domingo, julho 13, 2014

A bola em outros campos - GAUDÊNCIO TORQUATO

O ESTADÃO - 13/07



Em sua última crônica antes de o Brasil estrear na Copa do Mundo, em 1958, Nelson Rodrigues , indignando-se contra o pessimismo das ruas, esquinas e botecos e traduzido na expressão “a seleção nem vai se classificar”, cunhou um chiste famoso, o “complexo de vira latas”, para exprimir a inferioridade em que o brasileiro se colocava diante do mundo. Arrematava a explicação: “o brasileiro precisa se convencer que não é um vira latas e que tem futebol para dar e vender lá na Suécia”. O dito do nosso maior dramaturgo há tempos abandonou os vãos da nossa alma futebolística para fazer eco em outras arquibancadas, principalmente nos ambientes palacianos dos governantes, onde se entoam ladainhas de autoglorificação, cujo bordão é o de que os brasileiros precisam se orgulhar dos feitos dos donos do poder e das grandezas do Brasil potência. Faz tempo, sim, que o país deixou de ser a Pátria do futebol das fintas, firulas e dribles fantásticos, mito alimentado por conta da inventividade de um ou outro craque e exageradamente reforçado pela tuba midiática, que tenta vender a parte pelo todo e cujas negociações com cartolas e patrocinadores jogam a bola no campo dos cifrões.

A fantasia, a improvisação e a invenção, matérias primas que, por anos a fio, sedimentaram as bases da “Pátria em chuteiras” (outra expressão de Nelson) e jorraram com abundância nos dutos da catarse social, hoje não passam de arremedos infrutíferos, quando não de performances capengas como a que se viu contra a Alemanha, semana passada, o maior desastre na história do futebol brasileiro. E pouco acresce ao debate a referência ao apagão, como se uma paralisia de cinco, seis ou dez minutos, não pudesse ser previamente diagnosticada e convenientemente tratada pelo aparato técnico, científico, psicológico à disposição do corpo futebolístico.

Pouco também adiantará apontar culpados, ensaiar jogadas recíprocas de acusações, tatear nas margens das questões que o futebol suscita, a partir do reconhecimento de que suas técnicas evoluíram, priorizando os conceitos da força do conjunto, da celeridade, do preparo psicológico, de táticas e estratégias específicas para cada adversário. Para começo de conversa, as arenas futebolísticas se multiplicaram em todos os continentes, conferindo ao esporte uma dimensão planetária e, consequentemente, estreitando as distâncias entre maiores e menores, melhores e piores, animando os novatos a enfrentar nos estádios, de igual para igual, os mais experientes.

Já se prega a urgência de um “choque de gestão” no futebol brasileiro, o que implicaria a oxigenação nas cúpulas da cartolagem, a busca de perfis adequados aos contextos de competitividade e o fim do ciclo até então vivido pela seleção, com foco em grupinhos, prepotência, arrogância. Pode ser um caminho. Mas não se espere que mexer com uma pedra do tabuleiro será suficiente para conduzir o nosso futebol aos primeiros lugares do ranking mundial. Ele é parte de um todo, não um fio separado do rolo. O ethos nacional é mescla de hábitos, costumes, atitudes, visões, história e tradição. Os nossos trópicos certamente garantem um pedaço no bolo comportamental, seja pela variedade geográfica e belezas naturais – que encantam os milhares de turistas que vieram para a Copa – seja pelos valores inerentes ao povo- a generosidade, a alegria compartilhada, o calor, a receptividade.

Essa radiografia valorativa, porém, não comporta apenas a planilha de coisas bonitas, lúdicas e festivas, conforme se pode depreender de uma olhada na estética das ruas durante a Copa. Abriga aspectos nem sempre alinhavados pelas lupas sociológicas, como o desleixo, a incúria, a individualidade, a desorganização, a bagunça, enfim, o cenário que tende a propiciar atos de selvageria. Nesse ponto, convém puxar o papel do poder público para a harmonização social. Trata-se de dever inalienável da administração do Estado cuidar para suprir as demandas dos contingentes socais na esfera do cotidiano. Daí a importância de um “choque geral de gestão”. Esse é o ponto fulcral desta abordagem. A escorchante e vergonhosa derrota do Brasil para a Alemanha pode abrir o encontro do Brasil com suas realidades. Passar uma camada de tinta sobre o nosso futebol, deixando o reboco mofado sobre as paredes da saúde, educação, segurança pública, transportes urbanos, enfim, continuar a encobrir a paisagem torta ruas é perpetuar o estado de carências. O mergulho profundo do país no oceano de suas grandes causas pode ser a luz de um novo horizonte. Vai significar a gestão da responsabilidade, tempo dos compromissos com metas e resultados, exigência de qualidade, reparo e reengenharia nas estruturas existentes, busca da simplicidade e da priorização de questões essenciais com plena transparência.

A alegria de um povo não pode ser entendida como um presente da seleção brasileira com vitórias. Mas esse é o entendimento dos nossos jogadores. Ora, eles são pagos para ter um bom desempenho. A alegria das massas é amálgama de sentimentos que juntam os condimentos que entram no cardápio social, todos eles fundamentais para se alcançar o bem-estar. Ficou para trás a era panis et circensis, quando os imperadores romanos distribuíam pão ao povo nas arquibancadas do coliseu romano por ocasião das lutas dos gladiadores. O futebol é apenas um eixo da roda da diversão nacional. A respeito dele, sem querer esmaecer o conceito de negócio que o transforma em atividade das mais lucrativas do mundo do espetáculo, urge que promova maior correspondência entre os salários de jogadores e suas atuações. A impressão é a de que os estratosféricos recursos por eles auferidos estão oceanicamente distantes do que se vê nas arenas. Algo não combina. O clamor das galeras expressa o desempenho da equipe: “falta raça, sobra ração ($$)”. E muita exibição. Estrelas do Olimpo, os nossos atletas até parecem sofrer do “complexo do pavão”.

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