indícios de que o negócio fracassaria não impediram que os seus administradores dessem aumento "milionário" para o teto de seus próprios salários no período de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, que estava preso e acaba de ser solto pelo ministro Teori Zavascki, embora não tenha ele fôro privilegiado por prerrogativa de função. Os demais detidos continuam presos.
A Abreu e Lima se transformou na obra mais cara do Brasil, entre todas do PAC. A presidente da Petrobras, Graça Foster, reconheceu que a companhia cometeu erros na execução das obras da refinaria: "Temos um custo mais alto no custo da refinaria (SIC). Tivemos diversos erros e acertos". A piada são os "acertos". Quais?
Os mais pobres estão cansados da corrupção governamental, das filas no SUS, de gastar três horas para ir e voltar do trabalho, da carestia crescente, da falta de educação, da insegurança de suas vidas, da bagunça generalizada, das ricas obras da Copa. Não há retórica nem marqueteiro que dê jeito nessa situação.
Dias piores virão, após as eleições, seja lá quem for o eleito. No entanto, a má situação atual é o resultado de 12 anos de governo do PT, sem falar na deterioração da infraestrutura do país.
Mas o pior é aterrorizar o povo dizendo que as conquistas do PT, leia-se Bolsa Família, serão desfeitas pela oposição. A tática é meter medo nos miseráveis. Isso é lá partido que se deva prezar, numa democracia madura? Eles temem, em verdade, é a apuração de 12 anos de malfeitos na hipótese de perderem a eleição, algo a que devemos dar a devida atenção.
A classe C, do paraíso ao inferno - GAUDÊNCIO TORQUATO
O Estado de S.Paulo - 25/05
Mais uma pista a indicar o andar da carruagem. Parcela da população brasileira é arrastada para cima e para baixo da pirâmide social pelas ondas de marés enchentes e marés vazantes. A primeira carrega as pessoas da classe C, a chamada nova classe média, para um passeio pelos territórios do grupo B, às vezes com direito a uma escapulida (rápida) ao topo, onde habita a categoria A. Quem propicia a subida é grana extra. A segunda empurra o contingente para as águas do fundo. Isso se dá quando a renda das famílias fica apenas no parco rendimento de aposentadoria, pensão ou bolsas, sem os ganhos com bicos e atividades paralelas. No sufoco do bolso apertado, quem foi induzido a consumir e se vê sem condição de ressarcir despesas passa a usar de maneira indiscriminada cartões de crédito e a resvalar pela inadimplência.
Tal radiografia, flagrada por pesquisa encomendada pelo Consultative Group to Assist the Poor, organismo ligado ao Banco Mundial, e exposta neste jornal (18/5), pode explicar fenômenos que estão a ocorrer no País a partir de manifestações de movimentos organizados e categorias profissionais.
Ponderável parcela da classe média que muda de condição, muitas vezes de um mês para outro, acaba ingressando no perigoso meio-fio da instabilidade, tornando-se ela própria um dos eixos a mover a engrenagem da insatisfação social. A expressão desolada de um microempreendedor sobre seus ganhos mensais arremata a situação que abriga milhões de brasileiros: "Ganho algo entre nada e R$ 5 mil; não dá para adivinhar quando e quanto vai entrar".
A insegurança que grassa por classes, espaços, setores e profissões tem-se avolumado nos últimos meses, apesar de a taxa de desemprego se manter estável (em torno de 5% em março nas cinco maiores regiões metropolitanas). A questão é a baixa qualidade do emprego, que leva muitos a buscar outros meios de sobrevivência. Ademais, o cobertor social tem sido curto para cobrir novas demandas. A precária estrutura de serviços não tem recebido do Estado alavancagem para oferecer bom atendimento ao povo. Portanto, por causa do estranho fenômeno que aqui se forma - uma classe C mutante que tateia na escuridão entre as portas do céu e do inferno, passando pelo limbo - as pessoas decidiram abrir a locução sob propícia temperatura ambiental.
As políticas sociais do governo, é oportuno lembrar, abriram buracos. A decisão de implantar gigantesco programa de distribuição de renda - elogiável, porquanto se vive, hoje, o menor nível de desigualdade de nossa História - não tem sido acompanhada de uma política educacional estruturante, capaz de elevar o grau civilizatório de milhões de pessoas que ascenderam na vida. Basta avaliar a estratégia de indução ao consumo, adotada pelo governo brasileiro para enfrentar a crise por que passaram as economias mundiais, a partir de 2008. Ouçam-se especialistas, dentre eles Celso Amâncio, ex-diretor da Casas Bahia (Estado, 18/5): "O governo incentivou o consumo, mas crédito é uma coisa e poder de compra é outro". Quer dizer, o banco até oferece crédito, mas os novos consumidores não dispõem de educação financeira. Acabam usando e abusando de cartões de crédito, um pagando o outro.
O governo forjou, de um lado, o populismo econômico para abrir as portas do consumo aos grupos emergentes, mas, por outro, deixou de lhes oferecer ferramentas (e valores) que balizam comportamentos da classe média tradicional. A cesta de compra dos emergentes inchou: TV por assinatura, internet, plano de saúde, escola privada para os filhos, moto ou carro novo. A ignorância em matéria financeira acabou estourando o bolso de tantos quantos achavam ter encontrado o Eldorado.
Sob essa engenharia se pode compreender o movimento das "placas tectônicas" que causam sismos nas camadas do centro da pirâmide. Como se recorda, o losango tem sido apresentado como o formato do novo Brasil: de topo mais espaçado, alargamento do meio e estreitamento da base. Acontece que o saracoteio da classe C - que ora dança na pista do meio, ora na de baixo - não permite apostar na substituição definitiva da pirâmide pelo losango. O que se vê na configuração é um redemoinho nas camadas centrais, a denotar insatisfação e impactos que afetam a vida de milhões, principalmente os habitantes de grandes cidades, cuja rotina sofre com congestionamentos, mobilizações, greves e paralisações de frentes de serviços públicos.
É verdade que parte considerável da tensão urbana se deve ao momento especial do País: vésperas de Copa do Mundo e de campanha eleitoral. A estratégia de sensibilização do poder e de atores políticos ganha fôlego. Mas é inegável que há uma força centrípeta em ação, aqui mais forte e organizada, ali mais tênue e dispersa, dando a impressão de que o gigante "deitado eternamente em berço esplêndido" faz parte da retórica do passado. A dissonância forma-se em nossa mente quando somos levados a cantar (sem interpretar os versos) nosso belo Hino Nacional.
Remanesce a questão: para onde as altas e baixas marés carregarão a classe C (que soma 64 milhões de pessoas) e, ainda, que consequências serão sentidas em outros conjuntos? A hipótese mais provável é que, a continuar o vaivém dos grupos emergentes, os sismos continuarão a balançar o losango e este voltará a dar lugar à velha pirâmide. As conquistas obtidas com os avanços dos programas de distribuição de renda estariam comprometidas. Reflexos (pressões, contrapressões, conflitos, demandas) aparecerão na malha de toda a classe média (cerca de 100 milhões de brasileiros). As marolas geradas por impactos no meio da lagoa acabarão chegando às margens.
Em suma, enquanto as famílias de classe média se mantiverem "enforcadas", o nó apertará o gogó de outros habitantes da pirâmide. O Brasil terá de voltar a crescer, de maneira forte e sadia, sem usar o esparadrapo de paliativos sociais.
Mais uma pista a indicar o andar da carruagem. Parcela da população brasileira é arrastada para cima e para baixo da pirâmide social pelas ondas de marés enchentes e marés vazantes. A primeira carrega as pessoas da classe C, a chamada nova classe média, para um passeio pelos territórios do grupo B, às vezes com direito a uma escapulida (rápida) ao topo, onde habita a categoria A. Quem propicia a subida é grana extra. A segunda empurra o contingente para as águas do fundo. Isso se dá quando a renda das famílias fica apenas no parco rendimento de aposentadoria, pensão ou bolsas, sem os ganhos com bicos e atividades paralelas. No sufoco do bolso apertado, quem foi induzido a consumir e se vê sem condição de ressarcir despesas passa a usar de maneira indiscriminada cartões de crédito e a resvalar pela inadimplência.
Tal radiografia, flagrada por pesquisa encomendada pelo Consultative Group to Assist the Poor, organismo ligado ao Banco Mundial, e exposta neste jornal (18/5), pode explicar fenômenos que estão a ocorrer no País a partir de manifestações de movimentos organizados e categorias profissionais.
Ponderável parcela da classe média que muda de condição, muitas vezes de um mês para outro, acaba ingressando no perigoso meio-fio da instabilidade, tornando-se ela própria um dos eixos a mover a engrenagem da insatisfação social. A expressão desolada de um microempreendedor sobre seus ganhos mensais arremata a situação que abriga milhões de brasileiros: "Ganho algo entre nada e R$ 5 mil; não dá para adivinhar quando e quanto vai entrar".
A insegurança que grassa por classes, espaços, setores e profissões tem-se avolumado nos últimos meses, apesar de a taxa de desemprego se manter estável (em torno de 5% em março nas cinco maiores regiões metropolitanas). A questão é a baixa qualidade do emprego, que leva muitos a buscar outros meios de sobrevivência. Ademais, o cobertor social tem sido curto para cobrir novas demandas. A precária estrutura de serviços não tem recebido do Estado alavancagem para oferecer bom atendimento ao povo. Portanto, por causa do estranho fenômeno que aqui se forma - uma classe C mutante que tateia na escuridão entre as portas do céu e do inferno, passando pelo limbo - as pessoas decidiram abrir a locução sob propícia temperatura ambiental.
As políticas sociais do governo, é oportuno lembrar, abriram buracos. A decisão de implantar gigantesco programa de distribuição de renda - elogiável, porquanto se vive, hoje, o menor nível de desigualdade de nossa História - não tem sido acompanhada de uma política educacional estruturante, capaz de elevar o grau civilizatório de milhões de pessoas que ascenderam na vida. Basta avaliar a estratégia de indução ao consumo, adotada pelo governo brasileiro para enfrentar a crise por que passaram as economias mundiais, a partir de 2008. Ouçam-se especialistas, dentre eles Celso Amâncio, ex-diretor da Casas Bahia (Estado, 18/5): "O governo incentivou o consumo, mas crédito é uma coisa e poder de compra é outro". Quer dizer, o banco até oferece crédito, mas os novos consumidores não dispõem de educação financeira. Acabam usando e abusando de cartões de crédito, um pagando o outro.
O governo forjou, de um lado, o populismo econômico para abrir as portas do consumo aos grupos emergentes, mas, por outro, deixou de lhes oferecer ferramentas (e valores) que balizam comportamentos da classe média tradicional. A cesta de compra dos emergentes inchou: TV por assinatura, internet, plano de saúde, escola privada para os filhos, moto ou carro novo. A ignorância em matéria financeira acabou estourando o bolso de tantos quantos achavam ter encontrado o Eldorado.
Sob essa engenharia se pode compreender o movimento das "placas tectônicas" que causam sismos nas camadas do centro da pirâmide. Como se recorda, o losango tem sido apresentado como o formato do novo Brasil: de topo mais espaçado, alargamento do meio e estreitamento da base. Acontece que o saracoteio da classe C - que ora dança na pista do meio, ora na de baixo - não permite apostar na substituição definitiva da pirâmide pelo losango. O que se vê na configuração é um redemoinho nas camadas centrais, a denotar insatisfação e impactos que afetam a vida de milhões, principalmente os habitantes de grandes cidades, cuja rotina sofre com congestionamentos, mobilizações, greves e paralisações de frentes de serviços públicos.
É verdade que parte considerável da tensão urbana se deve ao momento especial do País: vésperas de Copa do Mundo e de campanha eleitoral. A estratégia de sensibilização do poder e de atores políticos ganha fôlego. Mas é inegável que há uma força centrípeta em ação, aqui mais forte e organizada, ali mais tênue e dispersa, dando a impressão de que o gigante "deitado eternamente em berço esplêndido" faz parte da retórica do passado. A dissonância forma-se em nossa mente quando somos levados a cantar (sem interpretar os versos) nosso belo Hino Nacional.
Remanesce a questão: para onde as altas e baixas marés carregarão a classe C (que soma 64 milhões de pessoas) e, ainda, que consequências serão sentidas em outros conjuntos? A hipótese mais provável é que, a continuar o vaivém dos grupos emergentes, os sismos continuarão a balançar o losango e este voltará a dar lugar à velha pirâmide. As conquistas obtidas com os avanços dos programas de distribuição de renda estariam comprometidas. Reflexos (pressões, contrapressões, conflitos, demandas) aparecerão na malha de toda a classe média (cerca de 100 milhões de brasileiros). As marolas geradas por impactos no meio da lagoa acabarão chegando às margens.
Em suma, enquanto as famílias de classe média se mantiverem "enforcadas", o nó apertará o gogó de outros habitantes da pirâmide. O Brasil terá de voltar a crescer, de maneira forte e sadia, sem usar o esparadrapo de paliativos sociais.
Caminhos da oposição - MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 25/05
A disrupção do acordo entre os dois principais candidatos oposicionistas abre um novo quadro na campanha eleitoral, com viés de beneficiar a permanência no poder da presidente Dilma. Mas parece inevitável que o PSB marque um distanciamento crítico do PSDB para se tornar uma alternativa real à polarização entre petistas e tucanos.
Obrigado por seu acordo político com o grupo da ex-senadora Marina Silva a rever a estratégia que havia montado no início da campanha, o ex-governador Eduardo Campos vem endurecendo seu discurso também contra o antigo parceiro Aécio Neves, na esperança de se tornar uma escolha palatável ao eleitor petista que está descrente com a atuação de Dilma ou insatisfeito com os rumos que o partido vem tomando.
Campos, com mais propriedade, pois fez parte do grupo lulista até pouco tempo, estaria repetindo a tentativa de Serra em 2010 de se apresentar como uma alternativa a Dilma contra a qual Lula nada teria. Corre menos risco de ser desautorizado por Lula de público, mas é possível que isso ocorra. Na tentativa de preservar um acordo para o segundo turno, é possível que Lula poupe Campos de sua língua ferina.
Embora não tenha uma performance boa nas pesquisas até o momento, Campos conta com o voto útil a seu favor dos petistas que temem mais a vitória do PSDB do que a derrota de Dilma para ele, aí incluído até mesmo Lula. Essa mudança na campanha de Campos tem, porém, diversos obstáculos para ser bem-sucedida, a começar pelo governo de São Paulo, uma das pedras-chave desta disputa.
Abandonando a coligação do governador Geraldo Alckmin, da qual fazia parte há muito, Campos deixará o palanque do PSDB livre para o senador Aécio Neves no maior colégio eleitoral do país, enquanto terá um palanque improvisado e fraco. Foi convencido por Marina de que o desgaste do PSDB depois de 20 anos no poder favorece uma candidatura alternativa.
Em Minas, acontecerá o contrário, pois, ao romper com Aécio em seu território, abrirá mão de compartilhar com ele a provável vitória no segundo maior colégio eleitoral do país. A contrapartida do rompimento em Pernambuco não será tão dolorosa para os tucanos, já que o eleitorado do estado não é dos maiores.
O senador Aécio Neves considera que a atitude de radicalizar a campanha também contra o PSDB é um sinal de desespero do PSB diante do fraco desempenho nas pesquisas. Mas, mesmo os do PSB e da Rede favoráveis a um acordo no segundo turno entre os dois acham que, no momento, é mais positivo para Campos se distanciar de Aécio e tentar uma marca própria para a campanha.
Sobre o assunto, gravei um vídeo para O Globo a Mais, semana passada, onde analisava a nova fase da campanha eleitoral, delicada para os candidatos de oposição, que, juntos, já mostram força para levar a eleição para o segundo turno, mas, separados, ainda não têm condições de vencer a presidente Dilma Rousseff.
Só destruirá as pontes construídas até o momento aquele candidato que se considerar em condições de aglutinar em torno de um projeto político próprio a maioria dos eleitores que querem mudanças; somente Marina Silva teria esse perfil, se fosse a candidata.
Mas ela está levando o ex-governador Eduardo Campos a experimentar esse caminho solitário que só se tornará eficaz caso ele se transforme em um fenômeno eleitoral, o que é difícil de imaginar. Ou na hipótese de vir a disputar um segundo turno com o candidato tucano Aécio Neves, o que a esta altura parece improvável.
Campos vai ter que equilibrar os próximos passos para não inviabilizar o apoio do PSDB em um eventual segundo turno. O que pode pesar a mão no PSB é a influência de uma esquerda próxima ao petismo, cujo representante mais influente é o vice-presidente, Roberto Amaral, ex-ministro de Lula, que nunca viu com bons olhos a aproximação com os tucanos.
O senador Aécio Neves vai exercitando um dos dons mais característicos da política mineira, a paciência. Não partirá dele qualquer gesto de rompimento com Campos, mesmo porque está convencido de que quem vai para o segundo turno é ele, e precisará do apoio do PSB para derrotar Dilma.
Obrigado por seu acordo político com o grupo da ex-senadora Marina Silva a rever a estratégia que havia montado no início da campanha, o ex-governador Eduardo Campos vem endurecendo seu discurso também contra o antigo parceiro Aécio Neves, na esperança de se tornar uma escolha palatável ao eleitor petista que está descrente com a atuação de Dilma ou insatisfeito com os rumos que o partido vem tomando.
Campos, com mais propriedade, pois fez parte do grupo lulista até pouco tempo, estaria repetindo a tentativa de Serra em 2010 de se apresentar como uma alternativa a Dilma contra a qual Lula nada teria. Corre menos risco de ser desautorizado por Lula de público, mas é possível que isso ocorra. Na tentativa de preservar um acordo para o segundo turno, é possível que Lula poupe Campos de sua língua ferina.
Embora não tenha uma performance boa nas pesquisas até o momento, Campos conta com o voto útil a seu favor dos petistas que temem mais a vitória do PSDB do que a derrota de Dilma para ele, aí incluído até mesmo Lula. Essa mudança na campanha de Campos tem, porém, diversos obstáculos para ser bem-sucedida, a começar pelo governo de São Paulo, uma das pedras-chave desta disputa.
Abandonando a coligação do governador Geraldo Alckmin, da qual fazia parte há muito, Campos deixará o palanque do PSDB livre para o senador Aécio Neves no maior colégio eleitoral do país, enquanto terá um palanque improvisado e fraco. Foi convencido por Marina de que o desgaste do PSDB depois de 20 anos no poder favorece uma candidatura alternativa.
Em Minas, acontecerá o contrário, pois, ao romper com Aécio em seu território, abrirá mão de compartilhar com ele a provável vitória no segundo maior colégio eleitoral do país. A contrapartida do rompimento em Pernambuco não será tão dolorosa para os tucanos, já que o eleitorado do estado não é dos maiores.
O senador Aécio Neves considera que a atitude de radicalizar a campanha também contra o PSDB é um sinal de desespero do PSB diante do fraco desempenho nas pesquisas. Mas, mesmo os do PSB e da Rede favoráveis a um acordo no segundo turno entre os dois acham que, no momento, é mais positivo para Campos se distanciar de Aécio e tentar uma marca própria para a campanha.
Sobre o assunto, gravei um vídeo para O Globo a Mais, semana passada, onde analisava a nova fase da campanha eleitoral, delicada para os candidatos de oposição, que, juntos, já mostram força para levar a eleição para o segundo turno, mas, separados, ainda não têm condições de vencer a presidente Dilma Rousseff.
Só destruirá as pontes construídas até o momento aquele candidato que se considerar em condições de aglutinar em torno de um projeto político próprio a maioria dos eleitores que querem mudanças; somente Marina Silva teria esse perfil, se fosse a candidata.
Mas ela está levando o ex-governador Eduardo Campos a experimentar esse caminho solitário que só se tornará eficaz caso ele se transforme em um fenômeno eleitoral, o que é difícil de imaginar. Ou na hipótese de vir a disputar um segundo turno com o candidato tucano Aécio Neves, o que a esta altura parece improvável.
Campos vai ter que equilibrar os próximos passos para não inviabilizar o apoio do PSDB em um eventual segundo turno. O que pode pesar a mão no PSB é a influência de uma esquerda próxima ao petismo, cujo representante mais influente é o vice-presidente, Roberto Amaral, ex-ministro de Lula, que nunca viu com bons olhos a aproximação com os tucanos.
O senador Aécio Neves vai exercitando um dos dons mais característicos da política mineira, a paciência. Não partirá dele qualquer gesto de rompimento com Campos, mesmo porque está convencido de que quem vai para o segundo turno é ele, e precisará do apoio do PSB para derrotar Dilma.
Falta de vergonha - PERCIVAL PUGGINA
ZERO HORA - 24/05
Reflitamos sobre esse breve pot-pourri. A tolerância com o contraditório, com a diversidade, é uma virtude das sociedades civilizadas. Mas não é saudável a tolerância com quem, de modo arrogante, desrespeita os demais mediante grosserias, vilania e múltiplas formas de corrupção. Tolerância perante a arrogância desaforada de gente adulta não é civilidade. É frouxidão! Quando o presidente da Fundação Piratini sai em defesa das Putinhas Aborteiras e suas baixezas contra o Papa, afirmando que críticas “machistas e chauvinistas” não serão toleradas, ele está nos ameaçando com quê? Eis aí um bom exemplo de arrogância graúda, oficial, que insulta os pagadores de impostos.
Faz muito sentido que a baixaria proclame seu caráter político e que a política seja a baixaria que vemos. Uma e outra confirmam o fato de que somos alvo de um projeto de poder cuja consolidação exige a destruição de nossa cultura e de nossos valores. Por fim, e lateralmente, lembro às mocinhas e, especialmente a seus papais e mamães de “mentes abertas”, que todas devem ser respeitadas. E que um bom ponto de partida para isso está na regra de prudência que recomenda respeitarem-se elas a si mesmas.
Alguma coisa acontece - DORA KRAMER
O Estado de S.Paulo - 25/05
Em quatro meses e uma Copa cheia de complicações pela frente tudo pode acontecer. Ainda mais se levarmos em conta a velocidade e o inusitado dos acontecimentos deste quentíssimo ano de 2014.
Em quatro meses e uma Copa cheia de complicações pela frente tudo pode acontecer. Ainda mais se levarmos em conta a velocidade e o inusitado dos acontecimentos deste quentíssimo ano de 2014.
A última pesquisa do Ibope conta novidades. Mudanças de cenário ocorridas em poucas semanas. Considerando o histórico de desinteresse nesse período em eleições anteriores, a queda acentuada no porcentual de pessoas indecisas, dispostas a anular o voto ou simplesmente deixá-lo em branco, é a notícia mais auspiciosa.
Em abril último, esse grupo somava 37% dos pesquisados. Hoje são 24%. Os especialistas no tema atribuem esse fato às propagandas partidárias na televisão. Curtas, esporádicas e ainda em tom eleitoral quase subliminar devido a restrições legais. Só em agosto os candidatos estarão liberados para pedir votos de maneira explícita.
Por esse critério, da exposição, é de se supor que, ao contrário do esperado, o índice de abstenção possa ser mais baixo do que indicaria o desapreço em relação à política e seus personagens. Trata-se de uma impressão ainda a ser conferida. Se confirmada, a explicação desse sinal de interesse pode estar no despertar da consciência de que quanto menos importância o cidadão dá à política melhor para aqueles que fazem dela uma atividade deletéria.
Outra razão talvez seja o clima de disputa que pouco a pouco vem se estabelecendo e motivando as pessoas a participar. A antecipação da campanha tem a ver com isso e o derretimento da situação de favoritismo inamovível da presidente Dilma Rousseff também.
Ela continua na frente, com 40% das intenções. Mas aqueles eleitores que, na feliz expressão do analista José Roberto de Toledo, "desceram do muro", não subiram na caravana de Dilma. Os beneficiados foram seus principais adversários, Aécio Neves e Eduardo Campos.
A presidente voltou ao patamar de março. Ganhou três pontos em relação aos 37% registrados em abril. Isso representa um aumento de 8%. Aécio Neves tinha 14% e foi para 20%; cresceu, portanto, 43%. Eduardo Campos de 6% foi para 11%; não chegou a dobrar, mas aumentou seu capital em 83%.
Os números relativos à rejeição tampouco favorecem a presidente. Ficou estacionada em 33%, mas os dos oponentes caíram. Eram 25% os que diziam não votar em Aécio de jeito nenhum e agora somam 20%. Para Eduardo Campos, a queda da rejeição foi mais expressiva: de 21% para 13%.
Ou seja, vai ter competição. Será uma eleição disputada, de resultado imprevisível sem "cantatas" de vitória antes da hora, como aconteceu, por exemplo, com o PSDB em 2010, quando José Serra reinou olímpico no patamar acima de 40% por muitos meses enquanto Dilma lutava para alcançar os dois dígitos. Até que deslanchou.
Voltando às intenções de voto da presidente, há nela duas boas notícias: uma para o governo, outra para a oposição. Os eleitores de Dilma se mantêm firmes, não migraram para os adversários. Fosse isso, ela teria caído, e não subido. Sendo assim, sustentando o primeiro lugar, se arrefecem os ânimos do "volta, Lula" e ainda se contém a sanha de aliados cujo olfato é treinado para detectar aromas que determinam a hora de debandar.
Para a oposição, esses três pontos porcentuais são também preciosos nesse momento. Nem Aécio nem Campos querem que Dilma dispare nas pesquisas a ponto de consolidar uma decisão em primeiro turno. Mas nenhum dos dois gostaria de vê-la despencar para não correr o risco da troca de Dilma por Lula.
Para concluir, um dado inusitado da pesquisa: a presidente cresceu entre os mais ricos e Aécio, entre os mais pobres. Uma inversão de preferências nos públicos tradicionais de cada um, fenômeno que até agora não tem explicação convincente e só reforça a impressão de que alguma coisa acontece nessa peculiar eleição em que tudo pode acontecer.
Em abril último, esse grupo somava 37% dos pesquisados. Hoje são 24%. Os especialistas no tema atribuem esse fato às propagandas partidárias na televisão. Curtas, esporádicas e ainda em tom eleitoral quase subliminar devido a restrições legais. Só em agosto os candidatos estarão liberados para pedir votos de maneira explícita.
Por esse critério, da exposição, é de se supor que, ao contrário do esperado, o índice de abstenção possa ser mais baixo do que indicaria o desapreço em relação à política e seus personagens. Trata-se de uma impressão ainda a ser conferida. Se confirmada, a explicação desse sinal de interesse pode estar no despertar da consciência de que quanto menos importância o cidadão dá à política melhor para aqueles que fazem dela uma atividade deletéria.
Outra razão talvez seja o clima de disputa que pouco a pouco vem se estabelecendo e motivando as pessoas a participar. A antecipação da campanha tem a ver com isso e o derretimento da situação de favoritismo inamovível da presidente Dilma Rousseff também.
Ela continua na frente, com 40% das intenções. Mas aqueles eleitores que, na feliz expressão do analista José Roberto de Toledo, "desceram do muro", não subiram na caravana de Dilma. Os beneficiados foram seus principais adversários, Aécio Neves e Eduardo Campos.
A presidente voltou ao patamar de março. Ganhou três pontos em relação aos 37% registrados em abril. Isso representa um aumento de 8%. Aécio Neves tinha 14% e foi para 20%; cresceu, portanto, 43%. Eduardo Campos de 6% foi para 11%; não chegou a dobrar, mas aumentou seu capital em 83%.
Os números relativos à rejeição tampouco favorecem a presidente. Ficou estacionada em 33%, mas os dos oponentes caíram. Eram 25% os que diziam não votar em Aécio de jeito nenhum e agora somam 20%. Para Eduardo Campos, a queda da rejeição foi mais expressiva: de 21% para 13%.
Ou seja, vai ter competição. Será uma eleição disputada, de resultado imprevisível sem "cantatas" de vitória antes da hora, como aconteceu, por exemplo, com o PSDB em 2010, quando José Serra reinou olímpico no patamar acima de 40% por muitos meses enquanto Dilma lutava para alcançar os dois dígitos. Até que deslanchou.
Voltando às intenções de voto da presidente, há nela duas boas notícias: uma para o governo, outra para a oposição. Os eleitores de Dilma se mantêm firmes, não migraram para os adversários. Fosse isso, ela teria caído, e não subido. Sendo assim, sustentando o primeiro lugar, se arrefecem os ânimos do "volta, Lula" e ainda se contém a sanha de aliados cujo olfato é treinado para detectar aromas que determinam a hora de debandar.
Para a oposição, esses três pontos porcentuais são também preciosos nesse momento. Nem Aécio nem Campos querem que Dilma dispare nas pesquisas a ponto de consolidar uma decisão em primeiro turno. Mas nenhum dos dois gostaria de vê-la despencar para não correr o risco da troca de Dilma por Lula.
Para concluir, um dado inusitado da pesquisa: a presidente cresceu entre os mais ricos e Aécio, entre os mais pobres. Uma inversão de preferências nos públicos tradicionais de cada um, fenômeno que até agora não tem explicação convincente e só reforça a impressão de que alguma coisa acontece nessa peculiar eleição em que tudo pode acontecer.
Noblat foi injustiçado - MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA
O GLOBO - 25/05
Nos comentários do analista, as alusões à raça do criticado são periféricas e não removem o eixo central e o ânimo inspirador daquilo que, no conjunto, ficou redigido
Injustiça não ocorre apenas quando, equivocadamente, se condena alguém por ilicitude que não cometeu. Injustiçado também será aquele a quem, sem justa causa, se atribuir infração que jamais perpetrou. Nesta hipótese, a da acusação desarrazoada, a injustiça reside na afronta à dignidade humana do acusado.
Em 19 de agosto último, Ricardo Noblat fez publicar, no GLOBO, matéria a que intitulou “Quem o ministro Joaquim Barbosa pensa que é?”, e, por ela, agora responde a ação penal em que o Ministério Público Federal, agasalhando representação do ilustre presidente do STF, increpa-o dos crimes de difamação, injúria qualificada e preconceito racial.
Seu permanente leitor, penso que o texto de Noblat não está entre os melhores que produziu. Duro, rigoroso, quiçá exagerado em alguns dos seus trechos, o escrito não se afeiçoa àquilo que o jornalista costuma lavrar. Todavia, daí a entrever, na crônica, suficiente fundamento para a persecução criminal desencadeada, há distância que a razoabilidade jurídica não autoriza percorrer.
Aprendi, com os mestres e a convergente orientação pretoriana, que as criações literárias, inclusive as jornalísticas, devem ser interpretadas no seu todo, na íntegra harmônica de suas ideias e asserções, rejeitando-se o apego isolado a uma ou a algumas frases. Reverente a esse pacificado entendimento, não consigo enxergar, na redação do articulista, a tipicidade ou o dolo específico que pudesse submetê-lo ao processo no qual foi tornado réu.
Pelo contrário, o que lá vislumbrei foi a democrática manifestação de um juízo crítico, embora veemente. Direito à crítica, esse que, especialmente, aos operadores da imprensa, a Constituição resguarda como garantia mínima indispensável ao sadio exercício profissional. E, mais, jus criticandi que, alçado à categoria de regular exercício opinativo, particularmente encontra aplicação sempre que o atingido for pessoa pública, figura notória, agente estatal, administrador, legislador ou juiz.
Ao longo da história, vários outros magistrados com assento na Corte Suprema Brasileira receberam inflamadas exprobações de jornais, revistas e emissoras. Aliás, no famoso julgamento do mensalão isso se fez frequente e monocórdico, ao sabor dos votos que Suas Excelências proferiram condenando ou absolvendo, majorando ou reduzindo penas, provendo ou desprovendo recursos.
Não difama servidor público de amplíssima notoriedade quem, exercitando juízo crítico, acertada ou erradamente, acusa-o de “tratar mal seus semelhantes, a debochar deles, a humilhá-los’’, ou de recusar “qualquer concessão à afabilidade’’, ou de sustentar “soberba”. Note-se que, ao mesmo tempo — e elogiosamente —, o jornalista reconhece que “A maioria dos brasileiros o admira”, e também que, entre os candidatos ao Supremo, “Joaquim era o que tinha o melhor currículo.”
Ademais, nos comentários do veterano analista, as alusões à raça do criticado são periféricas e não removem o eixo central e o ânimo inspirador daquilo que, no conjunto, ficou redigido. É dizer: apenas uma leitura estrábica ao núcleo essencial da peça jornalística — não jurídica, portanto —, levaria à conclusão de nela existir prática, induzimento ou incitação ao racismo.
Em suma, e com todas as vênias, realmente Noblat foi injustiçado.
Nos comentários do analista, as alusões à raça do criticado são periféricas e não removem o eixo central e o ânimo inspirador daquilo que, no conjunto, ficou redigido
Injustiça não ocorre apenas quando, equivocadamente, se condena alguém por ilicitude que não cometeu. Injustiçado também será aquele a quem, sem justa causa, se atribuir infração que jamais perpetrou. Nesta hipótese, a da acusação desarrazoada, a injustiça reside na afronta à dignidade humana do acusado.
Em 19 de agosto último, Ricardo Noblat fez publicar, no GLOBO, matéria a que intitulou “Quem o ministro Joaquim Barbosa pensa que é?”, e, por ela, agora responde a ação penal em que o Ministério Público Federal, agasalhando representação do ilustre presidente do STF, increpa-o dos crimes de difamação, injúria qualificada e preconceito racial.
Seu permanente leitor, penso que o texto de Noblat não está entre os melhores que produziu. Duro, rigoroso, quiçá exagerado em alguns dos seus trechos, o escrito não se afeiçoa àquilo que o jornalista costuma lavrar. Todavia, daí a entrever, na crônica, suficiente fundamento para a persecução criminal desencadeada, há distância que a razoabilidade jurídica não autoriza percorrer.
Aprendi, com os mestres e a convergente orientação pretoriana, que as criações literárias, inclusive as jornalísticas, devem ser interpretadas no seu todo, na íntegra harmônica de suas ideias e asserções, rejeitando-se o apego isolado a uma ou a algumas frases. Reverente a esse pacificado entendimento, não consigo enxergar, na redação do articulista, a tipicidade ou o dolo específico que pudesse submetê-lo ao processo no qual foi tornado réu.
Pelo contrário, o que lá vislumbrei foi a democrática manifestação de um juízo crítico, embora veemente. Direito à crítica, esse que, especialmente, aos operadores da imprensa, a Constituição resguarda como garantia mínima indispensável ao sadio exercício profissional. E, mais, jus criticandi que, alçado à categoria de regular exercício opinativo, particularmente encontra aplicação sempre que o atingido for pessoa pública, figura notória, agente estatal, administrador, legislador ou juiz.
Ao longo da história, vários outros magistrados com assento na Corte Suprema Brasileira receberam inflamadas exprobações de jornais, revistas e emissoras. Aliás, no famoso julgamento do mensalão isso se fez frequente e monocórdico, ao sabor dos votos que Suas Excelências proferiram condenando ou absolvendo, majorando ou reduzindo penas, provendo ou desprovendo recursos.
Não difama servidor público de amplíssima notoriedade quem, exercitando juízo crítico, acertada ou erradamente, acusa-o de “tratar mal seus semelhantes, a debochar deles, a humilhá-los’’, ou de recusar “qualquer concessão à afabilidade’’, ou de sustentar “soberba”. Note-se que, ao mesmo tempo — e elogiosamente —, o jornalista reconhece que “A maioria dos brasileiros o admira”, e também que, entre os candidatos ao Supremo, “Joaquim era o que tinha o melhor currículo.”
Ademais, nos comentários do veterano analista, as alusões à raça do criticado são periféricas e não removem o eixo central e o ânimo inspirador daquilo que, no conjunto, ficou redigido. É dizer: apenas uma leitura estrábica ao núcleo essencial da peça jornalística — não jurídica, portanto —, levaria à conclusão de nela existir prática, induzimento ou incitação ao racismo.
Em suma, e com todas as vênias, realmente Noblat foi injustiçado.
Campo de batalha - ELIANE CANTANHÊDE
FOLHA DE SP - 25/05
BRASÍLIA - As oposições parecem não perceber ou não dar bola, mas o governo e o PT estão ganhando a batalha mais importante a esta altura da eleição: são eles que determinam como vai ser a guerra.
As pesquisas têm um peso enorme no ânimo do eleitorado e na definição de apoios e coligações, mas, neste momento, o fundamental é definir as armas, arregimentar as tropas, delimitar o campo, atrair o inimigo para o terreno que você domina. Depois, não tem como sair.
Aécio e Eduardo Campos vinham bem quando o debate (ou o "terreno") era Petrobras, crise ética, crescimento baixo, inflação alta, o preço do tomate. Mas Dilma, que patinava, deu uma guinada e puxou tucanos e pessebistas para o campo social. Este é o forte do PT e de Lula e a única área que salva o discurso de Dilma.
Com a CPI da Petrobras no Senado enterrada e a CPI mista natimorta, lá se foram vários cartuchos da oposição. E os novos anúncios do governo --aumento do Bolsa Família, correção da tabela do IR, investimentos em saneamento básico-- reforçaram a munição de Dilma. O anúncio do medo e dos fantasmas fez a liga.
É verdade que as pessoas votam pensando em se dar bem, mas os interesses meramente pessoais não anulam o imaginário coletivo. Explico: as menores faixas de renda querem Bolsas; as classes médias querem emprego, renda e status; as mais remuneradas querem privilégios; as ricas querem ficar mais ricas. E todas querem segurança etc. Mas há mensagens que perpassam todas elas.
Exemplo? A fofoca de que os tucanos privatizariam a Petrobras. Isso não atingia diretamente o interesse de quase nenhum eleitor e de nenhuma faixa de renda e de escolaridade, mas fez um corte transversal por todas.
A campanha de Dilma planta agora o medo da "volta ao passado" e a "inclusão social versus medidas impopulares e elitistas", para colher depois nos programas, nos debates e, claro, nos votos.
BRASÍLIA - As oposições parecem não perceber ou não dar bola, mas o governo e o PT estão ganhando a batalha mais importante a esta altura da eleição: são eles que determinam como vai ser a guerra.
As pesquisas têm um peso enorme no ânimo do eleitorado e na definição de apoios e coligações, mas, neste momento, o fundamental é definir as armas, arregimentar as tropas, delimitar o campo, atrair o inimigo para o terreno que você domina. Depois, não tem como sair.
Aécio e Eduardo Campos vinham bem quando o debate (ou o "terreno") era Petrobras, crise ética, crescimento baixo, inflação alta, o preço do tomate. Mas Dilma, que patinava, deu uma guinada e puxou tucanos e pessebistas para o campo social. Este é o forte do PT e de Lula e a única área que salva o discurso de Dilma.
Com a CPI da Petrobras no Senado enterrada e a CPI mista natimorta, lá se foram vários cartuchos da oposição. E os novos anúncios do governo --aumento do Bolsa Família, correção da tabela do IR, investimentos em saneamento básico-- reforçaram a munição de Dilma. O anúncio do medo e dos fantasmas fez a liga.
É verdade que as pessoas votam pensando em se dar bem, mas os interesses meramente pessoais não anulam o imaginário coletivo. Explico: as menores faixas de renda querem Bolsas; as classes médias querem emprego, renda e status; as mais remuneradas querem privilégios; as ricas querem ficar mais ricas. E todas querem segurança etc. Mas há mensagens que perpassam todas elas.
Exemplo? A fofoca de que os tucanos privatizariam a Petrobras. Isso não atingia diretamente o interesse de quase nenhum eleitor e de nenhuma faixa de renda e de escolaridade, mas fez um corte transversal por todas.
A campanha de Dilma planta agora o medo da "volta ao passado" e a "inclusão social versus medidas impopulares e elitistas", para colher depois nos programas, nos debates e, claro, nos votos.
Dá para mudar o rumo da prosa eleitoral? - SERGIO FAUSTO
O Estado de S.Paulo - 25/05
A qualidade da democracia depende tanto das características de suas instituições formais, tomadas em conjunto, quanto de práticas não codificadas que se expressam na ação e na palavra dos atores políticos. Esta segunda dimensão - mais próxima dos hábitos e costumes que das instituições formais (partidos, Congresso, Judiciário, etc.) - é essencial não só para o modo como o poder é exercido, mas também para fortalecer (ou debilitar) uma cultura cívica democrática sem a qual as instituições formais da democracia não fincam raízes na sociedade.
No Brasil, tão importante quanto aperfeiçoar as instituições formais (principalmente o sistema eleitoral) é pôr em discussão, na expectativa de alterá-las gradualmente, as práticas não codificadas que caracterizam a política brasileira atual. Neste artigo quero concentrar-me em práticas discursivas que rebaixam a qualidade do debate público e da democracia em nosso país. Estas podem mudar mais rápido se os líderes políticos assim o desejarem.
Embora não sejam os únicos, os principais responsáveis por esse rebaixamento são Lula e o PT. Desde de que chegaram ao poder, o ex-presidente e seu partido investiram em três componentes de uma mesma estratégia discursiva: a estigmatização do governo FHC e do principal partido da oposição, o PSDB; o autoengrandecimento da era Lula como o marco fundacional de um novo País, que deixava para trás 500 anos de atraso; e a construção da imagem do ex-presidente como grande responsável, por suas origens e por suas decisões, pelo resgate de milhões de brasileiros da pobreza e pela tão decantada ascensão de parte deles à "classe média".
Para o sucesso dessa estratégia, financiada com vultosos recursos públicos, recorreu-se seletivamente a toda sorte de inverdades e representações distorcidas a respeito do passado e dos adversários do governo. Tão grave quanto foi a recuperação de um velho arquétipo da política moderna: a personificação do Estado na figura de um líder benfeitor que distribui benefícios ao povo carente. A nova versão elaborada por Lula e pelo PT é mais sofisticada do que a que caracterizou o clientelismo tradicional ou o populismo dos anos 1950 no Brasil. Mas é uma enorme regressão quando comparada ao discurso do próprio PT e de outras forças políticas da frente democrática contra a ditadura, parte delas hoje no PSDB. A partir de ângulos e com ênfases diferentes se construiu ali a ideia-força de que a real democratização do País viria pela organização de sujeitos sociais coletivos com menor dependência do Estado e maior capacidade e autonomia para realizar projetos políticos abrangentes, num quadro de pluralismo democrático.
É incrível notar como esse discurso cedeu lugar à narrativa ufanista do líder-Estado-governo-partido "do povo" e, quando o ufanismo não mais funciona, à ladainha da "ingratidão" ao governo e ao PT. Ingrato, no atual vocabulário petista, é o pobre que virou "classe média" e vai às ruas protestar contra o governo, como disse em tom confessional Gilberto Carvalho, ou a elite, que "nunca ganhou tanto dinheiro porque eu consertei o País", mas não poupa críticas ao atual governo, como disse Lula com a modéstia que lhe é peculiar.
Como não poderia deixar de ser, para quem "em eleição faz o diabo", outra pérola recente, esta de Dilma Rousseff, o governo agora dobra a aposta na estratégica discursiva adotada desde 2003. No caldeirão do marqueteiro oficial já está pronta a poção mágica que pretende assegurar a reeleição da atual presidente. Ela consiste em fazer crer que as eleições deste ano são uma disputa entre a fada madrinha, Dilma, que recebeu seus dons do rei-pai, Lula, e a bruxa má, Aécio Neves. A Eduardo Campos reservou-se o papel de bruxa má disfarçada, aquela que não parece, mas é ruim que só.
Fica, assim, a disputa eleitoral reduzida a uma fábula infantil e os eleitores, à condição de crianças. Estas, se não convencidas da bondade da fada madrinha (ou "rainha dos pobres", como a chamou o governador Jaques Wagner), devem ser persuadias da maldade do seu principal adversário. Para outra coisa não serve a campanha de medo deflagrada pelo PT na TV e no rádio nas últimas semanas.
Num nível um pouco mais elaborado, o governo busca pintar o quadro eleitoral como a contenda entre dois "modelos socioeconômicos" radicalmente diferentes: um comprometido com as causas do povo e do Brasil; outro, antissocial e entreguista. Qualquer observador minimamente isento e informado sabe que esse quadro não retrata a realidade dos fatos. Nem um eventual futuro mandato de Dilma faria o País abraçar um "modelo bolivariano" nem uma vitória de Aécio nos levaria à adoção de um "modelo neoliberal". Claro que há diferenças entre os dois principais candidatos, tanto programáticas como, principalmente, no modo de organizar o Estado, exercer o governo e gerir as políticas públicas. Há também diferenças entre eles e Eduardo Campos, que se empenha legitimamente em marcar uma terceira via. Eleições devem pôr essas diferenças em contraste e em confronto.
Outra coisa é a dramatização artificial dessas diferenças. A estratégia pode até ser eficiente do ponto de vista eleitoral - resta saber para quem -, mas produz pelo menos dois efeitos negativos para o fortalecimento de uma cultura cívica democrática. De um lado, afasta ainda mais o cidadão comum da política, uma vez que nele reforça a suspeita de que as eleições têm muito de uma farsa teatral em que o objetivo dos protagonistas está longe de coincidir com as expectativas da plateia. De outro, alimenta, sobretudo na internet, um ambiente de intolerância e surdez aos argumentos do outro, que são a própria antítese do debate democrático.
Tomara a sociedade reaja a tempo de mudar o rumo da prosa eleitoral. Do jeito que a coisa vai, não é bom para o País.
A qualidade da democracia depende tanto das características de suas instituições formais, tomadas em conjunto, quanto de práticas não codificadas que se expressam na ação e na palavra dos atores políticos. Esta segunda dimensão - mais próxima dos hábitos e costumes que das instituições formais (partidos, Congresso, Judiciário, etc.) - é essencial não só para o modo como o poder é exercido, mas também para fortalecer (ou debilitar) uma cultura cívica democrática sem a qual as instituições formais da democracia não fincam raízes na sociedade.
No Brasil, tão importante quanto aperfeiçoar as instituições formais (principalmente o sistema eleitoral) é pôr em discussão, na expectativa de alterá-las gradualmente, as práticas não codificadas que caracterizam a política brasileira atual. Neste artigo quero concentrar-me em práticas discursivas que rebaixam a qualidade do debate público e da democracia em nosso país. Estas podem mudar mais rápido se os líderes políticos assim o desejarem.
Embora não sejam os únicos, os principais responsáveis por esse rebaixamento são Lula e o PT. Desde de que chegaram ao poder, o ex-presidente e seu partido investiram em três componentes de uma mesma estratégia discursiva: a estigmatização do governo FHC e do principal partido da oposição, o PSDB; o autoengrandecimento da era Lula como o marco fundacional de um novo País, que deixava para trás 500 anos de atraso; e a construção da imagem do ex-presidente como grande responsável, por suas origens e por suas decisões, pelo resgate de milhões de brasileiros da pobreza e pela tão decantada ascensão de parte deles à "classe média".
Para o sucesso dessa estratégia, financiada com vultosos recursos públicos, recorreu-se seletivamente a toda sorte de inverdades e representações distorcidas a respeito do passado e dos adversários do governo. Tão grave quanto foi a recuperação de um velho arquétipo da política moderna: a personificação do Estado na figura de um líder benfeitor que distribui benefícios ao povo carente. A nova versão elaborada por Lula e pelo PT é mais sofisticada do que a que caracterizou o clientelismo tradicional ou o populismo dos anos 1950 no Brasil. Mas é uma enorme regressão quando comparada ao discurso do próprio PT e de outras forças políticas da frente democrática contra a ditadura, parte delas hoje no PSDB. A partir de ângulos e com ênfases diferentes se construiu ali a ideia-força de que a real democratização do País viria pela organização de sujeitos sociais coletivos com menor dependência do Estado e maior capacidade e autonomia para realizar projetos políticos abrangentes, num quadro de pluralismo democrático.
É incrível notar como esse discurso cedeu lugar à narrativa ufanista do líder-Estado-governo-partido "do povo" e, quando o ufanismo não mais funciona, à ladainha da "ingratidão" ao governo e ao PT. Ingrato, no atual vocabulário petista, é o pobre que virou "classe média" e vai às ruas protestar contra o governo, como disse em tom confessional Gilberto Carvalho, ou a elite, que "nunca ganhou tanto dinheiro porque eu consertei o País", mas não poupa críticas ao atual governo, como disse Lula com a modéstia que lhe é peculiar.
Como não poderia deixar de ser, para quem "em eleição faz o diabo", outra pérola recente, esta de Dilma Rousseff, o governo agora dobra a aposta na estratégica discursiva adotada desde 2003. No caldeirão do marqueteiro oficial já está pronta a poção mágica que pretende assegurar a reeleição da atual presidente. Ela consiste em fazer crer que as eleições deste ano são uma disputa entre a fada madrinha, Dilma, que recebeu seus dons do rei-pai, Lula, e a bruxa má, Aécio Neves. A Eduardo Campos reservou-se o papel de bruxa má disfarçada, aquela que não parece, mas é ruim que só.
Fica, assim, a disputa eleitoral reduzida a uma fábula infantil e os eleitores, à condição de crianças. Estas, se não convencidas da bondade da fada madrinha (ou "rainha dos pobres", como a chamou o governador Jaques Wagner), devem ser persuadias da maldade do seu principal adversário. Para outra coisa não serve a campanha de medo deflagrada pelo PT na TV e no rádio nas últimas semanas.
Num nível um pouco mais elaborado, o governo busca pintar o quadro eleitoral como a contenda entre dois "modelos socioeconômicos" radicalmente diferentes: um comprometido com as causas do povo e do Brasil; outro, antissocial e entreguista. Qualquer observador minimamente isento e informado sabe que esse quadro não retrata a realidade dos fatos. Nem um eventual futuro mandato de Dilma faria o País abraçar um "modelo bolivariano" nem uma vitória de Aécio nos levaria à adoção de um "modelo neoliberal". Claro que há diferenças entre os dois principais candidatos, tanto programáticas como, principalmente, no modo de organizar o Estado, exercer o governo e gerir as políticas públicas. Há também diferenças entre eles e Eduardo Campos, que se empenha legitimamente em marcar uma terceira via. Eleições devem pôr essas diferenças em contraste e em confronto.
Outra coisa é a dramatização artificial dessas diferenças. A estratégia pode até ser eficiente do ponto de vista eleitoral - resta saber para quem -, mas produz pelo menos dois efeitos negativos para o fortalecimento de uma cultura cívica democrática. De um lado, afasta ainda mais o cidadão comum da política, uma vez que nele reforça a suspeita de que as eleições têm muito de uma farsa teatral em que o objetivo dos protagonistas está longe de coincidir com as expectativas da plateia. De outro, alimenta, sobretudo na internet, um ambiente de intolerância e surdez aos argumentos do outro, que são a própria antítese do debate democrático.
Tomara a sociedade reaja a tempo de mudar o rumo da prosa eleitoral. Do jeito que a coisa vai, não é bom para o País.
Copa de sangue - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 25/05
A manifestação promovida quinta-feira na capital paulista pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)ilustra bem a situação vivida hoje pelas grandes cidades brasileiras, a começar pelas duas mais importantes, São Paulo e Rio de Janeiro - total desrespeito pela população, que tem seus deslocamentos prejudicados pela ocupação de vias importantes, justamente em horários críticos; ameaça pelos manifestantes de recurso também à violência física, se contrariados; desafio aberto às autoridades que, amedrontadas, preferem proteger os que assim infringem a lei, em vez de colocá-los em seu devido lugar e cumprir o dever elementar de manter a ordem pública.
Foram 15 mil manifestantes, segundo a Polícia Militar (PM), mas poderiam ser apenas mil, ou mesmo quinhentos, porque hoje qualquer meia dúzia de gatos-pingados afoitos e autointitulados integrantes de movimentos sociais conseguem com a maior facilidade, à hora que bem entendem, interromper a circulação em ruas e avenidas escolhidas a dedo para perturbar a vida da maior cidade do País. Eles começaram seu protesto no Largo da Batata, em Pinheiros, às 18 horas, passaram pelas Avenidas Faria Lima e Cidade Jardim, pegaram a Marginal do Pinheiros, bloqueando todas as suas pistas no sentido zona sul, e encerraram a manifestação na Ponte Estaiada.
Não sem antes realizar ali uma assembleia a céu aberto, indiferentes à confusão provocada no trânsito. É fácil de imaginar os transtornos causados pelo "protesto" do MTST, nesse horário de pico, naquelas vias importantes. "Protesto" que incluiu os mais diversos ingredientes - crítica à realização da Copa do Mundo e reivindicações referentes à moradia, à educação, ao transporte e à saúde. Como quem quer tudo na verdade não quer nada, essa estranha salada só pode ter sido feita como pretexto para agitar.
A irresponsabilidade dos líderes do MTST não parece ter limites. Uma das provas disso foi a arregimentação até de crianças e idosos para participar da manifestação. Como há sempre a possibilidade de atos desse tipo, com 15 mil pessoas, fugirem ao controle - mesmo com a atitude benevolente da PM, que se limitou a proteger os manifestantes que pisoteavam o direito de ir e vir dos paulistanos -, o risco foi grande de alguém se ferir. E disso sabiam seus organizadores, que usaram covardemente aquelas pessoas como escudo.
Igualmente grave - e demonstração de profunda indiferença às agruras dos paulistanos - foi promover o tal "protesto" logo em seguida aos dois dias em que a cidade sofreu com a greve selvagem de motoristas e cobradores.
E tem mais. O líder do MTST, Guilherme Boulos, a nova vedete dos movimentos ditos sociais - nos quais nunca se sabe onde começa a baderna e onde termina o social -, fez uma clara ameaça, a propósito da ocupação de uma grande área na zona leste, perto do Estádio Itaquerão, onde se realizará o jogo de abertura da Copa: "Se eles (policiais com ordem judicial para reintegração de posse) quiserem desocupar sem negociar, sem dar garantias reais àquelas famílias, vai haver resistência. Se eles insistirem, vai ter uma Copa de sangue".Tendo em vista a desenvoltura com que ele e seus companheiros vêm agindo impunemente, é melhor não duvidar de sua palavra e se preparar para o pior.
Se chegamos a essa situação, é porque assistimos há já algum tempo a uma confusão deliberada entre o direito inquestionável da população de se manifestar, criticar e apresentar pacificamente reivindicações e a baderna pura e simples, promovida por aqueles que, por razões políticas e ideológicas, quando não por impulsos criminosos, estão interessados apenas na agitação. Por isso, promovem seus "protestos" atropelando todas as regras que, nos regimes democráticos, regulam essa matéria, a começar pela obrigação de avisar com antecedência sua realização e pedir autorização para tal.
Igual responsabilidade têm os governantes que, para não serem acusados de "repressores", não permitem que a polícia preserve a ordem pública e proteja os direitos da maioria. Poderão pagar caro por isso, acusados pela população de conivência com a bagunça.
A manifestação promovida quinta-feira na capital paulista pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)ilustra bem a situação vivida hoje pelas grandes cidades brasileiras, a começar pelas duas mais importantes, São Paulo e Rio de Janeiro - total desrespeito pela população, que tem seus deslocamentos prejudicados pela ocupação de vias importantes, justamente em horários críticos; ameaça pelos manifestantes de recurso também à violência física, se contrariados; desafio aberto às autoridades que, amedrontadas, preferem proteger os que assim infringem a lei, em vez de colocá-los em seu devido lugar e cumprir o dever elementar de manter a ordem pública.
Foram 15 mil manifestantes, segundo a Polícia Militar (PM), mas poderiam ser apenas mil, ou mesmo quinhentos, porque hoje qualquer meia dúzia de gatos-pingados afoitos e autointitulados integrantes de movimentos sociais conseguem com a maior facilidade, à hora que bem entendem, interromper a circulação em ruas e avenidas escolhidas a dedo para perturbar a vida da maior cidade do País. Eles começaram seu protesto no Largo da Batata, em Pinheiros, às 18 horas, passaram pelas Avenidas Faria Lima e Cidade Jardim, pegaram a Marginal do Pinheiros, bloqueando todas as suas pistas no sentido zona sul, e encerraram a manifestação na Ponte Estaiada.
Não sem antes realizar ali uma assembleia a céu aberto, indiferentes à confusão provocada no trânsito. É fácil de imaginar os transtornos causados pelo "protesto" do MTST, nesse horário de pico, naquelas vias importantes. "Protesto" que incluiu os mais diversos ingredientes - crítica à realização da Copa do Mundo e reivindicações referentes à moradia, à educação, ao transporte e à saúde. Como quem quer tudo na verdade não quer nada, essa estranha salada só pode ter sido feita como pretexto para agitar.
A irresponsabilidade dos líderes do MTST não parece ter limites. Uma das provas disso foi a arregimentação até de crianças e idosos para participar da manifestação. Como há sempre a possibilidade de atos desse tipo, com 15 mil pessoas, fugirem ao controle - mesmo com a atitude benevolente da PM, que se limitou a proteger os manifestantes que pisoteavam o direito de ir e vir dos paulistanos -, o risco foi grande de alguém se ferir. E disso sabiam seus organizadores, que usaram covardemente aquelas pessoas como escudo.
Igualmente grave - e demonstração de profunda indiferença às agruras dos paulistanos - foi promover o tal "protesto" logo em seguida aos dois dias em que a cidade sofreu com a greve selvagem de motoristas e cobradores.
E tem mais. O líder do MTST, Guilherme Boulos, a nova vedete dos movimentos ditos sociais - nos quais nunca se sabe onde começa a baderna e onde termina o social -, fez uma clara ameaça, a propósito da ocupação de uma grande área na zona leste, perto do Estádio Itaquerão, onde se realizará o jogo de abertura da Copa: "Se eles (policiais com ordem judicial para reintegração de posse) quiserem desocupar sem negociar, sem dar garantias reais àquelas famílias, vai haver resistência. Se eles insistirem, vai ter uma Copa de sangue".Tendo em vista a desenvoltura com que ele e seus companheiros vêm agindo impunemente, é melhor não duvidar de sua palavra e se preparar para o pior.
Se chegamos a essa situação, é porque assistimos há já algum tempo a uma confusão deliberada entre o direito inquestionável da população de se manifestar, criticar e apresentar pacificamente reivindicações e a baderna pura e simples, promovida por aqueles que, por razões políticas e ideológicas, quando não por impulsos criminosos, estão interessados apenas na agitação. Por isso, promovem seus "protestos" atropelando todas as regras que, nos regimes democráticos, regulam essa matéria, a começar pela obrigação de avisar com antecedência sua realização e pedir autorização para tal.
Igual responsabilidade têm os governantes que, para não serem acusados de "repressores", não permitem que a polícia preserve a ordem pública e proteja os direitos da maioria. Poderão pagar caro por isso, acusados pela população de conivência com a bagunça.
Um teste que fala ao nosso ouvido - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR
GAZETA DO POVO - PR - 25/05
Carta aberta acusa exame internacional de transformar escolas numa verdadeira corrida de cavalos. Debate é legítimo, assim como a chacoalhada que a avaliação dá nos participantes acomodados
O Pisa (sigla em inglês para o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), quem diria, deu de receber mais vaias do que aplausos. O teste trienal para estudantes de 15 anos foi iniciado nos anos 2000, atinge 500 mil alunos, é de responsabilidade da OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – e até onde se sabia, gozava de prestígio entre os educadores. Os ventos mudaram de lado, com fúria. Neste mês, uma centena de educadores – a maioria deles de nações ricas – mandou uma carta aberta à OCDE, dando início a uma lavagem de roupa suja digna do Terceiro Mundo. O Pisa não lhes parece adequado. Estimula a competição “categoria safári”, fazendo com que as escolas se moldem a ele, numa lógica do “feito à imagem e semelhança” jamais visto desde a criação do mundo.
Ou seja, em vez de exercícios criativos, debates morais e outras propostas similares pautadas pelo prazer, passam a se preparar para ingressar no exército de Esparta, aumentando sobremaneira o grau de estresse dos alunos. Num tiro de misericórdia, os protestantes questionam por que cargas d’água a OCDE teria alguma relevância em tratar de educação, já que a escola não veio ao mundo para alimentar a economia. Passado o susto, a reação da elite que participa do Pisa pode ser vista como uma revolta natural, típica de gente que não se rende a saqueadores de mente e outras pragas. Entre os 65 países convidados – a última colocação do Brasil, em 2012, é um 58.º lugar – estão os países que ocupam o topo da educação, como nos nórdicos e alguns asiáticos; candidatos a ocupar o topo, a exemplo da Polônia, e convidados a uma participação especial, que passeiam por ali “sem compromisso”. É o caso do Brasil.
Para países cuja qualidade do ensino tem as variações de uma montanha-russa último tipo, o Pisa sempre soou como uma ótima oportunidade – para se divertir e para sofrer. Lado a lado de quem, para além de todos os discursos, conseguiu colocar a educação no primeiro plano, o teste possibilita, literalmente, saber em que ponto estamos. Em defesa do próprio Pisa, o diretor do projeto, Andreas Schleicher – em entrevista ao The Guardian – lembrou que o teste não foi feito para humilhar ninguém. Antes, nasceu para democratizar saberes, estratégias educacionais e não são poucos os países que tiram proveito dessa espécie de festa escolar globalizada. Muitos encontraram no Pisa subsídios para sanar suas misérias – incluindo misérias educacionais que persistem nos países endinheirados. Mais do que medidor autoritário de competências, o Pisa seria um distribuidor de competências. A última edição, por exemplo, apostou na “resolução de problemas”, uma recomendação pedagógica que torna a sala de aula bem menos enfadonha do que costuma ser. Algum problema nisso?
É provável que o Pisa não seja tão mau quanto o acusam. Não é um vilão disfarçado de avaliador. De qualquer modo, a carta aberta ajuda a considerar que a educação vive de fato o impasse da competência. Ao se render em demasia a expedientes torturantes do mundo corporativo, corre o risco de se confundir tanto com a empresa, a ponto de que não se reconheça mais como escola. Passar essa régua, delimitado até onde ir na testagem, é tarefa que exige perícia, um dilema que os educadores precisam enfrentar. Os descontentes reclamam que testes como o Pisa passam a pautar a pedagogia escolar. Aos que entendem que os testes ajudam a melhorar o desempenho da escola vale lembrar que a recíproca é verdadeira: instituições de ensino que confundem em demasia desempenho com aprendizado correm o risco de não se reconhecerem diante do espelho. Para o Brasil, o Pisa tem funcionado como um bom sabão. Tudo o que supúnhamos sobre nós se confirma a cada edição. Somos molengas no estudo da ciência, negligentes no ensino da matemática e damos muita folga nos exercícios de leitura, as três áreas contempladas pelo Pisa. Temos pagado caro por fazer bonito nos discursos pedagógicos e tropeçado nesses expedientes básicos que garantem todo o resto.
Muitos podem argumentar que não é preciso um teste internacional para nos jogar isso na cara. Já sabíamos. Mas como o Brasil está na moda e estamos adorando nos ver lado a lado com os outros – para saber qual é nossa real altura – a prova bem que nos deu um choque de realidade. Basta dizer que não há país desenvolvido no mundo com tantos índices capengas. É um sinal. É um recado. Para estar lá – onde os esforçados poloneses querem estar – vamos ter de ralar: no criativo, no lúdico e na vida como ela é. O Pisa pode até não nos representar, mas fala ao nosso ouvido.
Carta aberta acusa exame internacional de transformar escolas numa verdadeira corrida de cavalos. Debate é legítimo, assim como a chacoalhada que a avaliação dá nos participantes acomodados
O Pisa (sigla em inglês para o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), quem diria, deu de receber mais vaias do que aplausos. O teste trienal para estudantes de 15 anos foi iniciado nos anos 2000, atinge 500 mil alunos, é de responsabilidade da OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – e até onde se sabia, gozava de prestígio entre os educadores. Os ventos mudaram de lado, com fúria. Neste mês, uma centena de educadores – a maioria deles de nações ricas – mandou uma carta aberta à OCDE, dando início a uma lavagem de roupa suja digna do Terceiro Mundo. O Pisa não lhes parece adequado. Estimula a competição “categoria safári”, fazendo com que as escolas se moldem a ele, numa lógica do “feito à imagem e semelhança” jamais visto desde a criação do mundo.
Ou seja, em vez de exercícios criativos, debates morais e outras propostas similares pautadas pelo prazer, passam a se preparar para ingressar no exército de Esparta, aumentando sobremaneira o grau de estresse dos alunos. Num tiro de misericórdia, os protestantes questionam por que cargas d’água a OCDE teria alguma relevância em tratar de educação, já que a escola não veio ao mundo para alimentar a economia. Passado o susto, a reação da elite que participa do Pisa pode ser vista como uma revolta natural, típica de gente que não se rende a saqueadores de mente e outras pragas. Entre os 65 países convidados – a última colocação do Brasil, em 2012, é um 58.º lugar – estão os países que ocupam o topo da educação, como nos nórdicos e alguns asiáticos; candidatos a ocupar o topo, a exemplo da Polônia, e convidados a uma participação especial, que passeiam por ali “sem compromisso”. É o caso do Brasil.
Para países cuja qualidade do ensino tem as variações de uma montanha-russa último tipo, o Pisa sempre soou como uma ótima oportunidade – para se divertir e para sofrer. Lado a lado de quem, para além de todos os discursos, conseguiu colocar a educação no primeiro plano, o teste possibilita, literalmente, saber em que ponto estamos. Em defesa do próprio Pisa, o diretor do projeto, Andreas Schleicher – em entrevista ao The Guardian – lembrou que o teste não foi feito para humilhar ninguém. Antes, nasceu para democratizar saberes, estratégias educacionais e não são poucos os países que tiram proveito dessa espécie de festa escolar globalizada. Muitos encontraram no Pisa subsídios para sanar suas misérias – incluindo misérias educacionais que persistem nos países endinheirados. Mais do que medidor autoritário de competências, o Pisa seria um distribuidor de competências. A última edição, por exemplo, apostou na “resolução de problemas”, uma recomendação pedagógica que torna a sala de aula bem menos enfadonha do que costuma ser. Algum problema nisso?
É provável que o Pisa não seja tão mau quanto o acusam. Não é um vilão disfarçado de avaliador. De qualquer modo, a carta aberta ajuda a considerar que a educação vive de fato o impasse da competência. Ao se render em demasia a expedientes torturantes do mundo corporativo, corre o risco de se confundir tanto com a empresa, a ponto de que não se reconheça mais como escola. Passar essa régua, delimitado até onde ir na testagem, é tarefa que exige perícia, um dilema que os educadores precisam enfrentar. Os descontentes reclamam que testes como o Pisa passam a pautar a pedagogia escolar. Aos que entendem que os testes ajudam a melhorar o desempenho da escola vale lembrar que a recíproca é verdadeira: instituições de ensino que confundem em demasia desempenho com aprendizado correm o risco de não se reconhecerem diante do espelho. Para o Brasil, o Pisa tem funcionado como um bom sabão. Tudo o que supúnhamos sobre nós se confirma a cada edição. Somos molengas no estudo da ciência, negligentes no ensino da matemática e damos muita folga nos exercícios de leitura, as três áreas contempladas pelo Pisa. Temos pagado caro por fazer bonito nos discursos pedagógicos e tropeçado nesses expedientes básicos que garantem todo o resto.
Muitos podem argumentar que não é preciso um teste internacional para nos jogar isso na cara. Já sabíamos. Mas como o Brasil está na moda e estamos adorando nos ver lado a lado com os outros – para saber qual é nossa real altura – a prova bem que nos deu um choque de realidade. Basta dizer que não há país desenvolvido no mundo com tantos índices capengas. É um sinal. É um recado. Para estar lá – onde os esforçados poloneses querem estar – vamos ter de ralar: no criativo, no lúdico e na vida como ela é. O Pisa pode até não nos representar, mas fala ao nosso ouvido.
Ônus para o governo - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 25/05
De olho nas pesquisas de intenção de voto, Dilma anuncia para esta semana decisão sobre desoneração da folha de pagamento
Representantes da indústria ficaram sabendo que a presidente Dilma Rousseff (PT) pretende decidir nesta semana se a política de desoneração da folha de pagamento será permanente. O benefício, que hoje contempla 56 setores, venceria neste ano.
A diminuição de encargos salariais é uma demanda antiga dos empresários, e Dilma indicou que tem a intenção de atendê-la. Não se sabe, contudo, se o fará motivada por cálculo econômico ou --mais provavelmente-- eleitoral. São notórias a insatisfação de grandes executivos com o atual governo e a preferência que têm demonstrado pelos adversários da petista.
A desoneração --troca da contribuição patronal de 20% por uma taxa de 1% a 2% sobre o faturamento-- subtrairá em 2014 cerca de R$ 20 bilhões das receitas da União.
Embora em tese acertada, a medida aumenta a preocupação com as contas públicas, sobretudo em momento de desaceleração da economia. Vem daí, aliás, a busca do governo por fontes extraordinárias, com vistas a atingir a meta de poupança de 1,9% do PIB, ou aproximadamente R$ 99 bilhões.
Melhor seria promover uma redução gradual e contínua da pesada carga tributária, a fim de evitar solavancos. Também faria mais sentido um alívio horizontal, e não direcionado a setores escolhidos de forma pouco transparente.
O caso da folha de pagamento não é isolado. O Tribunal de Contas da União estimou em R$ 203,7 bilhões a perda de arrecadação com incentivos fiscais, renúncias e desonerações em 2013, uma alta próxima a 75% em relação a 2008.
O TCU aponta riscos para o equilíbrio das contas e faz ressalvas à qualidade dos controles. A prática suscita, ademais, dúvidas sobre legitimidade democrática, pois muitos benefícios não passam pelo Orçamento votado no Congresso.
Os economistas Érica Diniz e José Roberto Afonso calcularam valor ainda maior, de R$ 323 bilhões em 2014, dos quais apenas 9% transitam diretamente pelo Orçamento.
A conta inclui renúncias de impostos, como a que beneficia a Zona Franca de Manaus (R$ 23,6 bilhões/ano), as desonerações de folha de pagamento e os cortes de IPI, por exemplo. Do lado dos subsídios, contabilizaram-se os juros do BNDES e do crédito agrícola, entre outros.
Medido de forma consolidada, o valor só é inferior às despesas com a Previdência Social e supera em 67% a soma dos dispêndios dos ministérios da Saúde e da Educação.
Essa miríade de benefícios é concedida a bel-prazer do Executivo e satisfaz minorias com acesso aos corredores do Palácio do Planalto. Além de critérios objetivos para a concessão das vantagens, faltam avaliações claras sobre o que o país ganha em troca.
De olho nas pesquisas de intenção de voto, Dilma anuncia para esta semana decisão sobre desoneração da folha de pagamento
Representantes da indústria ficaram sabendo que a presidente Dilma Rousseff (PT) pretende decidir nesta semana se a política de desoneração da folha de pagamento será permanente. O benefício, que hoje contempla 56 setores, venceria neste ano.
A diminuição de encargos salariais é uma demanda antiga dos empresários, e Dilma indicou que tem a intenção de atendê-la. Não se sabe, contudo, se o fará motivada por cálculo econômico ou --mais provavelmente-- eleitoral. São notórias a insatisfação de grandes executivos com o atual governo e a preferência que têm demonstrado pelos adversários da petista.
A desoneração --troca da contribuição patronal de 20% por uma taxa de 1% a 2% sobre o faturamento-- subtrairá em 2014 cerca de R$ 20 bilhões das receitas da União.
Embora em tese acertada, a medida aumenta a preocupação com as contas públicas, sobretudo em momento de desaceleração da economia. Vem daí, aliás, a busca do governo por fontes extraordinárias, com vistas a atingir a meta de poupança de 1,9% do PIB, ou aproximadamente R$ 99 bilhões.
Melhor seria promover uma redução gradual e contínua da pesada carga tributária, a fim de evitar solavancos. Também faria mais sentido um alívio horizontal, e não direcionado a setores escolhidos de forma pouco transparente.
O caso da folha de pagamento não é isolado. O Tribunal de Contas da União estimou em R$ 203,7 bilhões a perda de arrecadação com incentivos fiscais, renúncias e desonerações em 2013, uma alta próxima a 75% em relação a 2008.
O TCU aponta riscos para o equilíbrio das contas e faz ressalvas à qualidade dos controles. A prática suscita, ademais, dúvidas sobre legitimidade democrática, pois muitos benefícios não passam pelo Orçamento votado no Congresso.
Os economistas Érica Diniz e José Roberto Afonso calcularam valor ainda maior, de R$ 323 bilhões em 2014, dos quais apenas 9% transitam diretamente pelo Orçamento.
A conta inclui renúncias de impostos, como a que beneficia a Zona Franca de Manaus (R$ 23,6 bilhões/ano), as desonerações de folha de pagamento e os cortes de IPI, por exemplo. Do lado dos subsídios, contabilizaram-se os juros do BNDES e do crédito agrícola, entre outros.
Medido de forma consolidada, o valor só é inferior às despesas com a Previdência Social e supera em 67% a soma dos dispêndios dos ministérios da Saúde e da Educação.
Essa miríade de benefícios é concedida a bel-prazer do Executivo e satisfaz minorias com acesso aos corredores do Palácio do Planalto. Além de critérios objetivos para a concessão das vantagens, faltam avaliações claras sobre o que o país ganha em troca.
Venezuela em estado terminal e falência na Argentina - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 25/05
Deve-se acompanhar as crises, para se ter a dimensão dos efeitos da aplicação de políticas que, em nome de ideologias, desrespeitam as leis mais simples da economia
Reportagem recente do Jornal Nacional, feita em Buenos Aires, mostrou o crescimento das vendas de máquinas de contar cédulas. O motivo: com a disparada da inflação, aumenta bastante a quantidade de cédulas em circulação. Para não perder tempo, comerciantes passam a usar estas máquinas, normalmente de uso quase exclusivo de bancos, em tempos normais.
O fenômeno é conhecido. Fazem parte dos compêndios de história econômica cenas de carrinhos de mão lotados de cédulas levados pelas ruas na Alemanha, durante a hiperinflação dos anos 1920. A própria Argentina passou por experiência semelhante no governo de Raúl Alfonsín, na década de 80. Durantes alguns dias, no auge da crise, no fim do melancólico governo do líder do União Cívica Radical, faltaram cédulas de austral (moeda lançada à época) nas casas de Câmbio da calleFlorida, porque uma rotativa da Casa da Moeda havia quebrado. Não se pode dizer que a história se repetirá. Mas o argentino, não é de hoje, já reage diante do risco de um videoteipe de maneira previsível: procura poupar em dólar. As perspectivas são, no mínimo, sombrias.
As eleições presidenciais serão apenas em 2015, e a tendência é Cristina Kirchner apenas administrar a crise de forma a não agravá-la. Dificilmente um governo populista como o dela tomará as medidas de ajuste necessárias para reverter a falência de sua política. Mas a inflação pode chegar este ano a 35%. E, quanto ao ritmo da economia, na melhor hipótese ela ficará estagnada em 2014.
Outro aliado estratégico de Brasília, a Venezuela, se encontra num estágio mais avançado de debacle. Sem um líder supremo, com a morte de Hugo Chávez — possibilidade de não haver sucessor é grave defeito nas autocracias —, o país, já em crise, caiu no colo do motorista de ônibus Nicólas Maduro, sindicalista ungido em vida por Chávez. Sem carisma, o novo presidente sequer consegue entreter as massas.
Também em grave crise política — contabilizam-se, até agora, cerca de 80 mortes em conflitos de rua —, o país padece de sério desabastecimento, pois a política de estatização do “Socialismo do Século XXI” desarticulou a produção, afugentou investidores e faltam até mesmo divisas para importações — algo bizarro para um país dono de uma das cinco maiores reservas de+ petróleo do mundo. A inflação chegou a 56%, no ano passado, e se prevê uma recessão de 1,4% neste ano. Também não haverá saída fácil para a Venezuela.
Por razões evidentes, calaram-se, no Brasil, os defensores das políticas econômicas argentina e venezuelana — não quer dizer que deixaram de apoiar o kirchnerismo e o chavismo, do ponto de vista político e ideológico. Mas é aconselhável acompanhar de perto as duas crises, para se ter a dimensão das consequências da aplicação de modelos que, em nome de ideologias, não respeitam as leis mais simples da economia.
Deve-se acompanhar as crises, para se ter a dimensão dos efeitos da aplicação de políticas que, em nome de ideologias, desrespeitam as leis mais simples da economia
Reportagem recente do Jornal Nacional, feita em Buenos Aires, mostrou o crescimento das vendas de máquinas de contar cédulas. O motivo: com a disparada da inflação, aumenta bastante a quantidade de cédulas em circulação. Para não perder tempo, comerciantes passam a usar estas máquinas, normalmente de uso quase exclusivo de bancos, em tempos normais.
O fenômeno é conhecido. Fazem parte dos compêndios de história econômica cenas de carrinhos de mão lotados de cédulas levados pelas ruas na Alemanha, durante a hiperinflação dos anos 1920. A própria Argentina passou por experiência semelhante no governo de Raúl Alfonsín, na década de 80. Durantes alguns dias, no auge da crise, no fim do melancólico governo do líder do União Cívica Radical, faltaram cédulas de austral (moeda lançada à época) nas casas de Câmbio da calleFlorida, porque uma rotativa da Casa da Moeda havia quebrado. Não se pode dizer que a história se repetirá. Mas o argentino, não é de hoje, já reage diante do risco de um videoteipe de maneira previsível: procura poupar em dólar. As perspectivas são, no mínimo, sombrias.
As eleições presidenciais serão apenas em 2015, e a tendência é Cristina Kirchner apenas administrar a crise de forma a não agravá-la. Dificilmente um governo populista como o dela tomará as medidas de ajuste necessárias para reverter a falência de sua política. Mas a inflação pode chegar este ano a 35%. E, quanto ao ritmo da economia, na melhor hipótese ela ficará estagnada em 2014.
Outro aliado estratégico de Brasília, a Venezuela, se encontra num estágio mais avançado de debacle. Sem um líder supremo, com a morte de Hugo Chávez — possibilidade de não haver sucessor é grave defeito nas autocracias —, o país, já em crise, caiu no colo do motorista de ônibus Nicólas Maduro, sindicalista ungido em vida por Chávez. Sem carisma, o novo presidente sequer consegue entreter as massas.
Também em grave crise política — contabilizam-se, até agora, cerca de 80 mortes em conflitos de rua —, o país padece de sério desabastecimento, pois a política de estatização do “Socialismo do Século XXI” desarticulou a produção, afugentou investidores e faltam até mesmo divisas para importações — algo bizarro para um país dono de uma das cinco maiores reservas de+ petróleo do mundo. A inflação chegou a 56%, no ano passado, e se prevê uma recessão de 1,4% neste ano. Também não haverá saída fácil para a Venezuela.
Por razões evidentes, calaram-se, no Brasil, os defensores das políticas econômicas argentina e venezuelana — não quer dizer que deixaram de apoiar o kirchnerismo e o chavismo, do ponto de vista político e ideológico. Mas é aconselhável acompanhar de perto as duas crises, para se ter a dimensão das consequências da aplicação de modelos que, em nome de ideologias, não respeitam as leis mais simples da economia.
Colômbia: ainda as Farc - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE
CORREIO BRAZILIENSE - 25/05
A eleição presidencial de hoje na Colômbia é dessas ocasiões um tanto raras, nas quais cabe aos vizinhos observar com atenção o desfecho da disputa para além das fronteiras do próprio país que vai às urnas. Embora não caiba a terceiros opinar sobre a escolha, ela determinará o rumo de um processo cujo alcance diz respeito à segurança dos países fronteiriços - caso do Brasil, separado do território colombiano por limites praticamente imaginários, traçados em meio à floresta amazônica.
Não é segredo que a campanha teve como tema dominante as negociações de paz desenvolvidas em Havana, desde o fim de 2012, entre o governo do presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Santos, eleito há quatro anos na esteira do sucesso obtido até então contra a principal guerrilha de inspiração esquerdista no país, luta pelo segundo mandato sob o compromisso de pôr fim a um conflito armado que, coincidentemente, está completando meio século na próxima semana.
A julgar pelas pesquisas de opinião, o presidente deverá enfrentar segundo turno contra o direitista Óscar Iván Zuluaga, que se lançou candidato defendendo o retorno à política de guerra total do antecessor imediato de Santos, Álvaro Uribe. Foi como ministro da Defesa de Uribe que o atual mandatário se credenciou para ocupar a Casa de Nariño, mas a abertura do diálogo com as Farc colocou-o em rota de colisão com o antigo "padrinho". O ex-presidente, eleito em março para o Senado com votação consagradora, tornou-se o grande troféu de Zuluaga, que cresceu na reta final e pode até mesmo sair do primeiro turno à frente de Santos.
Como é recorrente nas eleições colombianas, a campanha foi marcada por incidentes capazes de radicalizar posições e desafiar a maturidade das instituições. Ambos os favoritos para o segundo turno perderam assessores de alto escalão envolvidos em escândalos. No caso do atual presidente, o pivô foram contribuições supostamente recebidas de doadores ligados ao narcotráfico - acusação desmentida, porém fatal para o envolvido. Do lado oposto, a crise teve como epicentro um vídeo no qual o candidato conversa com o suspeito de traficar com informações sigilosas sobre as conversações de Havana, obtidas por escuta clandestina.
Do ponto de vista do Brasil e dos demais vizinhos, o interesse maior é a preservação da legalidade e da estabilidade institucional, valorizadas nos anos recentes pelo notável incremento da segurança pública - fruto dos êxitos obtidos contra as Farc. Ao longo de cinco décadas, o conflito armado colombiano entrelaçou-se a tal ponto com o fenômeno do tráfico de drogas e armas que chegou a produzir "contágio" extraterritorial. Basta lembrar, no caso brasileiro, que foi o Exército colombiano, numa ofensiva contra as Farc, quem capturou na selva o "capo" Fernandinho Beira-Mar.
Os colombianos vão às urnas com as negociações a meio caminho na capital cubana. O governo de Santos e os emissários da guerrilha já fecharam acordo sobre reforma agrária, inserção dos rebeldes na política institucional e combate às drogas. Desde terça-feira até a 0h da próxima quarta, está em vigor um cessar-fogo unilateral das Farc, para facilitar a votação e a apuração. Seja qual for a decisão soberana dos eleitores, é legítimo que os governos sul-americanos convidem o vitorioso a não colocar a perder os resultados já obtidos à mesa, em Havana.
Não é segredo que a campanha teve como tema dominante as negociações de paz desenvolvidas em Havana, desde o fim de 2012, entre o governo do presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Santos, eleito há quatro anos na esteira do sucesso obtido até então contra a principal guerrilha de inspiração esquerdista no país, luta pelo segundo mandato sob o compromisso de pôr fim a um conflito armado que, coincidentemente, está completando meio século na próxima semana.
A julgar pelas pesquisas de opinião, o presidente deverá enfrentar segundo turno contra o direitista Óscar Iván Zuluaga, que se lançou candidato defendendo o retorno à política de guerra total do antecessor imediato de Santos, Álvaro Uribe. Foi como ministro da Defesa de Uribe que o atual mandatário se credenciou para ocupar a Casa de Nariño, mas a abertura do diálogo com as Farc colocou-o em rota de colisão com o antigo "padrinho". O ex-presidente, eleito em março para o Senado com votação consagradora, tornou-se o grande troféu de Zuluaga, que cresceu na reta final e pode até mesmo sair do primeiro turno à frente de Santos.
Como é recorrente nas eleições colombianas, a campanha foi marcada por incidentes capazes de radicalizar posições e desafiar a maturidade das instituições. Ambos os favoritos para o segundo turno perderam assessores de alto escalão envolvidos em escândalos. No caso do atual presidente, o pivô foram contribuições supostamente recebidas de doadores ligados ao narcotráfico - acusação desmentida, porém fatal para o envolvido. Do lado oposto, a crise teve como epicentro um vídeo no qual o candidato conversa com o suspeito de traficar com informações sigilosas sobre as conversações de Havana, obtidas por escuta clandestina.
Do ponto de vista do Brasil e dos demais vizinhos, o interesse maior é a preservação da legalidade e da estabilidade institucional, valorizadas nos anos recentes pelo notável incremento da segurança pública - fruto dos êxitos obtidos contra as Farc. Ao longo de cinco décadas, o conflito armado colombiano entrelaçou-se a tal ponto com o fenômeno do tráfico de drogas e armas que chegou a produzir "contágio" extraterritorial. Basta lembrar, no caso brasileiro, que foi o Exército colombiano, numa ofensiva contra as Farc, quem capturou na selva o "capo" Fernandinho Beira-Mar.
Os colombianos vão às urnas com as negociações a meio caminho na capital cubana. O governo de Santos e os emissários da guerrilha já fecharam acordo sobre reforma agrária, inserção dos rebeldes na política institucional e combate às drogas. Desde terça-feira até a 0h da próxima quarta, está em vigor um cessar-fogo unilateral das Farc, para facilitar a votação e a apuração. Seja qual for a decisão soberana dos eleitores, é legítimo que os governos sul-americanos convidem o vitorioso a não colocar a perder os resultados já obtidos à mesa, em Havana.