segunda-feira, maio 19, 2014

Relatório sobre as abelhas - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 19/05

O quanto ainda teríamos que avançar para chegar em tal estado de equilíbrio e qualidade de vida?


Há alguns meses, por uma dessas contingências da vida, acordei, no meio de uma tarde de verão quente, com gritos. Desci as escadas em minha frente e vi uma nuvem negra sobre o quintal. Tratava-se de uma invasão de abelhas.

Mais tarde, o especialista me explicou que elas haviam decidido se instalar ali, e logo que começassem a produzir mel se tornariam agressivas. Era urgente que, com todo cuidado que seres em extinção merecem, fossem convencidas a partir. Do contrário, se tornariam senhoras da casa.

Antes de continuar, um reparo: ainda movido pelo espanto, tentamos com as autoridades competentes do local uma solução para a invasão. Soubemos, com novo espanto, que apenas especialistas poderiam dar conta do fenômeno relacionado à decisão das abelhas de ali se instalarem. Sem dúvida que, para elas, detalhes como o fato de aquilo tudo ter sido fruto do trabalho de alguns outros seres que não elas pouco importavam.

Diante da pergunta, "mas se não acharmos um especialista em convencê-las a sair, teremos que aceitá-las em nossa casa?", as autoridades responderam sem pestanejar, "nada se pode fazer contra elas". De novo, com ainda mais espanto, ingenuamente, perguntamos, "mas estamos trancados com todos os cachorros e crianças em casa porque elas tomaram conta do quintal!". De novo, com a tranquilidade de quem enuncia algo decidido numa assembleia soberana: "Nada se pode fazer contra elas". Resumo da ópera: tudo dependia do especialista.

Mas paremos o relatório por enquanto. Voltemos ao momento em que eu despertava do sono. Quando eu contemplava a chegada das abelhas e sua decisão de habitar ali, pensei que maravilha deve ser viver assim, de modo coletivo. A paixão pela vida coletiva deve ser algo inspirado pelos deuses, esse seres que gostam de nos atormentar, às vezes fingindo que não existem, às vezes nos chicoteando para que evoluamos na direção da vida em colmeia.

Já não me lembro se sonhei ou se esse fragmento que narro abaixo de fato aconteceu na minha conversa com o especialista.

Disse-me ele que alguns estudos avançados em ciências cognitivas mostram o nível de prazer (o "gozo da colmeia") que elas, abelhas, esses seres evoluídos, sentem quando colocadas em frente a telas coloridas e cheias de luz. As abelhas, esses seres evoluídos, realizam melhor suas superconsciências coletivas quando colocadas diante de redes compostas por letras, imagens e números.

De volta ao que de fato sabemos que ocorreu naquela tarde quente de verão quando acordei com a chegada das abelhas livres. Para mim foi impossível não pensar no grande Franz Kafka, o profeta da esquizofrenia moderna.

Sabemos que certa feita o sábio de Praga falou que o darwinismo não o assustava pelo que dizia do nosso passado, mas sim o assustava pelo que poderia significar para as próximas gerações. Nutro uma grande simpatia, como o leitor atento bem sabe, pelo darwinismo e sua tragédia cósmica de violência, ordem cega e acaso. Mas não posso deixar de pensar que nosso sábio de Praga tinha alguma razão quanto ao efeito nefasto que uma teoria que nos aproxima tanto dos animais poderia ter sobre as gerações futuras.

A paixão pelo "gozo da colmeia" (fato científico) me faz pensar nessa profecia kafkiana. O modo como as invasoras decidiam, ali mesmo, em meio ao ar, em sua assembleia de consciências coletivas, para aonde iam, quem ia fazer o quê, e quem mandava, me causou espanto. O quanto ainda teríamos que avançar para chegar em tal estado de equilíbrio e qualidade de vida?

Por fim, confesso, reli o fabuloso "Relatório para uma Academia" de Kafka (um conto "evolucionista" no qual ele narra a epopeia de um macaco que "vira" humano, ao longo de uma viagem em que aprende a imitar homens e é levado a academia como grande trunfo da ciência). Abri o texto assim como quem busca um versículo que ilumine a vida e achei a seguinte pérola:

"Durante o dia não quero vê-la; pois ela tem no olhar a loucura do perturbado animal amestrado; isso só eu reconheço e não consigo suportá-lo".

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