segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Direito ou favor - LIGIA BAHIA

O GLOBO - 17/02

Pobres são atendidos em instituições de saúde caritativas, públicas precárias ou em poucos centros de excelência



Faz toda diferença organizar a atenção pública à saúde como direito ou favor. Nas sociedades capitalistas a escolha fundamental sobre as ações de saúde é serem ou não tratadas como mercadorias. Como commodities os cuidados assistenciais são disponíveis para quem os puder pagar. Mercados competitivos tenderão a estabelecer preços ajustados atuarialmente, o que significa cobrar de modo diferenciado os riscos de cada indivíduo. Os saudáveis pagam menos e os preços tornam-se muito elevados para os recordistas em tratamentos para doenças, acidentes ou deficiências.

Em contraste, a saúde pode ser um direito e obrigação de todos, e seus custos refletirão necessariamente uma divisão de responsabilidades que suprime as barreiras de acesso aos doentes e aos pobres.

Na maioria dos países desenvolvidos, a saúde é um direito. Os serviços médicos e hospitalares são públicos ou particulares, remunerados pelo governo. Consultas, internações, exames, transporte de pacientes e a dispensação de medicamentos não são atividades lucrativas. São sistemas de saúde socializados, não socialistas. Atividades industriais, como a produção de medicamentos, equipamentos e mesmo serviços como hotéis próximos a hospitais ou exclusivamente dedicados a hospedagem de convalescentes e seus familiares pertencem à esfera privada. A integração entre direito à saúde, ciência, tecnologia e atividades econômicas dinamizadas por sistemas abrangentes resultou na melhoria da qualidade de vida, transferência para o governo dos gastos dos indivíduos e famílias com despesas médicas, hospitalares e medicamentos, e inovações voltadas à eficiência e à eficácia. Os países de renda média e baixa se caracterizam por uma oferta insuficiente e mal distribuída de recursos para a saúde. Os pobres são atendidos em instituições caritativas, públicas precárias ou em poucos centros de excelência, geralmente concentrados em grandes cidades. Os especialistas internacionais consideram que esses sistemas não são capazes de controlar as doenças e mortes evitáveis e retardam ou impedem a saída de imensos contingentes populacionais das condições de pobreza.

Baixos gastos governamentais e elevados dispêndios dos orçamentos domésticos com o tratamento de doenças são familiares para brasileiros. Virar-se para conseguir tratamento — na prática, pedir favores — pode ser extremamente humilhante. Os intérpretes do singular fenômeno da elevadíssima insatisfação com a saúde nas pesquisas de opinião atribuem à mídia a exposição das mazelas da saúde pública. Consideram que as imagens e reportagens sobre o SUS, sempre desfavoráveis, ocupam mais tempo e espaço do que outros problemas cruciais como trânsito, violência e educação. Argumentam ainda que o descontentamento com a saúde não tem solução porque, para que o Brasil tivesse um sistema universal, o PIB teria que dobrar. Conscientes sobre a impossibilidade de os problemas de saúde desaparecem das rádios televisões e dos jornais e de uma reviravolta na evolução das taxas de crescimento econômico, concluem que o melhor a fazer é evitar o assunto.

O exame das contrariedades com saúde, sob outra perspectiva, a dos fatos, propicia uma explicação mais simples. Matar um ou mais leões por dia para obter atendimento razoável para si ou para parentes e amigos é exaustivo e aviltante. Não deixar na mão quem precisa ser hospitalizado, fazer exames ou consultas especializadas significa percorrer diversas UPAs e hospitais, ficar pendurado no telefone apelando a conhecidos e conhecidos de conhecidos. Parte do sistema de saúde brasileiro ainda se baseia na lógica do favor. Outra parte segura a barra dos altos custos, inclusive aqueles gerados pela epidemia de violência. As vítimas das tragédias causadas pela caçamba do caminhão que derrubou uma passarela e pelo rojão que matou o jornalista Santiago Andrade foram atendidas no SUS. Os gastos com saúde serão menores se houver redução da violência, da obesidade, prevenção e tratamento adequado e continuado de doenças crônicas, e se o acesso não depender de favores.

Países europeus com sistemas universais gastam com saúde pelo menos quatro vezes mais que o Brasil. Em compensação, a remuneração de médicos, enfermeiros e outros profissionais brasileiros aqui é muito menor. Contudo, a dependência de importações de produtos essenciais ao diagnóstico e terapia, as fragilidades dos contratos de trabalho estabelecidos pelo SUS e a descoordenação das atividades custam caro. Preços de insumos, equipamentos e medicamentos tão ou mais altos do que os dos países produtores, a não modernização dos sistemas de informação e gestão e de carreiras diferenciadas, e pagamento de salários inadequados aos servidores são fatores inviabilizadores da universalização do direito à saúde.

O país campeão das preocupações com saúde tem um SUS subfinanciado e mal gerido e o segundo maior mercado de planos privados do mundo. Equacionar a saúde por advertências sobre a incompatibilidade entre o volume de direitos à saúde proposto pela Constituição de 1988 e as restrições para a expansão de gastos é um anacronismo a ser superado. O cálculo das despesas com um sistema universal não se resume a uma operação aritmética de multiplicação do PIB. O SUS, atacado no século passado pelos neoliberais como obstáculo ao ingresso do Brasil nos circuitos globalizados, manteve-se de pé. Mas precisa passar por mudanças radicais, entre as quais a coordenação estável das ações da União, estados e municípios, o fortalecimento da base produtiva nacional de medicamentos e insumos, e o pagamento adequado à dedicação e qualificação dos servidores públicos.

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