quinta-feira, janeiro 09, 2014

Trotski, da vida à ficção - MARIO SERGIO CONTI

O GLOBO - 09/01

Durante toda a vida, ele combateu a superioridade que hoje se atribui ao indivíduo


Com sete bilhões de terráqueos, o planeta está cada vez mais populoso e menos coletivo. O individualismo é a ideia dominante no Ocidente. As famílias diminuem de tamanho, os laços com a comunidade se afrouxam, o bem-estar social perde importância diante do Eu. O interesse pelo subjetivo se apresenta no culto ao corpo, na psicologia de autoajuda e no endeusamento de celebridades — aqueles seres que rendem biografias. Quando a celebridade é um coletivista radical, alguém que não acredita no primado do indivíduo, se dá um curto-circuito. É o que está a ocorrer com Leon Trotski.

O revolucionário russo é o personagem capital de “O homem que amava os cachorros”, o romance de Leonardo Padura lançado há pouco. O escritor cubano nele entrelaça a vida de Trotski com a de Ramón Mercader, o espanhol que o alcançou no México e o matou com uma picareta de alpinismo. O assassino teve à disposição meios enormes — cerca de cinco milhões de dólares, uma fortuna no fim dos anos 1930 —para infiltrar-se no campo inimigo, cometer o crime a sangue frio, dizer-se um trotskista arrependido, ser condenado e cumprir a pena de 20 anos de prisão sem jamais dizer a verdade: que era um agente do aparelho policial da União Soviética e cumpria uma missão.

A vida aventurosa e a morte violenta de Trotski foram tema de dezenas de biografias, duas delas excelentes: a trilogia de Isaac Deutscher e as mil páginas de Pierre Broué. Na ficção, o seu destino foi bem agitado. Joseph Losey dirigiu “O assassinato de Trotski”, com Alain Delon no papel do assassino e Richard Burton no do revolucionário. O americano Richard Hoyt escreveu “Trotsky’s run”, thriller comercial no qual um revolucionário comunista ameaça virar presidente dos Estados Unidos. Já Jorge Semprún fez um thriller poético, “A segunda morte de Ramón Mercader”. Em toda a ficção, o que falta é o Trotski radical.

Durante toda a vida, Trotski combateu a superioridade que hoje se atribui ao indivíduo. Até a sua autobiografia, “Minha vida”, ele escreveu, foi um livro de combate político, e não a exposição da sua subjetividade. E a sua política (o trotskismo, termo que ele sempre repudiou) pode ser condensada em duas ideias, a da revolução permanente e a da revolução política. A revolução permanente ocorreu em 1917, quando os trabalhadores tomaram o poder num país atrasado, a Rússia. Mas ela parou no meio porque foi derrotada nos países europeus adiantados. Isolada, a União Soviética viu crescer uma casta burocrática, o stalinismo. Ela só poderia ser derrubada por meio de uma revolução política, na qual os trabalhadores retomassem o poder. Embora o stalinismo tenha se esboroado, a revolução política não ocorreu. Ao contrário, a partir de 1989 todo o leste europeu e a União Soviética abandonaram o socialismo. Na China, o próprio PC restaura o capitalismo.

Como a História foi para um lado e os prognósticos de Trotski para o outro, ele deixou de ser visto como um líder político. Mas, como propugnava ideias hoje fora de moda, a sua análise a sério perdeu sentido. A sua última biografia, a de Robert Service, por exemplo, é rebarbativa, tola no seu anticomunismo. Restou então a Trotski a ficção do indivíduo.

A outros revolucionários restou o silêncio. Não há estátuas de Robespierre, e foi ele quem forjou a ideia de igualitarismo na França. Saint-Just, que disse que a felicidade era uma ideia nova na Europa, foi esquecido. De Lênin resta tão-somente o mausoléu na Praça Vermelha, apenas um lembrete de que se encontra morto de verdade e não ressuscitará. Eles não encontram lugar no presente porque os conceitos de revolução coletiva e igualdade entre os homens perderam lugar. O individualismo vem triunfando.

Em “O homem que amava os cachorros”, são as características pessoais de Trotski que importam, assim como as de Ramón Mercader. Há detalhes e mais detalhes da vidinha do assassinado e do assassino. O que não está presente são as aspirações que geraram a vítima e o seu algoz. Com isso, o romance é escrito com competência convencional, mantém o suspense, envolve o leitor, exibe as marcas do empenho honesto. Quanto à História que ultrapassa os indivíduos, porém, ele é um adeus à viva claridade de verões interrompidos.

Um comentário:

  1. Eduardo10:11 AM

    "Eles não encontram lugar no presente porque os conceitos de revolução coletiva e igualdade entre os homens perderam lugar. O individualismo vem triunfando".
    Não encontram lugar no presente porque suas ideias concretizaram a essência do seu pensamento: o totalitarismo.
    O individualismo é o mal do mundo, não o totalitarismo: ideia de jerico.

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