quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Fumar é fogo e nadar é água - MARIO SERGIO CONTI

O GLOBO - 13/02

O sublime é uma satisfação estética na qual a beleza está associada ao perigo e à intimidação, e serve como prenúncio da morte


Fumar distingue os humanos dos animais. Nadar é um modo humano de beirar o animal. Fumar e nadar visam vencer o tempo. Inspira-se veneno e se obtém inspiração para viver. Expira-se fumaça como treino para expirar, extinguir-se. Fuma-se para matar o tempo. Se nada para virar nada: deixar-se envolver pela água, percorrê-la até esquecer-se de si mesmo, não sentir o tempo passar. Nadar e fumar colidem mas têm algo em comum, o sublime.

Kant enfileira na “Analítica do sublime” uma série de imagens atemorizantes: rochas que se projetam contra o céu como uma ameaça,vulcões, nuvens de tempestade arremetendo com relâmpagos e trovões, cataratas de um rio caudaloso, furacões, “o imenso oceano em fúria”. Esses fenômenos naturais têm tal força que tornam risível o poder do indivíduo de resistir a eles. Aí Kant anota: “Mas se estivermos em segurança, o espetáculo torna-se muito atraente, na medida em que é apropriado para causar medo; e de bom grado qualificamos essas coisas de sublimes”. É de um porto seguro que o ser se mede com a onipotência da natureza aterrorizante.

O sublime, portanto, é uma satisfação estética na qual a beleza está associada ao perigo e à intimidação, e serve como prenúncio da morte. Kant — que não fumava — parece descrever o fascínio do cigarro. É encantador o suave narcótico que centra o ser no espaço, resguarda-o da rugosa interação humana, condensa uma névoa que oculta os relógios. Nesse meio tempo, o cigarro empesteia tudo em torno, entope o pulmão de peçonha, mutila a vontade, vicia o sujeito na mercadoria, liga a jugular do indivíduo à indústria. Por meio de moléstias, definhamento e falta de ar, abrevia a vida da pessoa que quer continuar a fumar, dar uma última tragada, mas não já, na semana que vem, talvez. O sublime fica na esquina do prazer com o perigo.

Como o prazer é agora e o perigo só virá depois, não há cidade, povo e cultura que, expostos ao petardo de tabaco e nicotina, o tenha dispensado. Sete bilhões de pessoas vivem hoje, um bilhão fuma. Não há pesquisa científica, foto de amputado no verso do maço e onda de proibição que possam vencer o cigarro. Elas repetem a invectiva do rei James I, da Inglaterra, que em 1604 escreveu: “fumar é desagradável à visão, repulsivo ao olfato, perigoso ao cérebro e nocivo ao pulmão por propagar emanações ao redor do fumante tão fétidas quanto as que provêm do inferno”.

Se for trocada a noção religiosa de inferno por uma referência a câncer, a frase poderia abrilhantar um relatório de saúde pública escrito hoje. O ímpeto repressivo é idêntico. Porque fumar é gostoso. E o prazer tem que ser impedido, é o que defendem todas as seitas. Mas não proibido de maneira absoluta: há que se pensar nas transnacionais do fumo e plantações de tabaco, na indústria da saúde e no comércio do vício. Tudo isso propicia emprego e lucro, faz o capital girar, move o mundo.

Cigarro não é droga. Ele não altera a percepção de maneira perceptível. Não materializa sherazades como o crack, o álcool e a heroína. É aceito socialmente, apesar das restrições. Dá ao abstêmio uma sensação de superioridade em relação ao fumante. Em resposta, o viciado adota modos cool, faz e caras e bocas para os caretas. Todos ficam bem. E ambos podem nadar.

O conceito de sublime de Kant foi influenciado por Edmund Burke. Num livro de título quilométrico — “Uma investigação filosófica acerca da origem das nossas ideias do sublime e do belo” — o pensador irlandês viu maravilhas na associação entre deleite e medo. Ele usa o mar como exemplo. Fala da sua agitação constante, do receio que ele inspira, das ondas que se repetem, da “vibração” provocada pelo obscuro oceano. Emprega a expressão “tranquilidade tingida de horror”.

O nadador busca essa tranquilidade tingida de horror. Ele mergulha no meio que lhe é hostil. É um peixe fora d’água com algum autocontrole. Uma tesoura a cortar a água. Ele cansa, tem dificuldade em se concentrar. Angustia-se com a monotonia. Não vê nada além de nesgas entrecortadas e um fundo embaçado. Cogita parar. É aos poucos que se adapta ao líquido. O nado agora é constante, ritmado. O tempo parou. Deixa de ser alguém para virar algo: “não o morto nem o eterno ou o divino, apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente e solitário vivo”. A piscina é um imenso maço de cigarros.

A sacerdotisa Hero ficava numa torre no litoral grego. Toda noite, ela acendia uma tocha para orientar Leandro, na Turquia, a atravessar o estreito do Helesponto. Eles então se amavam. Uma noite veio a tempestade e apagou o fogo. Leandro se afogou e Hero se suicidou. Byron, que fumava como um turco e nadava como um grego, cruzou o Helesponto a nado e fez um poema sobre o assunto.

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