domingo, fevereiro 09, 2014

A São Petersburgo de Putin - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 09/02

Somos agora, inexoravelmente, os próximos da fila a sediar os chamados Grandes Eventos



Duas marcas já estavam asseguradas para Sochi antes mesmo da cerimônia de abertura da sexta-feira com que Vladimir Putin validou sua Rússia perante o mundo.

A 22ª edição dos Jogos de Inverno seria a mais polêmica desde as Olimpíadas “soviéticas” de 1980, em Moscou, realizadas sob boicote de 65 países anticomunistas liderados pelos Estados Unidos. Seria, também, a potencialmente mais tensa desde que oito terroristas encapuzados do Setembro Negro irromperam nos Jogos de 1972 em Munique e chacinaram 11 atletas israelenses.

Para o Brasil em vésperas de Copa do Mundo, e para o Rio em gestação das Olimpíadas de 2016, a realização dos Jogos em Sochi traz um friozinho maior na barriga: somos agora, inexoravelmente, os próximos da fila a sediar os chamados Grandes Eventos.

É sabido que Fifa e Comitê Olímpico Internacional (COI) têm DNA diferente; boa parte dos membros de suas respectivas entidades sequer frequenta as mesmas seções do noticiário. Ainda assim, o Brasil da Copa podia ter se espelhado nas Olimpíadas de Los Angeles se tivesse tido como meta a adequação do Mundial às necessidades do país a longo prazo.

Os Jogos de Los Angeles de 1984, que custaram 546 milhões de dólares (algo como US$ 1,2 bilhão em valores de hoje), foram os únicos a dar lucro. Eles tiveram uma singularidade em comum com o Mundial deste ano: a inexistência de qualquer concorrente. Foi a partir dessa posição de vantagem que os organizadores americanos ditaram as linhas gerais prevalecentes. Algo mais do que uma “conversa de presidente para presidente”, para usar o termo tão caro ao chefe da Fifa, Joseph Blatter, referindo-se à interlocução que sempre pleiteia ter com Dilma Rousseff.

O Brasil tampouco teve concorrentes que quisessem sediar a Copa. Perdeu portanto a chance de exigir o que devia enquanto bateu pé para obter o que não devia. Agora é torcer para a sangria não ser grande demais nas duas pontas.

Para o Rio 2016, uma comparação com os aspectos mais ensandecidos de Sochi pode trazer tanto suspiros de alívio como vontade de sumir: ninguém conseguirá superar a visão faraônica de Vladimir Putin.

Embutido no custo estratosférico de US$ 51 bilhões para a olimpíada russa de 17 dias (ou US$ 510 milhões, em média, para cada um dos 98 eventos disputados) está a realização de um projeto maior.

Algo que ninguém pediu, muito menos o alemão Thomas Bach, que faz em Sochi sua estreia olímpica como recém-empossado presidente do COI. E que alterou quase que por decreto o papel tradicionalmente reservado ao prefeito da cidade-sede de uma olimpíada.

Anatoly Pakhomov, o titular do cargo de burgomestre de Sochi, tratou de contentar-se disciplinadamente em ser deletado do palco principal. Depois de atuar como mestre de obras com dois PhDs na extraordinária transformação do cenário, dedica-se à função de enumerar o que foi realizado no espaço de sete anos.

O repórter do “New York Times” Steven Lee Myers conta não ter conseguido encaixar uma só pergunta antes de Pakhomov listar em alta velocidade um primeiro lote de realizações: “Construímos 438 subestações de transformadores, 17 centrais de distribuição de energia, duas centrais termelétricas, três usinas de purificação de água, mais de 22 túneis e 55 pontes, 13 estações de trem novas ou renovadas, cinco escolas, seis centros médicos, 49 hotéis com 24 mil quartos...” O segundo lote não era menos impactante.

Essa Sochi 2.0 erguida à maneira da São Petersburgo por Pedro, O Grande foi inteiramente concebida por Putin. Ele mesmo a defendera com fervor na Guatemala em 2007 perante a comissão avaliadora do COI como um renascer da Rússia das ruínas da União Soviética.

À época o país despontava com musculatura entre as nações emergentes, e a solidez do poder de Putin, que estava no segundo mandato, deve ter contribuído para o pêndulo dos votos olímpicos recair sobre Sochi.

É bem verdade que a conta apresentada pela candidatura russa, sete anos atrás, era substancialmente menor — meros US$ 12 bilhões. E que hoje o crescimento econômico do país de Putin é de apenas 1,3% — o mais baixo em uma década. Ao dar continuidade ao histórico soviético de megaprojetos decididos de cima para baixo, o presidente russo apenas retirou de Sochi o seu elemento mais ideológico. Os demais ingredientes para a sua sustentação no poder, contudo, são os mesmos que fizeram a glória e provocaram a queda do regime anterior.

Mas para quem, como Vladimir Putin, acha normal chegar 50 minutos atrasado ao primeiro encontro com o Papa Francisco e já deixou a rainha Elizabeth II esperando 14 minutos, não deve ser simples ter uma dimensão clara da sua estatura no mundo real.

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