domingo, agosto 10, 2014

Não culpem a água - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 10/07


Nada mais parecido com a crise da energia do país do que a crise da água em São Paulo. Os dois problemas têm como uma das explicações a seca de 2014. Mas há outros motivos. Os governantes erraram na gestão da crise, adiaram medidas fortes por razões político-eleitorais e empurram com a barriga, esperando que a solução caia do céu, em forma de chuva para encher reservatórios e represas.

As duas crises ensinam que o país tem sido imprevidente com a água. Rios estão maltratados, assoreados e sem mata ciliar. São o lugar onde se despejam lixos e esgotos. O Brasil é um país que tem água em abundância mas não aguenta atravessar um ano de escassez de chuva. É uma insensatez que impressiona.

Converse com autoridades do governo federal sobre a crise de energia, e elas dirão que a culpa é da chuva que não choveu. Faça o mesmo com as autoridades do governo de São Paulo, e dirão que a culpa é da chuva que não choveu.

Em qualquer sistema de gestão de risco, o normal é ver todos os cenários, inclusive o pior, não esperar pela variável que não se controla, e agir sobre as que se controla. Há quanto tempo o país - nos dois níveis - não deveria estar fazendo programas de eficiência energética e de combate ao desperdício?

São Paulo ainda tem, a esta altura dos acontecimentos, o uso de água para irrigação. Diante da emergência, o melhor a fazer é indenizar o agricultor para que a água seja poupada para os usos mais nobres. O governo de São Paulo pensou em rodízio e não adotou, avaliou o racionamento e prefere fazê-lo de forma não declarada, chegou a anunciar um sistema de sobretarifa para quem aumentasse o consumo de água, mas preferiu dar bônus para quem poupasse. O resultado é que um dos itens que tem reduzido a inflação é a taxa de água em São Paulo, exatamente onde está havendo a maior escassez. Os preços servem para dar sinais: o bônus só poderia ser adotado se houvesse o ônus, para não se criar essa contradição de uma cidade perto do colapso do abastecimento reduzindo o preço do que está acabando.

Na energia se vê o mesmo negacionismo dos fatos evidentes. Há uma crise, de grandes proporções, e a falta de chuvas apenas tornou o problema mais explícito. Mas o governo diz que se chover tudo vai passar, tudo se resolve. Não é verdade. A Eletrobrás deve à Petrobras. As geradoras devem ao mercado de curto prazo, as distribuidoras devem ao mercado de curto prazo, ao governo, e aos bancos. Os bancos públicos emprestam para as distribuidoras e vão emprestar para a Eletrobrás pagar uma parte do que deve à Petrobras e ainda financiar o investimento porque está tendo prejuízo na operação. Todos os empréstimos foram tomados para serem pagos pelo consumidor. Criaram dívidas para nós.

Há falta de informação recente sobre a real capacidade dos reservatórios das hidrelétricas, porque, se for feito um exercício de simular o passado - incluindo no modelo de previsão todos os dados do que houve em termos de chuva, afluência e consumo -, o resultado do nível dos reservatórios será mais alto do que está. Algo está errado com o modelo de previsão. Mário Veiga, da PSR, fez isso e descobriu que, em vez de 40% de água no começo do ano, deveria ter 65%. Outros consultores fizeram o mesmo exercício e mostraram que, diante dos fatos que aconteceram, o nível da água teria que ser mais elevado. A conclusão foi que a capacidade estrutural do sistema é menor do que se pensa. É preciso rever o modelo e recuperar os reservatórios.

Na crise da água de São Paulo, ou no caso da energia, o que se vê nas autoridades é a mesma paralisia diante de medidas amargas que possam desagradar o eleitor, e os dois governos despejam sobre a chuva toda a culpa, como se eles fossem vítimas de uma fatalidade climática.

O governo tem que aprender com o ano de 2014 o que não deve fazer, e qual não deve ser a atitude diante das crises. Os climatologistas já nos avisaram que os eventos extremos serão cada vez mais extremos e mais frequentes. É preciso se preparar para a escassez e o excesso de águas com obras de infraestrutura e um modelo eficiente de gestão de crise. Um grande centro urbano como São Paulo tem que estar ainda mais preparado para os dois riscos. E que nenhum governante culpe a água porque assim será o futuro.

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