domingo, abril 06, 2014

Responsabilidade individual - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 06/04

Seria ótimo que a certeza tão enfática a respeito da responsabilidade do estuprador também fosse ressaltada no caso de outros crimes, especialmente o roubo e o assalto



Em uma de suas maiores falhas no passado recente (e que já custou a cabeça de pelo menos um diretor), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão do governo federal, divulgou, no fim do mês passado, pesquisa segundo a qual 65% dos brasileiros culpariam – pelo menos parcialmente – a mulher pela violência de que é vítima, ao concordar com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Na sexta-feira, o instituto reconheceu o erro e corrigiu o dado: o porcentual dos que concordavam totalmente era de 13,2%; os que concordavam parcialmente eram 12,8%. Outros números foram mantidos. Diante da afirmação “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”, 35,3% concordaram totalmente e 23,2% concordaram parcialmente. Mesmo os dados corretos não deixam de ser preocupantes, apesar de outras questões do mesmo estudo mostrarem uma tolerância menor à violência, e outras pesquisas, especialmente a feita por Antônio Carlos Almeida no livro A Cabeça do Brasileiro, indicarem que a população costuma aceitar que estupradores sofram castigos severos na prisão, incluindo a violação sexual. Essa aparente rejeição ao estupro, no entanto, não anula o fato de que os números do Ipea, mesmo corrigidos, são abomináveis – não é pouco que um quarto da população ache que há mulheres praticamente pedindo para ser violentadas.

Sob o impacto dos dados divulgados inicialmente, a reação da sociedade foi imediata. Na ação que contou com maior publicidade, famosas e anônimas posaram para fotos com a frase “eu não mereço ser estuprada”. Erros crassos do Ipea à parte, a indignação feminina – e masculina também, pois não foram poucos os homens que mostraram sua revolta com a tolerância à violência contra a mulher – é admirável, entre outros aspectos, por recordar uma verdade que costuma ser esquecida com certa frequência.

De quem é a culpa por um estupro? A culpa é sempre do estuprador, verdade reforçada insistentemente. Nada, absolutamente nada justifica um ato de agressão contra uma mulher. Infelizmente vivemos em uma sociedade hipersexualizada, em que a mulher é constantemente reduzida a objeto – a pornografia e as letras do funk estão aí para deixar bem clara a coisificação da mulher; ainda assim, nem mesmo o fato de haver mulheres que prestigiam esse tipo de produto cultural serve de desculpa para uma violência. Culpar a vítima é agredi-la uma segunda vez.

Seria ótimo que essa certeza tão enfática a respeito da responsabilidade do agressor também fosse ressaltada no caso de outros crimes, especialmente o roubo e o assalto. Muitos intelectuais, principalmente ligados à esquerda, são rápidos para encontrar todo tipo de desculpa que tire das costas do ladrão ou assaltante a responsabilidade pelo que fez. A culpa seria da pobreza, que empurra as pessoas para o crime; ou responsabiliza-se diretamente a vítima, que “ostentou” riqueza em uma sociedade miserável. Dois textos em especial são os manifestos dessa mentalidade. O artigo “Pensamentos de um ‘correria’”, que o rapper Ferréz publicou em 2007 na Folha de S.Paulo, é a reação à indignação do apresentador Luciano Huck, que teve seu relógio Rolex roubado em São Paulo. No texto, o rapper diz que, no fim, “todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio”, um “rolo justo pra ambas as partes”. E em 2012, durante uma onda de arrastões em restaurantes paulistanos, o jornalista e doutor em Ciência Política Leonardo Sakamoto defendeu, em seu blog, que “ostentação em um país desigual como o nosso deveria ser considerado crime pela comissão de juristas que está reformando o Código Penal”.

Está mais que óbvio que há um duplo padrão aqui. Quem enfatiza – corretamente – a responsabilidade individual do estuprador não pode isentar o ladrão, o assaltante e até mesmo o assassino em nome de questões de classe social. O entorno tem, sim, sua influência sobre as ações humanas (e por “entorno” não falamos apenas de condições externas, mas também da própria formação moral que cada um recebe). Isso vale tanto para a desigualdade social quanto para a ideia de que a mulher não passa de objeto sexual – e é importantíssimo que a sociedade lute para reverter esse entorno. Mas a decisão final – puxar um gatilho, assaltar um transeunte, violentar uma mulher – é sempre do indivíduo. Recordar essa verdade é um dos méritos da indignação popular contra o estupro. Admitir que todo crime é resultado de uma decisão individual e que nenhuma vítima deve ser responsabilizada pela violência é uma questão não só de coerência, mas de profundo respeito pela liberdade do ser humano.


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