sábado, julho 05, 2014

Na marca do pênalti - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 05/07

A Copa simula a guerra, mas o jogo continua a ser jogo: a sobrevivência da nação não está em causa


O capitão --logo ele!-- refugou. Diante do Chile, na hora da cobrança dos pênaltis, Thiago Silva implorou para não bater. Antes Julio César, o goleiro, que ele. "Bater pênalti é uma grande responsabilidade em casa, e pedi a Deus para não chegar a minha cobrança", justificou-se. O primeiro longa dirigido por Wim Wenders, "O Medo do Goleiro Diante do Pênalti" (1972), com roteiro de Peter Handke, não é o que o título sugere. Sem assisti-lo, Sepp Maier, o eterno goleiro do Bayern, disparou a crítica futebolística certeira: "O medo do jogador que vai chutar o pênalti --isto, sim, seria digno de um romance". Mas, se Thiago Silva fosse o protagonista da trama proposta por Maier, o roteiro deveria concentrar-se no contexto.

A Copa simula a guerra. Entretanto, o jogo continua a ser jogo: a simulação opera como substituição e, normalmente, quase todos os envolvidos sabem que a sobrevivência ou a honra da nação não estão em jogo. O jogador que vai bater o pênalti tem medo, mas chuta. No caso de Thiago Silva, o medo cedeu lugar ao pânico paralisante. Desconfio que isso se deve menos a seus conhecidos traumas pessoais com pênaltis que ao deplorável clima bélico criado em torno da participação brasileira na Copa do Mundo.

Antes da estreia, Felipão e mesmo o sóbrio Parreira proclamaram que "o Brasil" tem a "obrigação" de ser campeão. Possivelmente, eles adotaram tal estratégia discursiva sob a inspiração de algum manual de autoajuda --mas fizeram mal, e não só aos jogadores do time. O jogo é jogo porque inscreve-se na esfera da incerteza: ninguém pode carregar o fardo de um resultado que não controla. A única "obrigação" da equipe era dar o seu melhor, até o fim: fazer como a seleção inesquecível de Telê, Zico, Sócrates, Júnior e Falcão, derrotada em 1982, não como os astros egocêntricos reunidos por Parreira em Weggis e derrotados em 2006.

Na Copa das Confederações, a torcida inaugurou a prática de entoar "a capela" a segunda parte do hino nacional. Aquilo era uma manifestação política: o eco, dentro dos estádios, das manifestações multitudinárias que, fora deles, exigiam das autoridades um módico de decência e espírito público. Um ano depois, a prática esvaziou-se de seu sentido original, degenerando num ritual de natureza marcial: gritado a plenos pulmões, o hino coletivo veicula a exigência de um sacrifício sangrento no campo verde onde a pátria joga a sua honra. É guerra isso?

É guerra? Na Venezuela, o regime denuncia complôs diários, antes contra a vida de Chávez, agora contra a de Maduro, contra a moeda nacional e contra a rede elétrica. No Brasil, um "complô da mídia" ameaça, todo o tempo, o "governo popular" --e, estalando os dedos, nove escribas cavilosos ergueram um estádio para hostilizar a presidente. A coisa pega. Após o triunfo sobre o Chile, Parreira inventou a hipótese de um "complô" para impedir a conquista do hexa. Teorias conspiratórias cumprem a função política de substituir a incerteza da história pelas certezas dos contos infantis. No caso da Copa, o "complô" imaginário emergiu como providencial complemento da suposta "obrigação" de vitória: a temida derrota ganhou uma explicação que preserva a honra nacional. A Fifa seria a culpada por um fracasso, antecipou o coordenador técnico. Mas e a almejada vitória? Seria, simétrica e logicamente, obra da Fifa?

Um pênalti é só um pênalti. Convertê-lo é uma questão de técnica, um termo que abrange o controle emocional. Thiago Silva tinha o dever de se voluntariar para chutar --porque é um profissional consagrado, um jogador experiente e o capitão do time. Ele não tinha esse dever perante a bandeira nacional, pendão auriverde que a brisa beija e balança, ou a torcida brasileira, mas diante de seus companheiros de equipe e de si mesmo. O capitão refugou. Culpa dele. Culpa nossa.

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