terça-feira, julho 08, 2014

Língua de trapo - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 08/07


Portugal estará em Díli para assinar uma das páginas mais inomináveis de sua diplomacia moderna


Não levo a sério a linguagem da mídia moderna. O que é a "comunidade internacional" que lemos nos jornais ou escutamos na TV? Poupem-me: será uma dúzia de idiotas que se reúnem nas Nações Unidas e passam suas resoluções como se fossem donos do mundo?

Melhor ainda: serão países como a Arábia Saudita, Cuba ou Uganda, que fizeram ou fazem parte do comitê de Direitos Humanos da mesma organização?

Aliás, por falar em ONU, soube agora que a organização esteve quase para aceitar a criação de um prêmio de US$ 3 milhões com o nome de Teodoro Obiang para pesquisas sobre as "ciências da vida".

Explicação Wikifolha: Obiang é o ditador da Guiné Equatorial que governa o país desde 1979. Quase 80% da população vive abaixo da pobreza. Não existe liberdade de expressão, segundo a Freedom House.

E até o seu filho, Teodorin Obiang, ilustre ministro do governo de seu pai, tem um mandado de captura internacional por corrupção. Mas a ONU teve um gesto raríssimo de vergonha na cara e preferiu declinar o prêmio com o nome Unesco-Guiné Equatorial.

Felizmente, Portugal e Brasil não perdem tempo com essas vergonhas. Singularizo os casos de "Portugal" e "Brasil" porque falo de democracias civilizadas, ou que pelo menos aspiram a sê-lo, e não de Estados autoritários ou falhados.

Pois bem: parece que a diplomacia dos dois países vai aceitar, em 23 de julho, na cimeira de Díli (Timor-Leste), a entrada da Guiné Equatorial na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Os Estados africanos, com particular destaque para Angola, sempre apoiaram essa entrada.

O Brasil também, sobretudo com Lula e Celso Amorim. O jornal português "Público", que dedicou várias páginas a essa farsa na sua edição de domingo (recomendo vivamente), relembra as imortais palavras do ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil a respeito.

Confrontado com a "democracia imperfeita" (adoro eufemismos) da Guiné Equatorial, Amorim teria dito: "Negócios são negócios".

Pelo menos, foi sincero. Quando olhamos para os critérios de adesão à CPLP, a Guiné Equatorial só por piada cumpre os mínimos olímpicos.

Sobre a democracia, estamos conversados. Sobre a língua portuguesa como idioma oficial, também (o país adotou às pressas o português como terceira língua; por favor, não rir). Sobre a pena de morte (que a CPLP condena), há agora uma "moratória" que impede a pena capital (mas duas semanas antes da moratória, e segundo a Anistia Internacional, o regime executou um número indeterminado de condenados, só para limpar o pedaço). E por aí foi, até se chegar às palavras de Celso Amorim: "Negócios são negócios".

E que negócios: informa o mesmo "Público" que, depois de Angola e Nigéria, a Guiné Equatorial é o terceiro maior produtor de petróleo da África subsaariana. Exporta para o Brasil. Em troca, o Brasil espera aumentar os seus negócios na construção de grandes infraestruturas.

E Portugal? Portugal, isolado e com a mancha perene do colonialismo colada na testa, fez o que se esperava: "meteu a viola no saco", como dizem os lusos, e estará em Díli para assinar uma das páginas mais inomináveis da sua diplomacia moderna.

Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria escutar Murade Murargy, atual secretário executivo da CPLP. Em entrevista ao referido jornal português, o estimável senhor não se mostrou incomodado com a folha de serviço da Guiné Equatorial. "Ninguém tem a folha limpa", disse ele.

Por outras palavras: Portugal e Brasil são perfeitamente comparáveis à Guiné Equatorial em direitos humanos, políticos e sociais.

Insultuoso? Longe disso. Quem aceita a Guiné Equatorial no clube está no mesmo nível que ela.

P.S. - Na passada semana, escrevi sobre Alexis de Tocqueville. Alguns leitores me perguntaram onde encontrar as obras do autor francês, sobretudo a sua "Da Democracia na América". Presumo que falavam de traduções em língua portuguesa (para quem prefere ler no original e em inglês, existe uma notável edição bilíngue da Liberty Fund organizada por Eduardo Nolla).

Em Portugal, recomendo a edição da Principia, com tradução de Carlos Correia de Oliveira e prefácio de João Carlos Espada. No Brasil, amigos fiáveis me garantem que não há edição fiável. Meu Deus: será possível?

Uma coisa é certa: com o país na CPLP, é sempre possível procurar edição em português nas livrarias da Guiné Equatorial.

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