O GLOBO - 11/02
Neste país, decerto como consequência do bem-sucedido projeto brasileiro de deseducação, só se pensa e age em manada, em bando, em patrulha, de modo que não há jeito — a menor chance — de se reconhecer e valorizar, por exemplo, um mérito pontual do regime militar de 1964 sem ser logo chamado de ditador, quando não de torturador.
Trinta anos passados, três décadas de proscrição, de degredo, de petrificação dos malditos, tempo em que o simples referir-se aos militares — que não nos piores termos — significou adesão imediata e incondicional ao que ocorria nos porões. Reconhecer a importância da infraestrutura — a única que temos ainda hoje, diga-se — erigida naquele período? Ora, experimente... Comente, com base nos fatos, que o Brasil depende hoje de obras públicas — de portos, de estradas etc. — construídas pelo regime militar e torne-se de súbito partidário e defensor, signatário do AI-5; um golpista!
Se é que a teve um dia, este país terá de todo perdido a mão para o que seja reflexão, equilíbrio e ponderação; mas não sem estender a outra, ato contínuo, ao ridículo.
Ah, o ridículo!
Outro dia mesmo, enquanto atravessava a Rio-Niterói, peguei-me a perguntar: quanto faltará até que um desses lavadeiros da verdade proponha mudar o nome oficial, Presidente Costa e Silva, da ponte? Era questão de tempo — sempre soube. Intuía, contudo, que a hora se acelerava, pois a tinturaria da história tivera gestão mais eficiente nos últimos anos; ademais, acercávamo-nos dos 50 anos do golpe. Era questão de pouco tempo. E, batata!, tinha poucas dúvidas de que a iniciativa partiria de um dos copidesques do Ministério Público, desocupado progressivamente desde o fim da ditadura e finalmente inútil — tornado sem propósito — com a assunção redentora do povo oprimido ao poder, instante em que, no Brasil, como sabido, nada mais houve a ser investigado, denunciado, enfrentado.
Afinal, bicheiros, traficantes, mensaleiros, milicianos e assassinos de mais de 50 mil brasileiros por ano — tudo isso é passado, vencido, superado, miragens que só possuem materialidade na percepção histérica da classe média manipulada, claro, pela mídia golpista. O perigo — apontam os diligentes revisores do Ministério Público — está nos monumentos, nas placas das ruas, avenidas e estradas, nas fachadas de escolas do interior, em qualquer poste que leve o nome de um militar de 1964, de um ditador daquele período proibido.
Mas, atenção!, só daquele — apenas daquele intervalo desgraçado entre 1964 e 1985. No Brasil, também se é seletivo com tiranos. Porque há, tão fofos, os nossos ditadores de estimação. (E não falo nem do amor pátrio por assassinos estrangeiros — e em atividade — como Fidel Castro). Ou não teremos aí o nosso querido Getúlio Vargas, brasileiríssimo, o “pai dos pobres”, homem cruel, vil, perseguidor, golpista, torturador, no entanto a nomear de goleiro a fundação, passando por uma das mais importantes vias urbanas do país?
Eis que, então, aos 50 anos redondos do golpe militar somam-se os 40 de uma das obras públicas mais importantes não só daquele período como, sem dúvida, da história do país. Palco perfeito — cenário iluminado, holofotes todos direcionados — para os justiceiros que não perdem oportunidade de aparecer. E como são bons, generosos na construção do passado que melhor lhes convém.
Ponte Presidente Costa e Silva? Não! Nem pensar! Não se pode deixar uma placa velha, escondida, enferrujada e ignorada sob uma fundação carcomida qualquer — que efeito, que impacto negativo terá sobre as crianças, sobre as novas gerações? (Decerto muito pior que o do crack, cujo consumo por menores, como sabido, já foi perfeitamente controlado). Não pode. Não mesmo. Um absurdo! Uma afronta! Tem de mudar. Alude ao golpe, afinal, ao arbítrio, à tortura; perpetua um passado que se quer apagar, que se fez interdito, e de que não se pode tratar senão com o implacável esfregão seletivo.
A esses revisores da história — tapados pela mistificação, obstruídos pela doutrina do justiçamento da memória, cegos aos fatos — não ocorre examinar, portanto, que sem este homem, sem Artur da Costa e Silva, não haveria a ponte, tão simples quanto isso, não como a conhecemos hoje, e que ali, pois, não se homenageia a ditadura, o arbítrio, a tortura, mas um indivíduo que, apesar de muitos e tantos erros, acertou, não fossem várias as vezes, ao menos uma.
Acertou em bancar, em viabilizar, em sustentar a construção de uma obra que, embora sonhada e ansiada por mais de século, imperador, ditador ou democrata nenhum antes lograra encarar — obra que se tornaria elemento decisivo à integração física não só do Rio, mas do Brasil, marco incontornável da engenharia nacional; obra que ele próprio não veria pronta, morto bem antes; obra, a Ponte Rio-Niterói, que sequer é conhecida pelo nome oficial, mas que o homenageia porque simplesmente não poderia ser de outra maneira.
Celebremos e fortaleçamos a democracia, mas sem jamais nos esquecermos de que o autoritarismo não é exclusividade das ditaduras. E que, portanto, ao apoiar este processo de apagamento seletivo da história, de aniquilamento dos bons feitos alheios, os fernandohenriques da vida não se pensem livres do mesmo destino. Também é questão de tempo.
Ainda bem que o fanatismo tem vida curta em país onde é permitido pensar...
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