quinta-feira, março 06, 2014

Medicina baseada em pessoas - FLAVIO JOSÉ KANTER

ZERO HORA - 06/03

Aos poucos firmei a ideia de não usar computador nos atendimentos


Tornou-se comum o uso do computador na área da saúde. Acessam-se protocolos baseados no conhecimento científico comprovado e atual, que sugerem como investigar e tratar pacientes. Há diretrizes para tratar e monitorar doenças crônicas. Praticamos medicina baseada em evidências, onde se decide apoiado no melhor conhecimento vigente. Há consensos que reúnem a informação disponível e recomendam as melhores práticas.
Prontuário eletrônico organiza e disponibiliza informação de forma ágil e eficiente. Decidi que não o usaria em meu consultório há anos. Um colega informatizou o consultório. É competente em sua área, temos vários pacientes em comum. Quando ele foi um dos primeiros a usar prontuário eletrônico, achei que deveria fazer o mesmo. Logo porém, um paciente que atendíamos contou que a consulta com o colega havia mudado: “…ele quase não me olhou, só olhava a tela e digitava no computador…” Essa observação gerou a dúvida. Aos poucos firmei a ideia de não usar computador nos atendimentos. Este instrumento entrou em nossa vida e trabalho. Em muitas ocasiões o utilizo para buscar informação, mesmo durante atendimentos. Mas não mudei, o foco da consulta é e tem que ser na pessoa. Se algo puder interferir na atenção, temos que evitar. Há quem utiliza prontuário eletrônico sem desviar o foco. Este não tem que mudar.
Há dias uma senhora sentiu-se tonta ao levantar, caiu, bateu a cabeça. Buscou atendimento no único hospital da cidade onde estava. Foi colocada no protocolo de infarto do miocárdio, embora faltassem muitos elementos para pensar em infarto. Após horas repetindo exames, já cansada e sentindo-se bem, retirou-se sob o protesto da equipe técnica, pois pelo protocolo faltava mais uma bateria de exames. Protocolos e computadores mal utilizados não ajudam, podem atrapalhar.
Atendimento médico é único e individual, não há dois iguais, cada pessoa é única, cada caso é peculiar. O encontro da pessoa com o médico não se repete nem padroniza. Se o foco for o meio (o registro) ao invés da finalidade (o atendimento), perde-se qualidade.
Pacientes perguntam por vezes se não vou aderir ao prontuário eletrônico. Conto-lhes a história do colega que deixou de olhar para os pacientes, e invariavelmente ouço situações vividas por eles que confirmam o desvio do foco. Isso acho inaceitável. O foco do médico continua e não pode deixar de ser na pessoa.

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