terça-feira, julho 29, 2014

Drama argentino - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 29/07



As últimas horas foram de tentativa desesperada de evitar o calote argentino. O país pagou antecipadamente os US$ 650 milhões da primeira parcela devida ao Clube de Paris, organismo que reúne os representantes dos governos credores. É uma forma de provar que não quer ficar inadimplente. O gesto de alguns credores privados, de abrir mão da cláusula que os favorece, ajuda a negociação, mas não resolve.

É mais importante continuar a negociação em Nova York do que tentar conseguir em Caracas mais uma declaração do Mercosul a favor do país. Mas é isso que a presidente Cristina Kirchner tentará hoje. E seu ministro da Fazenda não foi a NY. Há algumas saídas para a Argentina evitar a terceira moratória de sua história recente, mas ela tem poucas horas.

Concretamente, esse grupo de credores que acenou com a possibilidade de abrir mão da cláusula que obrigaria a Argentina a dar a eles as mesmas vantagens que tiverem os fundos abutres não representa a totalidade da dívida reestruturada. Além disso, os fundos que atualmente ganharam na Justiça americana o direito de receber o valor total dos títulos que têm em mãos são apenas 10% dos que ficaram de fora da dívida reestruturada. Ou seja, a vitória deles incentiva esses outros credores a exigir o mesmo na Justiça. Explicando melhor: 93% da dívida foram renegociados, 7% ficaram de fora e, desses, 10% são os fundos que venceram na Justiça.

A boa notícia é que esse calote não tem o poder de contágio. Em outras crises da dívida, havia sempre uma fila de países em situação similar e, portanto, ocorria o efeito dominó. Agora, a situação da Argentina é isolada.

Por outro lado, o fato de um juiz distrital dos Estados Unidos ser capaz de levar um país à moratória cria em torno do caso argentino um interesse que vai muito além das suas fronteiras. Está em jogo também a confiança nos Estados Unidos como foro para a discussão judicial em acordos de reestruturação de dívida soberana. Como a Suprema Corte decidiu que não é tema para ser levado à última instância, os países ficam ao sabor de decisões de juízes regionais.

Em qualquer renegociação de dívida, um grupo sempre fica fora do acordo de renegociação. Ele, em geral, é formado por investidores que compraram os papéis quando o valor estava no fundo do poço, apostando no confronto. Se a Justiça lhes der ganho de causa, eles têm alto lucro. Tradicionalmente, a Corte de Nova York tem sido escolhida nos processos de renegociação de dívida em que há conflito.

O caso da Argentina cria insegurança jurídica para qualquer renegociação de dívida soberana, porque o que o juiz está determinando é o pagamento imediato e pelo valor de face à minoria que apostou na briga judicial. Os credores que brigaram terão mais benefício. O precedente criado pelo juiz Thomas Griesa pode fazer com que credores e devedores, em futuros processos de negociação, fujam da Justiça americana como foro de eventuais conflitos.

O lado tranquilizador da dívida é que o calote não será o estopim de uma crise regional. Seu peso recairá sobre os argentinos e pode também afetar a Venezuela, que tem muitas vulnerabilidades econômicas, mas não há motivo para que seja uma crise regional.

O Brasil terá mais dificuldades de exportar para a Argentina, o que reduzirá ainda mais a venda de manufaturados, aumentando a recessão da indústria. Mas o efeito será limitado a isso. Nós temos um déficit em transações correntes de quase 4% do PIB, mas US$ 370 bilhões de reservas cambiais e uma conjuntura econômica totalmente diferente daquela na qual se encontra o nosso parceiro e vizinho.

A Argentina está na kafkiana situação de tentar pagar aos credores privados americanos com os quais renegociou a dívida e a Justiça de Nova York bloquear o dinheiro, ameaçando arrestá-lo para o pagamento dos credores que não negociaram. O pagamento ao Clube de Paris está fora desse risco porque é em outra jurisdição. O risco de Default continua alto nas próximas horas. No cenário do calote, a situação da economia argentina piora mais um pouco, mas ela já é ruim o suficiente com uma inflação acima de 30% e o PIB estagnado. O governo argentino tenta uma saída para esse labirinto.

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