sábado, maio 24, 2014

O nome de um jornal - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 24/05

Cuba é um teste para os intelectuais de esquerda. No Brasil, com exceções, eles foram reprovados


"Não queríamos nos apropriar do nome de Cuba para usá-lo como nossa marca e, no seu lugar, escolhemos o mais universal dos códigos: os números." Yoani Sánchez cumpriu a promessa que anunciou em sua visita ao Brasil e lançou, dias atrás, o jornal eletrônico 14ymedio. O nome inspira-se em referências temporais (2014) e espaciais (o andar do apartamento de Yoani, onde funciona a Redação), bem como na ideia de comunicação ("medio": veículo), e inclui um atestado de origem: o Y, referência a seu blog, "Generación Y". Num gesto de respeito à diversidade política, "Cuba" ficou de fora: 14ymedio está dizendo que Cuba é a pátria de todos os cubanos, não uma propriedade ideológica. É por isso que, horas depois da inauguração, o site do jornal foi bloqueado pelos servidores da Cuba castrista.

"Queremos produzir um jornal que não pretende ser anti-Castro, comprometido com a verdade e a realidade cotidiana dos cubanos", explicou o editor Reinaldo Escobar, demitido da publicação oficial "Juventud Rebelde" em 1988 e proibido de exercer sua profissão. 14ymedio evitará usar "palavras carregadas" como "ditadura" e "regime", preferindo expressões como "o chefe de Estado" ou "o presidente general Raúl Castro", completou Escobar. Não são iniciativas destinadas a obter uma (impossível) tolerância do regime, mas a demarcar o terreno: o veículo não é um jornal partidário, militante, mas apenas um jornal. É isso que o torna insuportável aos olhos da ditadura castrista.

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." A célebre definição de Millôr Fernandes não representa um elogio da imprensa militante, mas uma constatação básica, cuja relevância aumenta na razão direta do crescimento dos gastos publicitários governamentais: o jornalismo independente sempre dirá aquilo que não interessa ao poder de turno. O caminho da moderação escolhido por 14ymedio não o torna menos oposicionista, especialmente num país onde discordar do governo é oficialmente classificado como trair a pátria. Em Cuba, os internautas que tentam acessar o novo jornal são redirecionados a uma página consagrada à difamação de Yoani Sánchez. A espúria identificação entre o governo e a pátria é um pilar essencial do regime castrista.

"Deem-me a liberdade de conhecer, de pronunciar e de debater livremente, de acordo com minha consciência, acima de todas as liberdades", escreveu John Milton em 1644 no "Areopagitica", que solicitava ao Parlamento inglês a anulação da exigência de licença oficial para imprimir. O panfleto de Milton está na origem da liberdade de imprensa e da aventura histórica do jornalismo. Seu argumento é que, ao longo do tempo, a obra coletiva de incontáveis autores individuais produziria um saber valioso, muito superior ao saber circunstancial dos censores a serviço do governo. Esse tema, tão antigo, conserva evidente atualidade na nossa era digital. O lançamento de 14ymedio reativa a polêmica deflagrada em meio à Guerra Civil Inglesa do século 17: a liberdade do jornal produzido no 14º andar de um edifício do centro de Havana não é um mero "problema cubano".

"Estou preso e sou feliz, pois me sinto mais livre que muitos que estão nas ruas ou na União de Escritores e Artistas de Cuba", respondeu Ángel Santiesteban, em entrevista publicada na edição inaugural de 14ymedio. Santiesteban já foi agraciado com o Prêmio Casa das Américas, principal distinção literária concedida pelo regime cubano. Há 13 meses cumpre pena por delito de opinião. Cuba é um teste político e moral para os intelectuais de esquerda. No Brasil, até agora e com honrosas exceções, eles foram reprovados. Não se viu um manifesto pela libertação de Santiesteban. Duvido que solicitem a liberdade para o 14ymedio. Eles acham que a liberdade deve ser um privilégio de usufruto restrito aos que concordam com eles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário