domingo, janeiro 12, 2014

O Avô da Lucinda - ADRIANA CALCANHOTTO

O GLOBO - 12/01

Luis Fernando Verissimo é aquele que hoje em dia é conhecido como o avô da Lucinda


Aprendi a amar Erico Verissimo antes mesmo de ler sua obra. Minha tia Istellita, professora de língua portuguesa, me preparou antes. Falava de sua escrita, do quanto era telúrico, simples, político, autêntico. Quando fui ler já sabia do homem simples que ele gostava de ser. Mergulhei na sua obra e me transportei inteira para o seu mundo (com um pouco mais de comedimento do que minha tia Istellita, anos antes, que se despedia das pessoas com “tchau, gente, vou embora que meu amante está na cama me esperando”. “Seu amante!? E quem é o seu amante?” “Erico Verissimo”, ela dizia, e saía em disparada para a cama, para a página marcada no livro.

Depois comecei a seguir o filho, Luis Fernando Verissimo, que escrevia para o jornal, que criou o analista de Bagé, que criou As cobras e outras maravilhas. E ainda desenhava, e não bastando fez a minha querida amiga Fernanda, a Mariana, o Pedro, mas aí com a amorosa ajuda da Lucia. Acho lindo, quando perguntado sobre quem é a mulher mais bonita do Brasil, ele sempre responde: “Lucia Verissimo”.

Uma vez fui visitá-lo em um grupo, e fomos para o seu escritório. Umas pilhas de livros sobre caixas de livros. Livros, mais uma pilha de livros. Mais livros em cima da mesa, livros, uma pilha de livros e … uma bandeirinha, do Internacional, sobre uma pilha de livros. Somos duas pessoas tímidas que preferem ouvir a falar, de modo que nossos encontros não costumam ser ruidosos, os dois ficam olhando para o chão, é uma mania nossa. Tendo aquela sensação de maravilhamento entre suas pilhas de livros me deparei com uma bandeirinha do Internacional. Ele torce para o Inter. Como minha tia Istellita. Eu sou gremista (e botafoguense). Toquei a bandeira de leve, com a ponta dos dedos, delicadamente, assim como quem não tem mais esperança de nada nesta vida, achei que ele não estivesse me observando, mas estava, e nós, em silêncio, olhando para o chão, nos dissemos mutuamente: “ninguém é perfeito”.

Algum tempo atrás tivemos uma conversa, publicada neste Segundo Caderno, e desta vez ele me recebeu na biblioteca, do pai. A biblioteca de Erico Verissimo. As lombadas, as lombadas, a energia que emana daqueles livros, lidos, manuseados pelo grande escritor, amigo de Clarice Lispector, amante da minha tia Istellita, o avô da Fernanda, pai do Luis Fernando. Luis Fernando Verissimo é aquele que hoje em dia é conhecido como o avô da Lucinda.

Pois bem, foi na condição de leitora, não do Erico, mas do avô da Lucinda, que li que o coitado tinha medo de monstros debaixo da cama, na hora de dormir. Sempre tive pena dele por isso. Lucinda então ganhou de presente da Partimpim uma canção para que ela cantasse à noite para o avô. Para ele dormir sossegado. Junto com os monstros. Porque, se tem realmente monstros debaixo da cama, Lucinda pode, cantando, botar logo esses monstros pra dormir em vez de ficar tentando convencer o avô de que debaixo da cama não tem monstro nenhum. Em seguida ele quase me mata do coração, foi parar no hospital, passou uma temporada lá, quase mata todo mundo do coração. Pedi notícias e a resposta foi um “voltou melhor ainda, agora fala”.

Aí, esse homem, o avô da Lucinda, imaginava eu, recuperado, dias atrás, na coluna aqui do jornal, levantou a possibilidade de uma possibilidade de a final da Copa “do mundo da Fifa” deste ano ser entre Brasil e Uruguai, no Maracanã, exatamente como em 1950. Desde que li isso uns monstros estão morando debaixo da minha cama. Não posso, como o avô da Lucinda sugere, fazer as contas e os cálculos das tabelas porque não sei matemática. Assim como não sei história mas conheço algumas coisas muito importantes sobre o Brasil. Que foi descoberto, da carta de Pero Vaz de Caminha, de muita coisa boa e muita coisa ruim, escravatura, até censura e ditadura tivemos, mas que o episódio mais negro e desolador, o que mais feriu a alma da nação no fundo de seu âmago, a enorme sombra escura sobre o orgulho dos milhões de brasileiros, foi a derrota para o Uruguai em 1950 no estádio do Maracanã. Sei que tem gente que nunca se recuperou daquilo. Daquele estádio em silêncio ensurdecedor, o país cabisbundo, um trauma eterno. Filmes foram feitos para modificar a triste realidade, em vão. A esta altura do campeonato já se sabe se existe ou não alguma chance de isso acontecer. “O time do Uruguai não está jogando mal”, engorda meus monstros o avô da Lucinda, na mesma coluna.

Vamos vencer a Copa, é claro, temos o Felipão, no comando de bons jogadores motivados por ele como uma “equipe”. Tabelas são tabelas, mas no jogo de futebol, como o nome diz, absolutamente nada é impossível. Qualquer coisa pode acontecer. A graça toda é essa. Não sei, mas acho que o avô da Lucinda vai ter que deixá-la vir me botar pra dormir até a final no Maracanã.

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