sexta-feira, março 14, 2014

Desafios do feminismo - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 14/03

SÃO PAULO - Como todos os anos, feministas aproveitaram o Dia Internacional da Mulher para reclamar que elas ganham menos do que homens para desempenhar as mesmas funções, estão sub-representadas no Parlamento e em algumas carreiras científicas. Temos aqui várias discussões interessantes.

Em primeiro lugar, é importante separar o plano institucional do das coisas do dia a dia. E, no nível das instituições, o feminismo venceu a parada. Já foram revogadas todas as disposições jurídicas que conspiravam para tornar mulheres cidadãs de segunda categoria, como a definição do marido como chefe da família, que, apesar de relativizada pela Carta de 88, fez parte de nosso ordenamento jurídico até 2002. Hoje, se restam mecanismos discriminatórios, eles são todos favoráveis à mulher, como a dispensa do serviço militar obrigatório e o direito a uma aposentadoria mais precoce.

Na esfera cotidiana, entretanto, restam desafios. A questão salarial é um deles. A dificuldade é que, embora a discriminação fique patente nas estatísticas, é quase impossível demonstrá-la num caso concreto, já que a diferença nos vencimentos poderia em princípio basear-se em razões legítimas, como produtividade, jornada de trabalho e até a disposição para pedir aumentos.

Mais intrigante é a participação das mulheres na política e em certas carreiras. Aqui eu penso que o feminismo pode estar querendo demais. Não vejo por que a proporção de mulheres nessas áreas deveria corresponder à estrutura demográfica da população. O limite, penso, deve ser dado pela própria vontade das mulheres de ocupar essas posições. Se não existem obstáculos legais nem culturais à sua entrada, então não há motivos para empurrá-las para fazer aquilo que não querem. A proposta original do feminismo, aliás, era assegurar que as mulheres pudessem exercer a sua autonomia, não seguir os mesmos passos dos homens.

Contabilidade criativa para pagar o custo das térmicas - RIBAMAR OLIVEIRA

VALOR ECONÔMICO - 14/03

O custo pelo uso intensivo das usinas térmicas, que produzem energia muito mais cara, será de R$ 12 bilhões neste ano, segundo estimativa divulgada ontem. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o secretário do Tesouro, Arno Augustin, no entanto, não explicaram porque, desse total, apenas R$ 4 bilhões serão despesas do Tesouro, ou seja, despesas primárias. Os outros R$ 8 bilhões serão pagos com recursos levantados em empréstimos junto a instituições públicas e privadas pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que é uma entidade privada ligada ao setor.

Mantega e Arno não explicaram qual foi o critério utilizado para essa divisão da conta. É legítimo perguntar por que o Tesouro não entrou com apenas R$ 1 bilhão ou com R$ 2 bilhões e a CCEE com o restante. Ou até mesmo porque a CCEE não levanta no mercado os R$ 12 bilhões necessários para pagar toda a conta, deixando o contribuinte livre.

A arbitrariedade da decisão anunciada ontem lembra aquela história atribuída à ex-ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello, do governo Collor. Ela teria escrito os números 30, 50 e 70 em três pedaços de papel e os jogados para o alto. A ministra pegou um deles, antes que ele caísse no chão. Estava escrito 50. E assim teria decidido que cada brasileiro só poderia sacar 50 cruzeiros (a moeda da época) de sua conta corrente e de poupança.

Aparentemente, o Tesouro entrou com apenas R$ 4 bilhões porque esse é o montante que o governo conseguirá cobrir neste ano com receita tributária. Ou seja, qualquer valor acima disso afetaria o superávit primário do setor público projetado para este ano, que é de 1,9% do Produto Interno Bruto (PIB). Para pagar essa despesa adicional, Mantega e Augustin anunciaram que o governo vai renovar o Refis, que é o programa de parcelamento com vantagens de débitos tributários, e aumentar alguns tributos, que não especificaram.

No ano passado, a presidente Dilma Rousseff decidiu que o custo pelo uso das térmicas não seria repassado, de imediato, aos consumidores e mandou a conta para o Tesouro. Agora, o governo decidiu novamente, talvez por causa do ano eleitoral, que o consumidor não pagará nem mesmo um pedaço dessa conta em 2014 e mandou uma parte dela para o Tesouro e autorizou a CCEE a fazer operações financeiras para cobrir o restante. Esse endividamento decorrerá, portanto, de uma decisão do governo, mas não impactará a dívida pública, pois foi empurrado para o setor privado (a CCEE). A situação será mais grave se a Caixa Econômica Federal, o BNDES e o Banco do Brasil forem chamados a conceder os empréstimos.

Alemão com o bigode de sempre - BARBARA GANCIA

FOLHA DE SP - 14/03

Dia de semana, de tarde, marmanjo está lá sem fazer nada, ao lado da moto último tipo, jogando carteado

É sempre a mesma promiscui​dade. Quando neguinho es​creve um texto para o jornal cobrindo o filme de elogios, pode apostar, tem lance de amizade no meio. Comigo não poderá ser dife​rente. 

Sim, "Alemão" foi produzido por meu amigo de fé, meu irmão cama​rada. No filme atuam o marido da minha querida colega, o brother do meu irmão morto e o filho da minha amiga. É mais fácil gostar de coisas feitas por pessoas que falam a sua língua, qual é, vai encarar? 

Mas "Alemão" não foi um caso de amor à primeira vista. Caí na arma​dilha que ele lança, a do "moci​nho/bandido", feito pata até en​tender que não tinha entendido na​da. E o que pega ali é que você está diante de um "Os Infiltrados" dos tró​picos, em que uns dão a alma, outros a vendem e todos pagam um preço altíssimo. As coisas acabam mal, muito mal, como têm acabado na vida real, você já reparou? 

Tenho visto muita gente falando horrores dos "black blocs", mesmo sem entender direito quem são.

O potencial de dano que eles atri​buem ao grupo é desmesurado: "Os black blocs' esvaziaram as manifestações de junho, as pessoas ficaram com medo de ir à rua"; "Ah, se eles fossem como os caras-pintadas". 

Pois é, parece que as coisas não têm chegado a bom termo de uns tempos para cá. Estamos encaste​lados numa torre de Babel onde um não entende o que o outro diz. 

Não, veja: as manifestações per​deram foco por falta de objetivida​de. A classe média é frouxa, não sa​be o que quer, precisa que a TV diga a ela onde está o saldão da semana para que mexa a bunda do sofá. Quanto a comparar os caras-pinta​das aos manifestantes de hoje, é brincadeira? Os de 25 anos atrás ti​nham esperança na democracia que nascia, os protestos refletiam isso. A quebradeira de hoje carrega a desconfiança e o desânimo no sis​- tema. Quem ainda se ilude que seu voto irá mudar alguma coisa? 

O filme com Caio Blat, Antonio Fagundes, Otávio Müller, Milhem Cortaz, Gabriel Braga Nunes, Ma​riana Nunes e Marcello Melo Jr. fala sobre a tentativa de pacificação dos morros cariocas. A ação se passa nas 48 horas antes da tomada do Alemão pela polícia em 2010. 

Na estreia, em São Paulo, o diretor José Belmonte homenageou os moradores do morro. Enquanto aguardávamos o início da sessão, eles estavam sob fogo cerrado entre policiais e traficantes numa guerra que continua indomada.

 Lembra da empolgação quando nascia o projeto das UPPs? Fala​va-se no teleférico, alternativa para uma geografia hostil a compras de mês, cadeirantes, bujões de gás... Eike Batista iria erguer monumen​tos incríveis. E o secretário de Se​gurança, José Maria Beltrame, bem, esse era quase um semideus. 

Fui ao Vidigal conhecer o projeto. Os moradores não queriam falar e a polícia, mal treinada, oscilava entre medo e botar banca. Lem​bro de um soldado muito prosa, que acabou me contando que era a mu​lher a causadora do abuso sexual por se vestir de forma insinuante. Ô, babaca. 

Saí de lá achando que era festa de fachada, que, como sempre, fariam faxina, colocariam "ordem" sem cuidar do social. 

Tenho andado pela Rocinha, He​liópolis e Paraisópolis. Melhoras, há. Eu gosto da comunidade. Pes​soal é divertido, sociável e bem mais inteligente do que os cretinos apáticos que conheço da vida intei​ra dos Jardins. Ainda assim, pouca coisa mudou no que diz respeito ao comportamento. No meio da tarde, em qualquer dia da semana, você encontra marmanjo sentado fa​zendo nada, jogando carteado, na maior estica, moto último tipo, car​rão tunado --nem mesmo o Chiqui​nho Scarpa vive tão bem.

Por uma internet livre, não ao Marco Civil! ROBERTO FREIRE

BRASIL ECONÔMICO - 14/03

Uma das prioridades do governo de Dilma Rousseff, o projeto do Marco Civil da internet é uma ameaça à liberdade e mais uma tentativa do PT de controlar aquilo que, por sua própria natureza, não pode se submeter à ingerência estatal. A aprovação do texto defendido pelo Planalto violaria um princípio fundamental que acompanha a rede desde o seu surgimento: a liberdade incondicional e irrestrita. Os entusiastas de uma lei específica para a internet citam a chamada neutralidade da rede como justificativa para o Marco Civil.

Seja por desconhecimento ou má fé, os arautos do petismo ignoram o fato de que a própria Agência Nacional de Telecomunicações já tem entre suas atribuições a regulação e a fiscalização da tal neutralidade. Questões que envolvam empresas concessionárias e grupos de telefonia estão igualmente amparadas por leis específicas do setor de comunicação.

A Constituição também assegura, de forma inequívoca, o direito à honra, à intimidade e à vida privada, e qualquer violação a essas garantias pode resultar em processos criminais e cíveis. O mesmo vale para casos de pedofilia e racismo, infelizmente muito comuns na rede, bem como violações a Direitos autorais ou do consumidor, devidamente coibidas pela legislação.

Além do viés autoritário intrínseco ao PT e manifestado, por exemplo, em sucessivas tentativas de controle da imprensa ou ataques à honra de ministros do Supremo Tribunal Federal que não se curvam aos interesses governistas, o "lobby" pelo projeto atende aos anseios da máquina de propaganda do partido. Dilma deseja faturar politicamente com o Marco Civil durante uma reunião cujo tema é a "governança da internet", seja lá o que isso signifique, em abril. Mas o Parlamento, felizmente, não tem a pressa irresponsável do marketing puramente eleitoreiro.

Qualquer iniciativa do governo no sentido de controlar a internet dá margem para sentenças descabidas como a proferida recentemente pelo ministro Admar Gonzaga, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que determinou a retirada do ar no Facebook de uma página em apoio à pré-candidatura do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, à Presidência. Em 2012, o PPS já havia apresentado ao Supremo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) em que pedia a derrubada da proibição de manifestações de cunho político nas redes sociais antes do início da propaganda eleitoral. A Adin ainda não foi examinada, o que propicia abusos como o cometido pelo TSE.

Para casos como este, assim como no Marco Civil, vale um princípio inegociável: a livre manifestação do pensamento não é uma concessão do Estado, mas um direito fundamental de todos os cidadãos. E nenhuma lei eleitoral ou o famigerado código da internet podem se sobrepor ao que determina a Constituição.

Não existe nação democrática que tenha criado uma lei específica para a internet e não será o Brasil, que lutou tanto para extirpar a ditadura, o primeiro a permitir tamanho obscurantismo

Meio século depois, as mesmas aflições - WASHINGTON NOVAES

O Estado de S.Paulo - 14/03

O noticiário das últimas semanas - agora com tropas russas cavando trincheiras para a guerra na Crimeia, segundo os ucranianos - tem levado o autor destas linhas de volta a mais de meio século atrás, 1962, quando, jovem jornalista, acompanhava, aflito, nos jornais (a televisão ainda não tinha o alcance de hoje) o noticiário do avanço da frota soviética que navegava em direção a Cuba transportando mísseis nucleares. Parecia a antevéspera da guerra nuclear, já que os Estados Unidos não admitiam a presença dos mísseis ali, os quais seriam uma represália soviética à malograda tentativa de invasão de Cuba, na Baía dos Porcos, por 1.297 exilados cubanos treinados pela CIA, o órgão norte-americano de contraespionagem. Somente um rasgo de bom senso maior levou John F. Kennedy e Nikita Kruchev a um diálogo direto, que evitou a guerra.

Apesar dos pecados dos dois dirigentes das superpotências, o mundo deve-lhes o não confronto bélico, com suas consequências inimagináveis. Hoje, quem fará isso? Com que poderes? Que eficácia? Seguimos em meio ao palavrório mútuo, com cada uma das potências fazendo o que lhe apraz - mesmo quando descoberta e exposta, por exemplo, a espionagem eletrônica (da qual o Brasil ainda espera "explicações").

A realidade é a do poder de Rússia, Estados Unidos, às vezes União Europeia, China, em tempos nos quais abundam informações também sobre a concentração cada vez maior do poder econômico no "Primeiro Mundo" - a tal ponto que os 65 bilionários brasileiros têm "apenas" um total de US$ 220 bilhões, 3% do total mundial, que é de US$ 6,4 trilhões, em mãos de 1.645 pessoas (FP, 4/3). Que importa se os dramas maiores são os das mudanças do clima e do consumo anual de recursos em volume que o planeta não pode repor? Se quase 1 bilhão de pessoas passa fome e 1,2 bilhão "defeca ao ar livre", como dizem os órgãos da ONU, porque não dispõem de serviços sanitários?

A crise pode até chegar a partes do mundo "desenvolvido" - Espanha, Itália, Grécia, Portugal, principalmente. A guerras podem alastrar-se pelo Oriente Médio e pelo Sul da Ásia. Mas o inferno mais vasto está mesmo na África, onde a ONU aponta massacres étnicos em países onde grupos disputam a herança colonial de recursos naturais, minérios, petróleo, madeira, etc., para vendê-la aos senhores que os retiraram de seus lugares de origem. É assim no Congo, onde já morreram mais de 5 milhões de pessoas nos conflitos entre hutus e tutsis; no Sudão do Sul, onde a ONU aponta "massacres étnicos" nas tentativas de golpes e conflitos entre grupos nativos; na Nigéria, em meio à disputa de recursos como os que abastecem a indústria mundial da informática (que para lá exporta lixo). Muitos lugares.

Enquanto isso, morrem às centenas pessoas que tentam, ilegalmente, imigrar para a Europa em barcos que afundam por excesso de peso, como nas proximidades da Itália, nas últimas semanas. Nesse país já há 32 mil refugiados ilegais, diz a ONU (Agência Estado, 12/3). Também morreram de sede quase cem pessoas (52 crianças, 33 mulheres) que tentavam imigrar ilegalmente, atravessando parte do Deserto do Saara (1/11/2013); muitas delas "tiveram seus corpos devorados por chacais", segundo o noticiário. Sucedem-se horrores na Tunísia, na Líbia, no Egito. E as perguntas ficam sem respostas: o que é pior, ditadura ou violência anárquica espraiada?

A África é o continente onde estão ocorrendo as dez maiores taxas de crescimento econômico neste momento, observa o diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o brasileiro José Graziano da Silva. Mas isso não impede as tragédias sociais. Que se amenizam quando não há conflitos étnicos, como observou recentemente em artigo (Folha de S.Paulo, 9/3) o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles ao visitar Botsuana, país vizinho da África do Sul, Namíbia e Zimbábue. "A explicação consensual é que as fronteiras de Botsuana foram estabelecidas de forma autônoma, em linhas étnicas e culturais, ao contrário do padrão imposto pelas potências coloniais, que misturaram, conforme seus interesses, etnias e culturas diferentes ou mesmo antagônicas. Essa difícil convivência cobra, até hoje, preço enorme em vidas, bem-estar e produção", escreve Meirelles.

Conflitos graves aproximam-se das nossas fronteiras, ao norte e ao sul - Venezuela e Argentina -, sem falar em espasmos em outras partes. Mas já não sabemos por onde seguir. Da mesma forma que não conseguimos definir com clareza e rapidez caminhos para enfrentar as gravíssimas crises que atravessamos nas áreas de recursos hídricos, energia e clima. Não basta saber se vai ou não haver racionamento de água no curto prazo. Que políticas eficazes temos para enfrentar mudanças climáticas em geral, secas históricas e inundações inéditas? Como serão adequadas as políticas do clima, se esses estados de calamidade prosseguirem ou se repetirem em prazos curtos? Que se fez desde o racionamento de 2001 para enfrentar a possível repetição agora na pauta?

Não adianta fugir à questão: as mudanças estão em curso e é indispensável estarmos preparados para situações extremas. Como ignorar o diagnóstico das associações do setor elétrico (O Globo, 8/3) de que, "com a geração de energia hidrelétrica limitada devido ao baixo volume de água em seus reservatórios e a geração das usinas já em seu limite de capacidade (17 mil MW), o País precisa hoje reduzir entre 5% e 10% o consumo de eletricidade". E a previsão para os próximos meses "não é animadora".

Que fazer? Perder a esperança? Candidatar-se a uma viagem para um dos 715 planetas fora do sistema solar recentemente anunciados? Melhor pensar como o escritor Ariano Suassuna (Ecológico, fevereiro de 2014): "O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso".

Deu o curto-circuito - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 14/03

O governo fingiu até a véspera que não havia um problema na área de energia. E ontem ele rasgou a fantasia. Assumiu que o rombo deste ano será de R$ 21 bilhões e já avisou que haverá aumento de impostos e elevação futura nas tarifas. Isso para cobrir os custos do preço irreal da energia e da desastrosa gestão na área. O consumidor vai pagar os R$ 8 bilhões de empréstimos tomados pela CCEE a juros de mercado.

Tudo o que foi anunciado ontem é para resolver o problema que o governo negava existir. O ministro Mantega e a cúpula do setor elétrico disseram que, além dos R$ 9 bilhões previstos no Orçamento, o governo vai pôr mais R$ 4 bilhões na Conta de Desenvolvimento Energético e autorizou a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica a tomar um empréstimo de R$ 8 bilhões no mercado. No futuro, quando o custo for passado para as tarifas, a CCEE vai ser ressarcida pelos consumidores por esse empréstimo. Eles pagarão, assim, além do preço das térmicas, os juros desse financiamento bilionário.

O secretário Arno Augustin disse que não é para somar essas parcelas todas e concluir que o rombo é de R$ 21 bilhões. Sim, é para somar, o rombo é esse. O dinheiro sai de pontos diferentes mas vão todos para o mesmo lugar: subsidiar hoje o preço da energia para manter a fantasia político-eleitoreira do preço barato e depois jogar tudo no bolso do contribuinte-consumidor assim que passarem as eleições. O eleitor que foi ludibriado pela propaganda enganosa da queda dos preços da energia no ano passado está, sem saber, ficando endividado com um passivo que cresce.

São duas as fontes de rombo. Uma é a energia mais cara gerada pelas térmicas e que é paga pelas distribuidoras. Pelas regras do jogo, elas podem repassar isso para a conta de energia. A segunda é o custo extra que algumas distribuidoras estão tendo por ter que comprar energia no mercado livre para cobrir as suas necessidades. E isso porque o leilão de energia entre geradores e distribuidores foi tão mal feito que as distribuidoras não conseguiram contratar toda a energia que precisavam entregar.

É isso que o setor define como "exposição involuntária". Ao fazer um leilão no começo do ano passado para contratar a energia de 2014, a EPE forçou o preço máximo para baixo de maneira artificial. Ninguém quis vender a energia a esse preço e por isso as geradoras não apareceram no leilão. Isso deixou as distribuidoras descobertas. Agora a energia no mercado spot explodiu e as mais expostas estão quebrando.

O que tudo isso mostra é o quanto o governo tem sido imprudente na questão energética. Na quarta-feira, o presidente da Empresa de Pesquisa Energética, Maurício Tolmasquim, disse no Congresso que o Brasil enfrenta "a pior hidrologia desde os tempos que começaram a ser registrados em 1931". Já o secretário executivo do Ministério das Minas e Energia, Márcio Zimmerman, disse que não seria feita nenhuma medida de redução do consumo para não incomodar o consumidor porque se chovesse haveria o "o custo do arrependimento".

Ora, se é a pior hidrologia da história tem que haver medidas preventivas, sim, para reduzir o consumo. Mas o governo não a toma para não "incomodar". Se alguém quisesse imaginar um roteiro de erros não teria tanta imaginação. O governo baixou uma MP mudando regras do jogo e antecipando o fim de concessões para reduzir o preço de energia, exatamente quando o custo estava subindo pelo uso das térmicas no ano passado. Para isso, o Tesouro teve que usar R$ 9 bilhões para subsidiar o preço.

Este ano tudo piorou porque a chuva foi ainda menor. As térmicas estão sendo usadas num nível ainda mais intenso. E, além disso, as distribuidoras estão comprando energia no mercado livre porque não houve a gestão eficiente do modelo dos leilões entre fornecedores e distribuidores de energia.

A solução foi mais gambiarra. Além dos R$ 9 bilhões já no Orçamento para cobrir essa diferença entre preço e custo de energia, o governo vai colocar mais R$ 4 bi. E de onde virá o dinheiro? De "medidas tributárias", ou seja, impostos. Além disso, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica vai tomar um empréstimo para ajudar no socorro às distribuidoras. A CCEE é uma entidade privada que o governo está mobilizando para ajudar a resolver o problema. Só que subsidiar a energia com empréstimo é uma insensatez. E os juros sobre esse empréstimo, a quanto levará esse valor? O governo entrou em curto-circuito na área de energia.

A China espirra, o Brasil sua - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 14/03

A ECONOMIA DA CHINA teve o pior início do ano em quase uma década, soube-se ontem. O investimento em expansão da capacidade produtiva e construção cresceu no ritmo mais lento desde 2002. A produção da indústria não aumentava tão pouco desde 2009. As vendas do varejo não cresciam tão devagar desde 2004. Há queda de preços no atacado.

Além do mais, o governo ainda não recuou na intenção de frear e mudar o jeitão do crescimento chinês. Isto é, dar cabo do excesso de investimento e do crescimento demasiado do crédito, fenômenos siameses. A China cria capacidade produtiva demais, ociosa, com base em crédito fácil, mas não apenas.

Muito financiamento tem origem num sistema bancário paralelo ("shadow banking"). Trata-se de fundos que captam dinheiro para investimentos em projetos com retornos e garantias duvidosas e escassa supervisão.

A situação fica ainda um pouco mais tensa, a princípio, porque o governo chinês quer da cabo do descaso com o risco de um negócio dar com os burros n'água. Como o Estado costumava salvar da falência empresas, bancos e mesmo fundos de investimento temerários, havia estímulo adicional para a expansão de crédito e empreendimentos ruins.

Nos últimos 15 dias, uma siderúrgica deu calote num empréstimo e uma empresa de painéis solares deixou de pagar juros de seus títulos. As empresas são privadas e pequenas, embora a quebra da siderúrgica possa levar outras empresas e até bancos menores consigo. Os povos do mercado mundial especulam se tais eventos vão detonar uma onda de pânico.

No entanto, o governo chinês disse nesta semana que haverá quebras, mas que vai, digamos, moderar o risco sistêmico (de quebras em cadeia). Quer dosar a implementação da disciplina de mercado (moderação no crédito e no investimento, melhora de sua qualidade, incentivada, claro, pelo risco de quebra, sem o colchão do Estado).

Relatórios de bancões mundiais mais entendidos em China especulam, de resto, que o governo não vai deixar a peteca cair, arriscar um crescimento do PIB muito menor que a meta de 7,5% neste ano -desde a crise de 2008, quando a economia rateia, o governo dá uma relaxada no crédito.

E daí? Esses piripaques chineses têm derrubado, por exemplo, o preço de ferro e cobre. Pode, pois, jogar para baixo o preço de muita exportação de país emergente. Mas não há muita certeza nem mesmo sobre os motivos da queda do preço de minerais metálicos. Se deve ao desaquecimento chinês, de fato, ou ao fato de que o governo quer dar cabo das operações de tomada de crédito garantidas por estoques de ferro ou cobre, como se faz na China para inflar o crédito, dando um drible em restrições mais diretas do governo?

Uma queda firme no preço dessas commodities abala alguns países, Chile e Peru, por exemplo. Sim, o Brasil exporta um mundo de ferro para a China, mas o efeito direto na economia brasileira não seria lá grande. No entanto, uma nova rodada de especulações, realistas ou amalucadas, sobre os problemas das economias emergentes pode nos contaminar, como tem ocorrido desde maio do ano passado, vide as desvalorizações fortes do real


Redução de marcha - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 14/03

O consumo no Brasil continua forte, mas há sinais de que começa a correr mais dentro da normalidade, sem provocar distorções tão fortes como as provocadas nos últimos três anos.

Em janeiro (não há dados consolidados mais recentes), o volume de vendas no varejo cresceu 0,4% em relação a dezembro, que se segue a uma queda de 0,2% em dezembro em relação ao mês anterior (veja gráfico). Quem não passa do papo de ascensorista - tipo subiu-desceu, ficou no mesmo andar - não consegue apreender o movimento mais importante.

E o mais importante é a desaceleração do consumo, especialmente quando se olha para além da natural volatilidade das estatísticas mês a mês.

Essa desaceleração é fator positivo na medida em que a principal distorção da economia brasileira é a de que a demanda vinha correndo bem acima da oferta, daí a inflação e a disparada das importações. Nos 12 meses terminados em janeiro, o consumo cresceu 4,3% e, no mesmo período (na verdade, terminado em dezembro), já sabemos que o PIB avançou apenas 2,3%.

Duas são as considerações a fazer a partir dessa primeira aproximação com esses dados. A primeira tem a ver com as verdadeiras causas dessa desaceleração.

Uma dessas causas é a redução do crescimento da renda. A velocidade da recomposição dos salários já é mais fraca, na medida em que o crescimento do PIB, que entra no cálculo do reajuste do salário mínimo, também tem sido substancialmente mais baixo. Mas o principal redutor de renda tem sido a inflação, elevada demais, que tem oscilado em torno dos 6% em períodos de 12 meses. A alta generalizada de preços reduz o volume de mercadorias e serviços que cabe no orçamento doméstico.

Também funciona como redutor do aumento do consumo a expansão mais vagarosa das operações de crédito livre dos bancos. Há dois anos, esse segmento avançava à velocidade de 17% ao ano. Agora, não passa de 7,5%. Ou seja, crédito a passos mais lentos determina consumo também a passos mais lentos.

O principal fator de contenção da expansão do consumo é a política monetária. O Banco Central está reduzindo a ração de moeda na economia. É a política cujos efeitos correspondem a aumento do preço do dinheiro, que são os juros. A taxa básica (Selic) estava a 7,25% ao ano em abril de 2013 e chegou a 10,75% ao ano agora, em fevereiro.

A segunda consideração a fazer tem a ver com o que se pode esperar da política econômica orquestrada pelo governo. Se esse crescimento mais lento do varejo acontecesse há pouco mais de um ano, o governo Dilma estaria preocupado porque havia elegido o consumo como locomotiva da atividade econômica. Foi por isso que deixou a gastança correr mais solta. Depois das bordoadas que levou, o governo entendeu que tem de dar mais força para o investimento. Ao mesmo tempo, viu que é preciso mais cuidado com a política fiscal (equilíbrio das contas públicas). Se não houver recaída nessa postura de recuperação, as despesas do setor público terão menos influência no ritmo do consumo. Do lado da política monetária (política de juros) também se podem esperar freios mais curtos.

Gestão temerária - ROGÉRIO FURQUIM WERNECK

O GLOBO - 14/03

Na gestão da crise energética, há um desalinhamento entre os interesses do Planalto


A probabilidade de que um racionamento de energia elétrica se faça necessário tornou-se preocupantemente alta. E vem aumentando a cada dia. Mas o governo insiste em fingir que o problema não existe. Recusa-se a tomar medidas preventivas que, se adotadas a tempo, poderiam reduzir substancialmente o risco de ocorrência de um quadro mais grave de insuficiência de oferta de energia. A seis meses e meio das eleições, o Planalto teme, com certa dose de razão, que o reconhecimento pelo governo de que o país está à beira de um racionamento possa ter efeito devastador sobre o projeto da reeleição. Prefere jogar com a sorte.

Boa parte da mistificação que se construiu em torno das supostas qualidades de Dilma Rousseff como administradora está relacionada ao setor elétrico. E ao papel central que a presidente desempenhou, ao longo dos três últimos governos, na condução da política energética. Tendo feito e desfeito o que bem entendeu no setor elétrico por mais de 11 anos, a presidente não tem hoje a quem repassar a culpa pela precariedade da oferta de energia que se vê no país.

Não é fácil para o Planalto reconhecer que, ao fim e ao cabo de três governos, as coisas desandaram a tal ponto nessa área, sobretudo depois de se ter permitido adotar um discurso sobre política energética constrangedoramente triunfalista. Para perceber de forma mais concreta a real extensão desse triunfalismo, vale a pena ver de novo, à luz do quadro atual, o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff à Nação, feito há pouco mais de um ano, em 23/01/2013 (disponível em http://zip.net/bqmMGk), para anunciar redução de tarifas de energia elétrica e garantir, de forma peremptória, que não havia “nenhum risco de racionamento ou de qualquer tipo de estrangulamento no curto, no médio ou no longo prazo”.

Por compreensíveis que possam ser as razões da presidente Dilma para se negar a reconhecer a dura realidade do setor elétrico, a verdade é que essa negação da existência do problema impõe ao país sério risco de que os danos dos desdobramentos da crise energética sejam muito maiores do que poderiam ser. Famílias e empresas não vêm sendo devidamente alertadas para o grave quadro de escassez que hoje se vive. E nem estimuladas a racionalizar e conter a demanda de energia. Muito pelo contrário. Tarifas de energia continuam sendo pesadamente subsidiadas pelo Tesouro. E tudo indica que esses subsídios, com que o governo vem sustentando artificialmente suas promessas de energia barata, deverão ser intensificados até as eleições.

O que se vê, portanto, é um grave desalinhamento entre os interesses do país e os interesses do Planalto na gestão da crise energética. A essa altura do processo eleitoral, o reconhecimento explícito da real extensão das dificuldades e a adoção de medidas preventivas bem concebidas, que mobilizem os consumidores e incentivem a contenção da demanda de energia, imporiam custo político proibitivamente alto à presidente Dilma Rousseff. Na medida do possível, o Planalto continuará apostando na sorte e nas possibilidades de prolongar a dissimulação da escassez de energia com farto uso de recursos do Tesouro.

Se essa aposta terá sucesso, é outra questão. É bem possível que o agravamento da precariedade da oferta de energia exija escalada cada vez mais custosa nessa grande operação de dissimulação. Em meio ao desespero, o governo já aventa até a possibilidade de recorrer aos dispendiosos geradores a diesel mantidos como back up por grandes consumidores comerciais de energia, como shoppings e supermercados. O que, naturalmente, exigirá subsídios ainda mais pesados do Tesouro.

O nome do jogo é esticar a corda tanto quanto possível e tentar empurrar o problema para depois das eleições. Até lá, gostemos ou não, a gestão da crise energética estará pautada pelo marqueteiro do Planalto. A menos, claro, que a aposta não tenha sucesso e o racionamento se torne de fato inevitável. Mas aí já será outra história.

Me engana que eu gosto - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 14/03

1 Dilma acaba de indicar vários técnicos para seu Ministério, passando imagem de que desistiu do toma lá dá cá que vinha caracterizando as negociações com os partidos da base aliada, especialmente o PMDB

 2 Só que é tudo de mentirinha, a reforma foi toda negociada com os partidos da base, cada qual com seu bocado do governo 

3 Ao reafirmar que o processo do mensalão foi "um marco no processo penal brasileiro", ficará difícil para Barroso dar um voto a favor de uma eventual revisão criminal

A presidente Dilma Rousseff acaba de indicar vários técnicos para seu Ministério, passando uma imagem de que desistiu do toma lá dá cá que vinha caracterizando as negociações com os partidos da base aliada, especialmente o PMDB. Segundo os analistas chapas-brancas, ela teria colocado a parte podre do PMDB em seu devido lugar, dando-lhe o recado de que não aceitava mais esse jogo.

Perfeito para a propaganda que o marqueteiro João Santana prepara, vendendo a volta da faxineira ética. Só que é tudo de mentirinha, a reforma foi toda negociada com os partidos da base, cada qual com seu bocado do governo, só que desta vez nomeando técnicos.

No PMDB, a presidente Dilma trocou o deputado federal Eduardo Cunha, identificado pelo Palácio do Planalto como o comandante da banda podre do partido, pelo senador Renan Calheiros, que representaria o PMDB da Dilma e, por definição, não seria parte da podridão partidária. Vai ser difícil convencer que a presidente não trocou seis por meia dúzia.

A mais perfeita síntese da ética que comandou a mudança ministerial foi a troca do ministro da Pesca, essa peça imprescindível ao bom andamento do governo. Saiu Marcelo Crivella, para candidatar-se ao governo do Rio, e entrou no seu lugar o senador do PRB do Rio Eduardo Lopes, que vem a ser o suplente do próprio Crivela. Quer dizer, Crivella continua à frente do Ministério da Pesca.

E a crise com a bancada do PMDB da Câmara continua do mesmo tamanho. Dividir o PMDB do Senado e da Câmara pode dar certo, e Dilma ficar com os quatro minutos de tempo de televisão do PMDB. Mas as dissidências regionais continuam do mesmo tamanho.

Me engana que eu gosto.

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Nada de novo


Como já se esperava, com os votos dos novos ministros Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso, os acusados do crime de lavagem de dinheiro no processo do mensalão foram absolvidos ontem pelo novo plenário do Supremo tribunal Federal.

Espera-se agora que os dois não deem seus votos quando a tentativa de revisão criminal do julgamento se concretizar. Como disse o Ministro Marco AurélioMello, a margem para a revisão criminal é muito estreita, e é preciso que novas provas surjam ou que se constatem falsificações de documentos no processo.

Para o Ministro Barroso, então, uma decisão como essa fica mais difícil depois de declarações que colocam o mensalão como um marco no processo penal brasileiro , como voltou a repetir ontem, apesar de ser um crítico de algumas das decisões tomadas pelo plenário, duas delas, ele ajudou a rever - formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.

Ontem Barroso disse que o mensalão, processo que se encerrou ontem oficialmente, foi um rito de passagem , esperando que se produzam transformações na política a partir de suas decisões.

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Bem feito


Seria bom para a política nacional se a Mesa do Senado pegasse o senador tucano Mario Couto, do Pará, pela palavra e aceitasse a renúncia que ameaçou na tribuna do Senado.

Couto disse que renunciaria se o ex-ministro José Dirceu ficasse um só dia na cadeia. Como Dirceu já está em cana desde o ano passado, o boquirroto senador paraense teve que voltar à tribuna para se justificar, e não disse coisa com coisa.

A Mesa do Senado teria todas as condições para tratar Couto com a seriedade que ele não tem. Um advogado amigo me diz que a promessa pode ser considerada uma declaração unilateral de vontade , modalidade de negócio jurídico, sob condição suspensiva, disciplinada no artigo 104, combinado com o artigo 121, ambos do Código Civil.

Viva a guerra! - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 14/03

O poder, como o entendem os companheiros, só pode ser exercido quebrando a espinha do principal aliado

O PMDB, como regra, "só dá alegrias" à presidente Dilma Rousseff, certo? Antes disso, conduzia Luiz Inácio Lula da Silva a verdadeiros êxtases, inenarráveis, por óbvio, no idioma de Camões. E não é menos verdade que tenha feito a felicidade de FHC, de Itamar ou de Sarney. Ocorre que, de vez em quando, os peemedebistas ficam descontentes e apresentam a fatura. Na economia de mercado, há vendedores porque há compradores --e vice-versa. Vale para o comércio de apoio político, de feijão ou de drogas. Como não se vai criar uma agência reguladora para estabelecer a ética das trocas de Brasília, os protagonistas é que definem as regras da relação, tornando-se responsáveis por aquilo que cativam. Dilma não precisa nem ler "O Príncipe", basta "O Pequeno Príncipe". 

É curioso! Sempre que os petistas são, como eles dizem, "chantageados" pelo PMDB, recorrem à Quinta Cavalaria, formada pelos bravos soldados do jornalismo e do colunismo. A nossa tarefa (minha, não!) passa a ser, então, fazer a "faxina ética" em lugar do petismo, desmoralizando os peemedebistas recalcitrantes. Hora de retirar do arquivo, por exemplo, a "ficha" de Eduardo Cunha (RJ), o líder do PMDB na Câmara e chefe da rebelião, desmoralizando-o, evidenciando que suas ações atendem apenas a apelos menores e a interesses pessoais. Os petistas se apresentam como a plêiade dos éticos enfrentando "o rei da fisiologia, do baixo clero e dos interesses inconfessáveis". 

Já escrevi em meu blog e repito aqui: aplaudo de pé a rebelião liderada por Cunha. Na relação PT-PMDB, prefiro a guerra à paz. É melhor para o país. Dez ministros, mais a presidente da Petrobras, terão de dar explicações à Câmara? Haverá uma comissão para acompanhar a investigação de eventuais falcatruas na Petrobras? Tuma Jr. foi convidado a falar o que diz saber sobre o Estado policial petista? Ótimo! "E se Dilma ceder e pagar o preço de Cunha?", poderia indagar alguém. Aí eu vou vaiá-lo, ué! Também de pé! Como já fiz tantas vezes. Só que, nessa hipótese, ela também será alvo dos meus apupos. 

Acho, sim, que fazer a crônica das eventuais motivações menores desse ou daquele tem interesse jornalístico. Mas jornalista não é soldado. Ignorar que o conflito em curso é também expressão das tentações hegemônicas do petismo, como deixam claro os palanques estaduais, corresponde a abandonar o jornalismo em benefício da fofoca ou do cumprimento de uma tarefa. O PMDB é o próximo alvo dos petistas caso Dilma se reeleja. O poder, como o entendem os companheiros, só pode ser exercido quebrando a espinha do principal aliado. 

A essência da proposta de reforma política do PT, por exemplo, que está prestes a ser feita no tapetão do STF por iniciativa da turma de Luís Roberto Barroso -refiro-me ao financiamento público de campanha--, busca, no médio prazo, destroçar o PMDB. É uma aspiração compatível com os marcos teóricos da companheirada. Só não vê quem não sabe. Finge não ver quem já sabe. 

De resto, no que concerne aos marcos institucionais, o PMDB, ao menos, está entre os fiadores da democracia. Descartou, por exemplo, num congresso partidário, de modo peremptório, canalhices como o "controle social da mídia" --essa mesma que os petistas costumam pautar de forma tão eficaz contra... o PMDB. "Ah, mas existe a questão ética!" Algum coleguinha que cobre os bastidores de Brasília teria a cara de pau de asseverar que há uma substancial diferença de padrão entre os dois partidos? 

PS - Não erramos, errei! Afirmei, na semana passada, que Ricardo Lewandowski absolveu Delúbio Soares do crime de corrupção ativa. Ele o condenou. Mas livrou, sim, a cara de José Dirceu e de José Genoino. Dados os seus votos, deve-se entender que os crimes do mensalão derivaram de um concerto entre banqueiros, publicitários, Delúbio e, claro!, uma empregadinha de Marcos Valério: Simone Vasconcelos, também condenada pelo ministro. O mordomo escapou porque não entrou na história

Pingo de água fria - DORA KRAMER

O Estado de S.Paulo - 14/03

Das muitas lições que a experiência ensina, uma das mais preciosas reza que ao vitorioso não convém tripudiar sobre o derrotado.

Notadamente se a personagem em questão ocupa a Presidência da República. Qualquer exagero agora no sentido de tentar nocautear a presidente Dilma Rousseff, depois do direto no queixo que mostrou o quanto estão abaladas as estruturas da base de apoio parlamentar, poderia levar o PMDB a transitar pelo perigoso terreno da imprudência.

De onde a ideia é não confrontar. Deixar que a presidente diga primeiro quais são suas intenções. A partir desse raciocínio, a bancada do partido na Câmara decidiu atender ao pedido do Palácio do Planalto de adiar para a próxima semana a votação do projeto que estabelece o Marco Civil da Internet.

Se levado ao plenário no dia seguinte à aprovação da criação da comissão para investigar denúncias de corrupção na Petrobrás, o projeto seria rejeitado. Os deputados pemedebistas continuam dispostos a ficar junto com a oposição e votar contra, mas daqui até a próxima terça-feira tudo pode ser como pode não ser.

Vai depender de Dilma compreender as reais demandas do partido no momento, separando os anseios dos deputados - representativos das bases, vale dizer, dos delegados que votam na convenção que aprovará ou não a renovação da aliança com o PT - dos desejos individuais de Michel Temer, Renan Calheiros, José Sarney e companhia.

O que eles querem? Nessa altura não é ministério (já foram recusados dois, os da Integração Nacional e o do Turismo) nem apenas dinheiro de emendas. Precisam mostrar às suas bases que o apoio ao governo federal representa de fato um ativo eleitoral.

Hoje, reclama o PMDB, apenas o PT usufrui desse benefício. Em português claro, só os petistas conseguem mostrar aos eleitores que têm acesso à máquina do Estado. Principalmente nas localidades mais carentes, uma maneira segura de produzir votos.

Os pemedebistas rebelados resolveram entrar temporariamente no "modo observação". Deixam que a presidente faça o próximo lance. Até lá, a decisão é dar um tempo e até mesmo suspender quaisquer decisões de caráter eleitoral.

Um exemplo é o Rio de Janeiro. Depois de anunciar o apoio do partido à candidatura do tucano Aécio Neves, os dirigentes do PMDB fluminense foram aconselhados por correligionários que acompanham de perto os acontecimentos no plano federal a conter o entusiasmo.

Segundo essa análise, não custa esperar, pois as coisas estão mudando com muita rapidez. Há um mês, ninguém apostaria que o PMDB votaria em massa contra o governo na Câmara. Da mesma forma como se deteriorou de uma hora para outra, o ambiente pode voltar a ficar melhor. Ou não. Ninguém sabe.

O vice-presidente Michel Temer mesmo disse que a aliança com Dilma estava "garantidíssima" para dois dias depois ver seu partido humilhar a presidente no plenário da Câmara.

Estamos em março. A convenção que votará a renovação da aliança com o PT será em junho. Há águas demais a rolar daqui até lá. Quem se apressar pode se afogar.

Pensando em tudo. A escolha da criação da comissão para investigar denúncias de corrupção na Petrobrás como tema da votação para que o PMDB pudesse impor uma derrota ao governo não foi ocasional.

Os deputados precisavam de um assunto "do bem" justamente para evitar que o Palácio do Planalto usasse da artimanha de faturar o embate em favor da imagem de governante austera para a presidente.

Se a escolha recaísse sobre alguma medida que afetasse negativamente as contas públicas ou criasse algum tipo de favorecimento dos políticos, Dilma perderia no Congresso, mas ganharia na opinião pública.

É de amargar - ELIANE CANTANHÊDE

FOLHA DE SP - 14/03

BRASÍLIA - O Supremo encerrou o longo, tenso e polêmico julgamento do mensalão ontem, justamente quando foi confirmada uma aliança para o governo do DF que ainda vai dar muito o que falar.

Olha só quem participa: José Roberto Arruda, que renunciou ao Senado, caiu do governo do DF e foi até preso; Luiz Estevão de Oliveira, que foi cassado pelo Senado e tem uns 40 processos nas costas; Joaquim Roriz, que renunciou ao Senado e é ficha sujíssima, e suas duas filhas, Liliane e Jaqueline --que acaba de ser condenada em primeira instância.

A chapa ficou assim: Arruda para o governo, Liliane para a vice, Gim Argello (suplente de Roriz) para a reeleição ao Senado.

Uma turma da pesada... E que tem uma história bastante conturbada. Roriz foi mentor de Luiz Estevão e de Arruda, que tentou voo solo, foi abatido pelos rorizistas e estava rompido com o velho chefe. Eles todos se conhecem. E se merecem.

Logo, o maior escárnio não é eles se unirem, porque isso faz todo o sentido, mas o fato de poderem lançar chapa e disputar eleições para comandar o governo do DF, apesar das renúncias, cassações, condenações e prisões --que eu, tu, ele, nós, vós e eles estamos carecas de saber.

Sinceramente, dá um desânimo imenso, uma sensação de que nada muda mesmo, de que a esperança não é a última que morre. Ela morre e tudo continua como antes.

Segundo seus participantes, o chapão é contra a reeleição do governador Agnelo Queiroz, do PT, o que deveria levar o ministro petista Gilberto Carvalho a rever sua crítica, anteontem, num seminário em Brasília, à "criminalização generalizada" das autoridades públicas.

Pois é, gente, o que é generalizada, a criminalização ou a impunidade de poderosos? Parece que há quadrilhas demais e justiça de menos.

P.S.: Dilma fez pronunciamento na TV para badalar a redução da conta de luz. Vai fazer outro para explicar a conta de R$ 12 bilhões da energia?

De elevado conceito - RENATO FERRAZ

CORREIO BRAZILIENSE - 14/03
Desde 2007, perambula pelas gavetas e comissões do Senado o Projeto de Lei nº 464. Ele tem como meta estabelecer critérios mais objetivos para a indicação de nomes que exercerão cargos nas agências reguladoras. Como sou um eterno crítico da relação Estado-cidadão, suponho por que ele anda nesse ritmo de jabuti: o PMDB e o PT, praticamente donos de algumas agências, não demonstram interesse em que a escolha obedeça a normas claras. Como ter, no mínimo, 10 anos e experiência profissional. Ou formação acadêmica compatível com o cargo. Recentemente, um senador do PMDB justificou a escolha de aliado: "É um menino bom, trabalhador". Ué, e daí?
Hoje, para se tornar diretor ou conselheiro, bastam: a) ser brasileiro (e daí?); b) ter reputação ilibada (há muita gente aí de má reputação sem nenhuma condenação, por exemplo); c) formação universitária (isso torna alguém melhor?); e) elevado conceito (pode ser um "elevado conceito" negativo?). Perdão pela ironia, mas lembrei-me neste instante de uma figura pública que preenche todos os requisitos acima, mas rouba pirulito de criança.

Bem, o ritmo lento da tramitação dessa proposta (curiosamente de Delcídio Amaral, um petista meio escanteado do poder) também pode ser explicado pela quizumba armada, à base da chantagem, pelo PMDB da Câmara. A reação do governo, ao ceder às pressões fisiológicas dos peemedebistas, foi logo "oferecer" cargos nas agências. Aliás, para ilustrar como o PMDB "pensa no país", desde ontem tento, sem sucesso, lembrar- me de algum questionamento relevante, feito por qualquer dirigente, sobre erros de gestão dos últimos governos federais. Também, pudera: seria atirar nas próprias pernas, não é?

Insisto no tema em função do fato de que a sociedade ainda não entendeu: serviços essenciais, como fornecimento de energia elétrica, transportes e telecomunicações devem ter altíssimo padrão, como ocorre nos EUA, por exemplo. E que seus diretores não só devem se curvar ao deputado, ao senador ou mesmo ao ministro e, principalmente, à tentação de bajular empresários para ganhar vantagens - seja um cruzeiro de navio ou um futuro emprego.

A guerra de informação da militância virtual - FLÁVIO MORGENSTERN

GAZETA DO POVO - PR - 14/03

Rachel Sheherazade se tornou notícia nacional por suas declarações sobre ser “compreensível” que a população sozinha tome uma medida violenta contra um criminoso quando o Estado não age. A despeito de sua declaração não ter causado grande celeuma entre a população, que quanto mais pobre, mais sofre com a criminalidade, a militância virtual não perdoou a declaração da apresentadora do SBT Brasil.

Fora partidos como o PSol, que acionaram a Justiça contra a jornalista (alegando que afirmar que o compreensível é compreensível “fere os direitos humanos” – logo vindo do PSol, tentando praticar censura e apoiando as ditaduras socialistas mais espúrias do planeta), o grosso dos ataques veio da internet. Páginas do Facebook foram criadas, como a “Ruth Sheherazade”, que usa a imagem da apresentadora para parodiá-la como uma “irmã boazinha” de Rachel – ou seja, a versão de esquerda da jornalista.

O surpreendente na página não é sua existência, mas o grau de profissionalismo exibido em cada postagem. O texto é burilado com técnicas que o tornem bem “pontuado” para pesquisas no Google. Tem hashtags criadas por profissionais. Por exemplo, a página “de humor”, “inofensiva”, “apartidária” de repente faz um post conclamando a militância a ligar o caso do helicóptero apreendido com cocaína a Aécio Neves, pré-candidato tucano à Presidência: “Fiquei sabendo que ele tinha #LigaçõesComOAécio. Vamos investigar isso juntos?”

A mensagem é estudada. Cria uma hashtag (#LigaçõesComOAécio) que, mesmo que não dê em nada, molda o discurso da militância, para ser repetido até se tornar propaganda política. Pede para o público “ajudar” a página com uma “denúncia” à Polícia Federal, que já investiga o caso, fazendo com que muitos comentários inflem a página. Sem que se acompanhe o noticiário técnico, já se cria um factoide. Clicando na hashtag, tem-se todas as historietas formatadas que aderiram ao chamado: repetir o suposto envolvimento, mesmo que se descubra que não envolva ninguém.

Por que fazer isso numa página de humor? Por que numa página que, apenas aparentemente, mirava Rachel Sheherazade? Por que uma piada se torna propaganda política?

A internet, hoje, é o reino da Militância em Ambientes Virtuais (MAV). Pessoas muito bem pagas apenas para transformar qualquer coisa em propaganda partidária. O intuito é direcionar sentimentos progressistas para sempre convergirem a favor de um partido. É a tática do marxista Ernesto Laclau para a instauração do socialismo: garantir a hegemonia completa do pensamento. Desde a Guerra do Golfo, autoridades de comunicação e tecnologia falam da infowar, a guerra de narrativas. É preciso direcionar a opinião pública contra ou a favor de alguma posição. Laclau e a esquerda querem não uma disputa, mas o controle absoluto: apesar de a internet aparentar uma pluralidade maior, é o terreno para se instaurar a “visão única permitida” sobre os fatos.

Isso é feito cada vez mais pelo ataque puro e simples. Se não é possível fechar um jornal sem ser tachado de censor, pode-se usar milícias pagas na internet para derrubar páginas, fazer pressão judicial sobre opositores (mesmo que não dê em nada) ou inventar difamações que pareçam “humor”.

O principal alvo da vez é o filósofo Olavo de Carvalho, talvez a única grande voz do pensamento conservador do país, que nunca consegue ser refutado em seus livros, preferindo-se sempre atacar sua imagem com espantalhos bobos. Recentemente, sua página foi derrubada por “denúncias coletivas” duas vezes em poucos dias. Se seu pensamento fosse mesmo raso, qual seria o intuito de impedir a divulgação de suas ideias? Nunca se viu alguém de direita pensando em derrubar páginas de Emir Sader, Leonardo Sakamoto ou Vladimir Safatle.

Apesar de aparentemente ser apenas um “território autônomo”, a internet está mais em guerra do que a Crimeia. É a guerra de narrativas – opinião pública é tudo. Mesmo que o censurado da vez seja alguém que não se admira, urge tomar cuidado: amanhã poderá ser um de nós.

O zelo de Joaquim - LUIZ GARCIA

O GLOBO - 14/03

CNJ resolveu, por dez votos contra cinco, que OAB será dispensada de custear despesas nas salas que ocupa em prédios de tribunais de justiça, que são órgãos públicos



Pode ser que o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, às vezes exagere em sua luta permanente pelo uso correto de recursos públicos. Mas não se pode negar que, com certa frequência, o dinheiro da Viúva é usado e abusado como se os recursos públicos saíssem de um saco sem fundo.

E parece evidente que Barbosa tem as melhores intenções — e frequentemente boas razões — na sua defesa incansável pelo uso correto e parcimonioso do dinheiro que, não vamos esquecer, sai do nosso bolso.

Na batalha mais recente, Barbosa foi derrotado por uma decisão do Conselho Nacional de Justiça. Este aprovou, por larga margem (dez votos contra cinco), uma considerável colher de chá para a Ordem dos Advogados do Brasil — que, importa lembrar, é uma entidade particular e, ao que se sabe, razoavelmente próspera.

O CNJ resolveu, por dez votos contra cinco, que a OAB será dispensada de custear despesas nas salas que ocupa em prédios de tribunais de justiça que, ao contrário da Ordem, são órgãos públicos. Em outras palavras, o dinheiro dos impostos pagos pelos cidadãos será usado para custear água, energia, condomínio e vigilância em imóveis usados exclusivamente por advogados — que, não se pode esquecer, trabalham para eles mesmos. E muitos são merecidamente prósperos.

O presidente da OAB, Marcus Vinícius Furtado, defendeu a doação das salas com o argumento curioso de que as salas serão usadas por cidadãos e advogados, e não pela entidade “como instituição”. É um argumento pelo menos curioso: o erro identificado por Barbosa refere-se ao uso gratuito de salas mantidas pelo Judiciário, ou seja, por recursos públicos — para fins particulares.

É natural que a Ordem saia em defesa de um benefício criado, direta ou indiretamente para seus membros. Mas talvez a melhor defesa fosse oferecer uma contribuição financeira para a manutenção de locais públicos para o trabalho dos advogados.

Se fizer isso, é bem possível que o infatigável Barbosa encontre outras áreas, no vasto mundo do serviço público, merecedoras de sua atenção e de seu zelo pelo bom uso dos recursos oficiais.

Lula, Dilma e a jumenta de Balaão - DANTE MENDONÇA

GAZETA DO POVO - PR - 14/03

Figura das mais curiosas da Bíblia, Balaão foi um adivinho da Mesopotâmia e protagonista de uma passagem do Velho Testamento que conta a curiosa história da jumenta que falava com a voz de Deus.

Os teólogos afirmam que a história de Balaão é uma metáfora, apontando que a escolha de nossos caminhos seja feita segundo a vontade do Senhor. Ainda como metáfora, podemos imaginar o caminho da presidente Dilma para a reeleição e a possibilidade de Lula voltar a ser o candidato do PT. O confronto entre o criador e a criatura.

Conta o Livro dos Números – capítulo 22, versículos 21 a 35 – que Balaão levantou-se de manhã, selou sua jumenta e partiu com os moabitas enviados de Balaque. Irritado com sua partida, o Senhor postou um anjo no caminho como obstáculo. A jumenta, vendo o anjo do Senhor plantado no caminho com uma espada na mão, desviou-se e disparou pelas campinas de Moab, enquanto o adivinho a fustigava para fazê-la voltar ao caminho. Então o anjo do Senhor se posicionou num desvio estreito que passava por entre as vinhas, com um muro de cada lado. A ver o anjo, a jumenta jogou-se contra o muro, ferindo assim o pé de Balaão, que a fustigou de novo. Mais adiante o anjo do Senhor se deteve outra vez, obstruindo uma passagem onde não havia espaço para se desviar, nem para a direita, nem para esquerda. A jumenta, ao ver o brilho da espada, deitou-se debaixo de Balaão, o qual, encolerizado, fustigava-a mais fortemente com o seu bastão.

Foi quando o Senhor, através da boca da jumenta, disse a Balaão: “Que te fiz eu? Por que me bateste três vezes?” “Porque zombaste de mim”, respondeu Balaão. “Ah, se eu tivesse uma espada na mão para te matar!” A jumenta replicou: “Acaso não sou eu a tua jumenta, a qual montaste até o dia de hoje? Tenho porventura o costume de proceder assim contigo?” “Não”, respondeu o adivinho.

Nesse momento o Senhor abriu os olhos de Balaão e ele viu, no caminho à sua frente, o anjo do Senhor com a espada na mão. “Por que”, disse-lhe o anjo do Senhor, “feriste três vezes a tua jumenta? Eu vim me opor a ti porque segues um caminho que te leva ao precipício. Ao me enxergar, a tua jumenta desviou-se por três vezes diante de mim. Se ela não tivesse feito isso, você é que estaria morto!”

Balaão respondeu ao anjo do Senhor: “Pequei. Eu não sabia que estavas postado no caminho para deter-me. Se minha viagem te desagrada, voltarei!” “Segue esses homens”, respondeu-lhe o anjo do Senhor, “mas cuida de só proferir as palavras que eu disser”. E Balaão, enfim, seguiu seu caminho com os chefes de Balaque, o rei dos moabitas.

Se os caminhos da criatura são do desagrado do criador, serão muitos os obstáculo de Dilma Rousseff. Afora os jumentos de sempre, a candidata terá de seguir o seu caminho ao lado dos peteus, pedeteus, pepeus, petebeus, pecêdobeus e, o que é pior, os insaciáveis peemedebeus.

Mad Maria, Mad Madeira, Mad Amazônia - FERNANDO GABEIRA

O Estado de S.Paulo - 14/03

Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara? Muitas vezes escrevi sobre o verso de Drummond. Não consigo esquecê-lo agora, navegando no bairro Triângulo, em Porto Velho, tomado pelo Rio Madeira, que já subiu 19 metros acima do nível normal. Milhares de desabrigados, milhões perdidos, estradas bloqueadas, centenas de cabeças de gado submersas, uma tragédia que passa em branco pelo radar dos políticos e intelectuais que conferem grande peso simbólico à região.

No momento em que escrevo, nem a presidente Dilma Rousseff nem seus adversários resolveram chegar por aqui para ver o que se passa e aprender um pouco com a crise. Mas essa vontade de não saber se estende também aos próprios empresários e habitantes da Amazônia, se olhamos para as duas grandes usinas construídas aqui: Jirau e Santo Antônio.

Não é sensato culpá-las pela enchente. Mas hoje podemos afirmar que os relatórios de impacto ambiental que as licenciaram ignoraram, por questões econômicas, a realidade mais ampla da Bacia do Madeira. Deixaram de lado o Rio Beni, que vem da Bolívia, e o Rio Madre de Dios, que vem do Peru - ambos concorrem para a formação do Madeira. Ignoraram, na verdade, algo bem mais consistente: a Cordilheira dos Andes. Essa escolha impediu que se preparasse melhor para uma grande cheia que conjuga um degelo maior nos Andes e grandes chuvas nas cabeceiras do Beni e do Madre de Dios.

O valor simbólico da Amazônia tem muito que ver com plantas e bichos. Os seres humanos que vivem aqui são coadjuvantes nas fantasias salvacionistas. Mesmo assim, se abstrairmos o bicho-homem, os outros também estão sofrendo. É triste ver o gado se afogando sem que se tenha condições de salvá-lo. Os milhares de jacarés do Lago do Cuniã foram arrastados do seu hábitat e lançados nas águas do Madeira. Eram explorados, com autorização do Ibama, por um frigorífico que também se afogou.

O que restava de um monumento da engenharia nacional, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, foi por água abaixo. Os poucos quilômetros de trilhos, as velhas locomotivas no pátio do museu, peças históricas, tudo isso naufragou. Obra em que morreram milhares, construída entre 1907 e 1912, a Mad Maria estava desaparecendo há muito tempo, até que afundou no Mad Madeira.

Os sucessivos governos de Rondônia foram incapazes de reconhecer o valor cultural da Madeira-Mamoré, algo que seria altamente recompensado com a criação de um polo turístico. Os 7 km de trilhos que restaram poderiam sustentar um passeio pela mata. Apesar de inúmeras tentativas, jamais se conseguiu reaproveitá-los.

É muito difícil um Estado como Rondônia se interessar pela própria História. Grande parte dos seus moradores não se identifica com ela, principalmente os mais ricos. De 40 governadores do Estado, apenas um foi enterrado por aqui, observa o historiador Antônio Ocampo.

Naveguei no Rio Madeira algumas vezes. Na década de 1980, com a ajuda do Sindicato dos Mergulhadores, publiquei na capa da Folha de S.Paulo algumas fotos espantosas: esqueletos em escafandros. É que durante a exploração do ouro os mergulhadores eram às vezes assassinados. Subiam com o ouro e, quando mergulhavam de novo, os sócios cortavam-lhes o oxigênio. Houve mortes também por excesso de trabalho, condições precárias.

Hoje não se procura mais ouro no Madeira. A riqueza vem da energia de suas águas represadas. As duas usinas, Jirau e Santo Antônio, podem produzir 6.450 MW, mas têm grande impacto no meio ambiente. É questão internacional, porque envolve também a Bolívia. E deveria ser reavaliada pelos governos. É preciso incorporar os Andes, o Beni, o Madre de Dios, enfim, fazer um estudo mais amplo para garantir que funcionem sem grandes danos.

Um técnico explicou-me um fenômeno chamado curva de remanso. Segundo ele, a água vem freando como se a informação da existência de uma barragem fosse transmitida rio acima. E isso provoca ondas.

No auge da crise, a Usina de Jirau acusou a de Santo Antônio de não ter avaliado bem os dados sobre volume e vazão e ter-se atrasado demais nas medidas de emergência. Não se pode simplesmente acreditar na versão de uma contra a outra. A verdade é que o bairro Triângulo, por onde já caminhei nos trilhos da Madeira-Mamoré, virou um rio com dois metros de profundidade.

Antes as famílias levavam cadeiras para os trilhos e conversavam nos fins de tarde. Hoje esse bairro - com lojas, salões de beleza, academias e agência de turismo - se tornou inviável. Algumas casas ficaram totalmente submersas. O Triângulo fica na margem oposta à da Usina de Santo Antônio e é agora uma área de altíssimo risco.

Como transplantar todo um bairro? A que custo? Um senador de Rondônia conseguiu em Brasília R$ 3 milhões para uma pequena cidade, seu reduto eleitoral, que não foi atingida pelas cheias. Até o momento em que deixei a cidade, Porto Velho havia conseguido uma promessa de R$ 600 mil e contabilizava um prejuízo de R$ 320 milhões.

Não acredito nunca no rigor dessas estimativas de prejuízo. Meus olhos dizem que foram altos, como devem ter sido altos para o Acre com os bloqueios na BR-364 e a inundação causada pelo próprio Rio Acre.

Foi um ano excepcional? Tudo indica que sim. Apesar do insucesso na Usina de Fukushima, os japoneses sempre se preparam para o pior tsunami. A Amazônia deveria preparar-se para a pior das cheias. Enquanto esquecemos a Amazônia real em nossos bares, a Amazônia se esquece de si própria e ainda destrói progressivamente sua memória. Mad Amazônia.

O boto-cor-de-rosa, que, segundo a lenda, seduz e engravida virgens nas margens do Madeira, também está com a sua reprodução ameaçada pela nova configuração do rio. Mas se o boto sumir, ainda continuará seduzindo e engravidando, porque, nesse caso, é só uma questão de acreditar.

Quarentena política para ministros - DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR

CORREIO BRAZILIENSE - 14/03
Passado o carnaval, é hora de refletir. A sabedoria popular esclarece que um erro não justifica o outro. Precisa ser respeitada. Traduz percepção ética ignorada por ocupantes do poder no Brasil. O aparato do governo envolve e seduz as equipes que dominam o país. Desrespeito ao povo brasileiro é flagrante. Não apenas nas ações exercidas, mas, sobretudo, nas levianas justificativas de que se valem para enganar a população. Fica patente um projeto de aristocracia monárquica que se disfarça na etérea democracia dos novos tempos.
Já não se considera o poder como instrumento destinado a promover a evolução da cidadania. Tornou-se um fim em si mesmo. Eleger-se e ser poderoso é meta que norteia a cultura política dominante no Brasil. Uso e abuso dos recursos públicos para o desfrute de benesses e vantagens diversas refletem a visão dos novos reis, rainhas, príncipes e princesas que trajam adereços partidários, ditos democráticos, para meterem as mãos no bolso do povo. São as divindades da religião estatal que se pretende eternizar na república tupiniquim. Alguns exemplos são claros. Chocam muitas pessoas mais conscientes da sociedade. Decepcionam outras. Desanimam todas.

Sintomas do absolutismo monárquico dissimulado revelam-se nas distintas instâncias governamentais. Sintetizam o comportamento de comandantes cujo sonho é a perpetuação dos privilégios inerentes às funções assumidas. A prática do modelo implantado desdenha princípios elementares da ética verdadeira, que já não existe nos pensamentos e conceitos verbalizados pelos mandatários. Tratam gente como plebe ignara. Convivem felizes com as modernas formas escravocratas, como se fossem conquistas maiores da sociedade. Seus discursos são repletos de jogos de palavras e estilo redundante, elaborados para a hipnose coletiva dos plebeus.

Um dos atuais ministros, recentemente alçado ao cargo, demonstra fidelidade integral ao absolutismo da nova monarquia em curso. Indagado sobre o vergonhoso modelo de trabalho profissional do médico cubano no Brasil, mostrou o dogmatismo ideológico subjacente aos pensamentos e ações que explicita. Fundamentou, com raciocínio espúrio, a exploração humilhante da mão de obra médica oriunda da ilha caribenha. Alegou que o contrato assinado pelo governo brasileiro é correto, feito com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), entidade que tem história de mais de 100 anos, por isso mesmo respeitável.

Ora, nenhuma instituição é confiável porque antiga. Há indícios de corrupção entranhada nas vísceras de organizações do Estado brasileiro que já existem há mais de um século. Além disso, é inacreditável um ministro entender válido o tratamento escravagista imposto ao médico cubano no Brasil por se tratar de experiência adotada em mais de 60 outros países que firmaram igual acordo com a monarquia castrista. Equivale a proclamar que a escravidão dos negros no Brasil era regime igualmente defensável porque presente em muitos outros países. Admite, assim, que um erro justifica o outro, doutrina absurda na forma, se não suspeita no conteúdo.

Mais ainda. Tal como outras autoridades do governo que usam voos da Força Aérea Brasileira (FAB) para participar de eventos e atividades de interesse privado, esse ministro, durante o carnaval, recorreu ao mesmo meio de transporte para comparecer a Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Pondera que não houve aumento do gasto público nas viagens realizadas. Explica a presença de familiar nos referidos voos por razões que a própria razão desconhece. Incorpora, portanto, a lógica de funcionamento do aparato do poder, como colegas da nobreza partidária o fazem à frente dos cargos públicos.

Dada a relevância dos ministérios que, com maior seriedade, deveriam sustentar os direitos prioritários da população, tais como saúde, educação, meio ambiente, trabalho, justiça, e vários outros, o Estado precisa estabelecer a quarentena política para o exercício de tão relevante função. Ao deixar o cargo, o ocupante só disputará eleição cinco anos depois. Políticos profissionais, carreiristas e similares não se disporiam a ser ministros.

Essa responsabilidade técnica, social e profissional seria entregue a cidadãos comprometidos somente com a missão da respectiva pasta. Hoje, boa parte dos ministros usa o cargo e o dinheiro público para se eleger presidente, governador, prefeito e parlamentar, integrando a elite monárquica da Nova República. Urge mudar a lógica do aparelho estatal. O perfil de um ministro é peça-chave para qualificar o Estado brasileiro. Quarentena política seria medida saneadora.

O fator C - NELSON MOTTA

O ESTADÃO - 14/03

E se a maioria do PMDB, movida não por ideologia ou algum propósito mais nobre, mas para sobreviver à voracidade predatória do PT e por oportunismo eleitoral, num eventual desgaste nas intenções de voto em Dilma e algum crescimento das candidaturas de oposição, decidir mudar de lado? Afinal, não é a perspectiva de poder que move os políticos?

Quem diria que o polêmico deputado Eduardo Cunha, odiado pelo governo e tantas vezes acusado de patifarias e fisiologismo, seria a esperança da oposição em uma eventual divisão do PMDB que poderia mudar os rumos da eleição e do Brasil? A coisa está tão complicada que já não bastam ministérios para saciar o partido e há uma sensação de que agora seria tarde demais: o projeto petista de uma hegemonia absoluta no Congresso se tornou a maior ameaça à sobrevivência do PMDB. Ao tentar demonizar e isolar Cunha, Dilma acabou lhe dando mais poder e apoio da bancada.

Em um ano de Copa do Mundo, de grandes mobilizações populares e de incertezas na economia nacional e internacional, nunca na história deste país tantas variantes podem interferir no processo eleitoral. Até Eduardo Cunha, o fator C. Além de ser, como o futebol, uma caixinha de surpresas, na política, o vilão de ontem pode ser o herói de hoje, dependendo dos ventos das mudanças. De governista radical, José Sarney passou para a oposição quando a ditadura começou a ruir, e acabou presidente.

O mesmo Sarney, que é atendido por Dilma e Lula em tudo que quer e retribui com a fidelidade do PMDB ao governo, é o símbolo das queixas dos liderados de Cunha, de que alguns caciques do PMDB têm cargos e poder, como Sarney e Renan, mas não o partido, que não participa das decisões de governo, é atropelado pelo PT nos estados e recebe migalhas do poder. Para eles, as eleições são locais, e as ameaças, reais.

Muitos agora estão se perguntando para que servem uma Vice-Presidência da República e meia dúzia de ministérios meio mequetrefes, diante dos 17 do PT e do seu rolo compressor na Esplanada trabalhando para se tornar hegemônico no próximo Congresso? E a campanha nem começou.

Desafio aos desanimados - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 14/03

Algumas orelhas devem estar ardendo no PSDB. Ao falar em evento pela passagem dos 20 anos do Real, anteontem em São Paulo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso instou o público a levar às devidas consequências políticas as evidências dos descaminhos do governo Dilma Rousseff, expostas pouco antes pelos economistas que conceberam a estabilização monetária e, depois da eleição do tucano, se empenharam em consolidá-la. "É falsa a ideia de que não há alternativa (à reeleição da petista)", ressaltou Fernando Henrique. O que falta, argumentou, é que se acredite que outro caminho é possível. Combinando desafio e advertência, ensinou: "Tem que ter convicção, sobretudo liderança política. Quando não tem convicção, não passa nada".

Não há, nem no PSDB, muito menos nos demais partidos da frente oposicionista, quem disponha de credenciais comparáveis às dele para dar um choque de ânimo nos desacorçoados correligionários, cujas vozes, quando ativadas, dificilmente conseguem se propagar além dos confinados espaços onde ecoam. Além da carga de autoridade nela embutida, a pregação de Fernando Henrique tem lastro numa realidade que muitos dos seus parecem não enxergar. Dois em cada três eleitores, por exemplo, afirmam querer mudanças no modo como o País é conduzido, e apenas uma minoria deles prefere acreditar que elas virão com mais quatro anos de Dilma. Além disso, há um amplo território aberto à persuasão dos eleitores céticos, os que dizem que, se a eleição fosse hoje, anulariam o voto ou votariam em branco porque não se identificam com nenhum dos nomes oferecidos à sua escolha. Segundo a mais recente sondagem do Datafolha, esse contingente equivale aos 17% de simpatizantes do presidenciável tucano Aécio Neves.

Condições políticas favoráveis para lançar as bases de uma campanha capaz de levar a disputa ao segundo turno - quando então, como sabem os especialistas, começa outro jogo - não escasseiam. A presidente está mergulhada em um confronto com os partidos aliados que cansaram de ser tratados como massa de manobra dos interesses hegemônicos do PT. Não falta quem aposte que a crise se dissipará antes cedo do que tarde pela rendição dos rebelados aos recursos de poder do Planalto, entre os quais a caneta presidencial com a carga cheia. Pode ser. Mas isso também se dizia antes que, em menos de 48 horas, o cordão dos descontentes impusesse a Dilma duas derrotas estonteantes. Uma, a decisão da Câmara, tomada por um aluvião de votos, de investigar suspeitas de recebimento de propina por funcionários da Petrobrás. Outra, decerto sem paralelo nos atritos entre Executivo e Legislativo, a convocação, de uma tacada só, de quatro ministros e o convite a seis outros, além da presidente da estatal, para sabatinas em comissões da Casa.

Para Fernando Henrique, é a pena que Dilma paga por ter rebaixado o presidencialismo de coalizão brasileiro a um regime de cooptação. O relacionamento do Planalto com a base parlamentar, descreveu, "não é marcado por projetos e programas políticos focados no Brasil, mas pela oferta de espaço no governo". Numa visão de mais longo alcance - cujas implicações para a sucessão presidencial a oposição precisa ter claro -, Fernando Henrique situou no cansaço da sociedade, origem das jornadas de junho do ano passado, a causa profunda do motim na Câmara. O ex-presidente não há de ignorar que Dilma dispõe de dois trunfos eleitorais que sustentam o seu amplo favoritismo nas pesquisas - os níveis de emprego e renda. Não é provável que esses indicadores, em que se assenta o apoio da maioria à reeleição, venham a ser destroçados por um cataclismo econômico nos menos de sete meses que separam os brasileiros do encontro com as urnas - com uma Copa do Mundo a meio caminho. Mesmo entre os contentados, porém, prevalece uma incerteza difusa sobre a durabilidade desse quadro, sem falar nas dúvidas sobre a obtenção de novos ganhos de qualidade de vida.

Quando começar a propaganda eleitoral na TV e no rádio, saber-se-á se o candidato tucano terá a convicção e a liderança invocadas por Fernando Henrique para persuadi-los de que há uma alternativa melhor.

Não há quem aguente - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 14/03
Em mais um exemplo de uso ilegítimo de verbas públicas, recursos de propaganda institucional são destinados à promoção eleitoral disfarçada
Nada como um dia depois do outro, diz a sabedoria popular; em situações pré-eleitorais, o velho ditado recebe comprovação literal.
Abra-se, por exemplo, a edição da Folha de terça-feira. Nela, o pré-candidato do PSB à Presidência, Eduardo Campos, dava sinais de impor ritmo mais agressivo às suas declarações.

Estaria passando, conforme os analistas, a personalizar seus ataques contra a antiga aliada, Dilma Rousseff. "O país não aguenta mais quatro anos" sob a administração da petista, afirmou o governador de Pernambuco, que também foi ministro do governo Lula.

Campos mirou, ademais, a conhecida imagem de autossuficiência e de aspereza que cerca a presidente. "Quem acha que sabe de tudo não sabe é de nada."

De outra coisa ficou sabendo o leitor da Folha no dia seguinte. A par da nova agressividade do presidente do PSB, tomou conhecimento de fatos que deveriam colocar o governador de Pernambuco numa embaraçosa atitude defensiva.

Faltando menos de um mês para deixar seu posto, Eduardo Campos conclui licitação que aumentará as despesas com publicidade de seu governo em 42,9%.

Não é exclusividade sua usar o pretexto da "utilidade pública" ou da necessidade de "prestar contas" para veicular autoelogios. O governo federal sem dúvida age desse modo a cada inauguração.

A administração de Geraldo Alckmin (PSDB) em São Paulo, por sua vez, dobrou as verbas mensais de publicidade em 2014. Argumenta que, sendo vetado tal tipo de divulgação nos seis meses anteriores ao pleito, as cifras para esse fim se mantêm em igual patamar. Dá no mesmo, portanto --mas a frase admite mais de um sentido.

No fundo, o que se faz é tornar inócua a proibição de gastos, bombardeando o público com um esforço promocional às suas custas. Campanhas de real utilidade --como as que informam sobre mutirões de vacinação infantil ou a necessidade de economizar água - não se confundem com o habitual discorrer de feitos oficiais.

Pior ainda: o dinheiro do contribuinte não serve só para custear a promoção eleitoral sorrateira, mas também para beneficiar agências publicitárias que depois também farão o marketing dos candidatos.

É o caso da Link Bagg, encarregada da propaganda do governo pernambucano, que tem a sua frente o publicitário de Eduardo Campos, também coordenador da campanha eleitoral do prefeito do Recife, Geraldo Júlio, do mesmo PSB.

Para repetir a frase de Campos, pode bem ser que o eleitor não aguente mais quatro anos de Dilma na Presidência. Resta saber se aguenta o período, bem mais longo, em que convive com esse uso ilegítimo do dinheiro público.

Burocracia faz setor elétrico poluir mais o ar - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 14/03

Nos últimos dias, o Operador Nacional do Setor Elétrico (ONS) precisou acionar toda a capacidade de geração de energia das usinas térmicas. Muitas delas foram programadas apenas para situações de emergência, pois queimam óleo diesel ou óleo combustível. Além de gerarem uma energia cara, devido ao custo elevado dos combustíveis, tais usinas são muito poluentes, emitindo de CO2 e outros gases para a atmosfera.

O que justifica a utilização dessas usinas emergenciais é o reduzido volume de chuvas nas regiões que abrigam os principais reservatórios das hidrelétricas no Sudeste e no Nordeste.

Nessa situação, o risco de racionamento se tornou presente no setor elétrico brasileiro. Mas a burocracia governamental, ou parte dela, se comporta como se nada estivesse acontecendo. Chega a ser tragicômico que hidrelétricas leiloadas há mais de dez anos não tenham saído do papel por falta de licença ambiental, como revelou reportagem publicada domingo no GLOBO.

Esses aproveitamentos hídricos foram devidamente estudados no passado e somente foram a leilão porque se mostraram viáveis economicamente. Os concessionários, cujos lances foram os vitoriosos nos leilões realizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o órgão regulador do setor, se obrigaram a fazer Estudos (EIA) e Relatórios de Impacto Ambiental (Rima), submetidos às autoridades responsáveis pelo licenciamento. A partir do EIA e do Rima, os órgãos de licenciamento geralmente definem condicionantes para mitigar os impactos ambientais desses empreendimentos.

Os lados envolvidos precisam se entender para que esses condicionantes reduzam os impactos ambientais sem inviabilizar economicamente os empreendimentos.

Mas não tem sido esse o critério dos órgãos de licenciamento em relação a aproveitamentos leiloados há mais de dez anos, quando as licitações eram promovidas antes de as usinas hidrelétricas ofertadas terem obtido licenças prévias. Várias dessas usinas estão previstas para a região Sul, sob responsabilidade de investidores privados (autoprodutores), e, se estivessem funcionando, aliviariam hoje o conjunto do sistema.

No entanto, ficaram no papel por falta de licenciamento, supostamente para se proteger o ambiente. No lugar delas, a energia está sendo gerada por usinas térmicas cujo impacto ambiental é imensamente maior. Um contrassenso incompreensível.

Livres para matar - EDITORIAL ZERO HORA

14/03

É revoltante e assustador saber que todos continuamos expostos à sorte e ao humor de delinquentes perigosos, favorecidos pela benevolência da legislação.


Foi o mesmo crime, o mesmo criminoso e pode-se dizer também que as vítimas _ os cidadãos que trabalham honestamente, pagam corretamente seus impostos e não recebem qualquer proteção do Estado _ também são as mesmas. Dez anos depois de matar o advogado Geraldo Xavier, numa ação criminosa conhecida como saidinha de banco, o homicida Jaérson Martins de Oliveira, desfrutando das regalias do regime semiaberto, executou também o publicitário Laírson Kunzler para se apropriar do dinheiro que ele carregava. É elogiável o trabalho de investigação da polícia, que chegou à autoria do crime após exaustivo exame das imagens de câmeras de monitoramento espalhadas pela cidade, mas é revoltante e assustador saber que todos continuamos expostos à sorte e ao humor de delinquentes perigosos, favorecidos pela benevolência da legislação, pela frouxidão do sistema judiciário, pela inoperância do sistema prisional e pela insuficiência das forças policiais.
Ainda que o matador apontado pela investigação policial tenha cumprido todos os trâmites legais para a progressão no cumprimento da pena, é desarrazoado que um homicida cruel desfrute de total liberdade para reincidir. Um, não: segundo informações das próprias autoridades, 4 mil criminosos estão em prisão domiciliar no Estado por falta de vagas no semiaberto e pela conhecida precariedade do regime fechado. Seria ingenuidade pensar que num contingente tão expressivo de delinquentes não haja outros matadores covardes como o que tirou a vida do publicitário ou como a dupla que matou no mesmo dia um motorista de lotação, nas proximidades do Estádio Olímpico. É inquestionável que os piores marginais se aproveitam da legislação liberalizante e da acomodação de alguns magistrados, que se limitam a cumprir estritamente o que está escrito, sem se dar ao incômodo de pedir, como é do seu direito, exames complementares antes de autorizar a progressão de regime de condenados que cumpriram o lapso de tempo legal e receberam atestado de bom comportamento da direção do presídio.
Cabe reconhecer que o Judiciário também esbarra na falta de estrutura do Estado e do sistema prisional. Desde que o exame psicológico deixou de ser exigência legal, ficou muito difícil encaminhar um apenado para a avaliação, por inexistência de profissionais. Como também faltam vagas nos presídios desumanos e superlotados, não resta alternativa para os julgadores senão mandar para a rua ou para albergues desaparelhados para proceder a devida vigilância sobre os presos. Ficam, então, os assassinos, latrocidas e homicidas livres para matar _ e todos nós, potenciais vítimas, ficamos desamparados, amedrontados, enjaulados em nossas casas e cada vez mais revoltados com os nossos dirigentes políticos.

Serviços padrão Fifa - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE

CORREIO BRAZILIENSE - 14/03
Os números podem jogar luz sobre questões aparentemente complexas. Ao iluminar zonas pouco transparentes, permitem compor narrativas antes incompletas. É o que fez levantamento do IBGE divulgado ontem. A Pesquisa de Informações Básicas Estaduais (Estadic 2013) apresenta retrato de corpo inteiro das administrações nas 27 unidades da Federação.
Entre os dados expostos, sobressaem os referentes aos recursos humanos. Em um ano, de 2012 a 2013, houve aumento de 9,9% no número de cargos comissionados e redução de 1,7% no de concursados. Significa que apadrinhados ocupam cargos de direção. Ostentam o crachá de autoridade, sentam-se na cadeira destinada aos chefes e, em tese, decidem os rumos do setor por que respondem.

São, porém, novatos. Desconhecem o percurso do trem que há muito está em movimento. Sem a memória do órgão, o conhecimento dos desafios e os talentos que têm à disposição, perdem tempo e deixam para trás urgências por que o eleitor anseia. Em bom português: são peças que se penduram no cabide de empregos que faz a festa de administrações públicas.

Há menos de um ano, a população tomou as ruas das grandes cidades convocada pelas redes sociais. A causa que motivou as passeatas parecia insuficiente para mobilizar as multidões que mobilizou. Aparentemente, os brasileiros se dispuseram a abandonar o conforto do lar para protestar contra o aumento de 20 centavos no preço das passagens de ônibus em São Paulo. Como se viu pouco depois, a majoração foi a gota d"água que fez o líquido transbordar.

Cartazes exibidos posteriormente deixaram clara a verdadeira razão das mobilizações. "Padrão Fifa" foi a feliz síntese das expectativas que se expunham em calçadas e asfaltos. O raciocínio respeitava os ditames da lógica. Se o Estado era capaz de satisfazer as mais sofisticadas exigências da Federação Internacional de Futebol (Fifa), poderia investir talento e recursos para oferecer a mesma excelência ao cidadão que, afinal, paga a conta.

A degradação dos serviços públicos é fenômeno relativamente recente no país. Há menos de meio século, o Brasil se orgulhava de escolas, hospitais e meios de transporte de qualidade. Com a urbanização e a democratização do acesso à educação e à saúde, aumentou a oferta em detrimento da excelência. Ficaram claros, então, os dois Brasis. Um podia pagar à iniciativa privada o padrão que o Estado parecia incapaz de oferecer. O outro, sem alternativa, conformava-se com a oferta, talvez sem consciência do que perdia.

Sem administração pública profissional - fruto de carreiras sólidas, valorizadas e aptas a atrair os melhores quadros -, o país engata a marcha a ré nos serviços prestados aos cidadãos. A baixa produtividade é um dos resultados da rasteira qualificação da mão de obra nacional. Se quiser ingressar no fechado clube das nações de ponta, o Brasil precisa enfrentar um desafio inadiável - formar burocracia à altura do duelo que tem pela frente.