terça-feira, janeiro 21, 2014

Uma cidade de vendedores de rua - MARCUS FAUSTINI

O GLOBO - 21/01

Impossível pensar a formação dos sentidos de um carioca sem nenhuma história de camelô


Minha formação é marcada pela admiração aos vendedores de rua, ambulantes. Ainda moleque, acompanhava meu avô vendendo garapa de maracujá pelas ruas do Complexo do Jacarezinho. Gostava de passar a mão no suor gelado do bujão, de ver a organização de moedas e notas separadas nos bolsos do jaleco branco, que nunca estava sujo. Os clientes que queriam aliviar a quentura e adoçar a saliva convocavam Seu Sivirino pelo nome. Suas lembranças da Paraíba pontuavam a conversa entre goles dos compradores.

Um de meus tios, morador da Cidade de Deus, vendia amendoim torrado num carrinho na Praça Saens Peña, na Tijuca. Levado por minha mãe ou por uma de minhas tias, presenciava essas visitas que eram o correio dos assuntos internos da numerosa família espalhada pelos conjuntos habitacionais e favelas da metrópole. Enquanto a conversa desenrolava, as densas bolhas do cozimento do amendoim atiçavam a curiosidade do meu dedo indicador.

— Tira o dedo que vai queimar, moleque da peste!

Saber que os estudos de Eletrotécnica de meus primos, filhos desse tio, eram bancados com o dinheiro da venda dos saquinhos de amendoim e de coquinho queimado conferia uma importância na lista de profissões que eu já fazia naquela época.

Na minha juventude, esse bunker de imaginário afetivo com os vendedores de rua foi bombardeado pelo entendimento da condição social e sobretudo pela permanente criminalização dos arranjos populares de sobrevivência nas ruas. Intriga-me até hoje também a falta de constrangimento da publicidade de bebidas, que usa vendedores de rua como personagens em seus comerciais e só cria apoios para empresários do ramo.

O leitor mais chegado certamente reconhece esse universo do meu “Guia afetivo da periferia”, essas questões que insisto em pôr aqui na coluna de hoje de forma mais argumentativa e menos literária que no livro. Entretanto, dia desses fui tomado novamente por esse meu depósito sensível.

Igor tem perto de 29 anos, mora na Ilha do Governador, vende pequenos objetos chineses pelo eixo Glória-Botafogo. Puxei assunto com ele depois de sua abordagem oferecendo um curioso cinzeiro portátil colorido e individual. Era tarde de sábado e eu embalava uma conversa na Praça São Salvador com o parceiro Miguel Lago — um dos criadores do Meu Rio —, que acabava de voltar de Paris e me explicava como era ruim para os direitos dos imigrantes a possibilidade concreta de a direita ganhar as próximas eleições municipais de lá. O sorriso aberto de Igor, em pílulas após cada frase, demonstrando uma engenhosa estratégia afetiva de venda, foi suficiente para o papo seguir a três. Igor contou que estava estudando para um concurso e os horários da rua permitiam algum trocado e alguma disponibilidade para a meta. Sua mãe o criou e aos irmãos “na máquina de costura”. Igor estava bem arrumado e nos ofereceu alguns conselhos sobre a vida no final da conversa. Um negro magro, alto, brilhante, que deve ter saído de algum desses cartazes dos Panteras Negras que voltaram a circular pelas redes sociais. Um presente para a tarde de verão que anunciava vento, trovão, raio e chuva.

Tenho certeza de que esse tipo de encontro não marca apenas a minha trajetória. Esta é uma cidade de vendedores de rua. Impossível pensar a formação dos sentidos de um carioca sem nenhuma história de camelô, vendedor de rua ou de corrida na porta de casa ao ouvir o pregão do vendedor de cocadas, já flagrado por Machado de Assis bem antes de nós. É claro que sabemos que são estratégias autônomas de autoemprego, fruto de uma precarização das relações do mundo do trabalho assalariado, marca de gerações de famílias populares sem direito ao acesso à formação que ainda persistem neste país. Não possuem a importância legitimada da pólis que um artesão — fruto do imaginário eurocêntrico — possui. Entretanto, a contribuição dada por esses vendedores à vida econômica da cidade e à vida cultural das ruas é mais generosa. Infelizmente, não é difícil perceber um comportamento médio que na hora da “necessidade” saúda a presença de um vendedor de rua, mas faz coro por sua exclusão dos ambientes urbanos, associando a mesma celebrada presença a algum tipo de crime.

Para retornar a contribuição dada por esses sujeitos, além de garantir direitos, é preciso dar visibilidade a essas trajetórias. Mostrar suas singularidades, suas errâncias. Temos uma tradição de histórias de vida, estratégias de sobrevivência e arranjos produtivos a aprender com eles. Nenhum direito se constitui de fato com a invisibilidade — Luiz Eduardo Soares já se dedicou ao tema! Os vendedores de rua não podem estar apenas hegemonicamente representados como tipos e alavancas da trama na narrativa ficcional. E, quando for à Lapa, não se esqueça de apreciar, cada vez mais inventivas, as arrumações dos tabuleiros dos vendedores de bala.

Em homenagem ao “Véio Sivirino”. Tua garapa foi lisérgica pra este neto.

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