quinta-feira, janeiro 16, 2014

Frio e fome em Nova York - MARIO SERGIO CONTI

O GLOBO - 16/01

As lições dos grandes mestres só encontram ressonância entre os velhos? O novo é o que restou?


Não havia quase ninguém na rua no dia mais frio de Nova York em 118 anos. A cidade amanheceu com -15°C na terça-feira da semana passada. Nas esquinas, onde o vento sopra com força, a sensação era de -29°C. A imprensa local chamou o recorde negativo de vórtice polar. Por mais camadas de roupa que se ponha sobre o corpo, a proteção é pouca. O ar glacial se infiltra. Exposto, o rosto arde. Os lábios ressecam. O incômodo é contínuo. Enquanto isso, no Rio a temperatura era de 40°C. Melhor o frio.

Porque é mais fácil se refugiar da espiral de ar glacial vinda do polo do que do calor carioca. Há cafés onde se aquecer em Nova York. Escritórios, lojas e apartamentos têm calefação. No Rio, o ar-condicionado é um luxo. Apesar de tropical, a cidade não está preparada para altas temperaturas. Nesse sentido — e só nele — ela é como Paris. Na canícula de há dez anos, que matou mais de 15 mil de franceses, as pessoas buscavam abrigo nas catedrais, onde a temperatura é sempre mais amena. As praias são as catedrais cariocas.

Não foi o maior frio já vivido. Em invernos na Islândia, na Ucrânia e na Rússia, a temperatura foi semelhante. Na Lapônia, o termômetro desceu a -37°C. Nas geleiras islandesas e no círculo polar lapão, contudo, as roupas eram adequadas e não houve problema. Já em Odessa o hotel da Intourist, recém-privatizado, não tinha calefação. O vidro da janela do quarto estava rachado, e o remendo fora feito com fita crepe. Era preciso dormir de casaco. Em São Petersburgo, museus e teatros não contavam com aquecimento. Ficava-se na rua, comprava-se vodca de camelôs em copos de plástico, fazia-se hora no saguão de hotéis caros, cheios de prostitutas lindíssimas. Era melhor que a Avenida Rio Branco num meio-dia de verão.

Em Nova York, vai-se a museus quentinhos. Pelas coleções egípcia, grega e do Renascimento, o melhor continua sendo o Metropolitan. Ele estava sem filas, dava para ver tudo de perto e com vagar. Havia muito mais gente no Museu de Arte Moderna, o que é difícil entender. Ou aceitar. O Metropolitan, além de ser de graça, tem umas 20 obras-primas reconhecidas. Já o MoMA é pago (25 dólares) e as peças de renome convivem com embustes — quando não são elas próprias empulhações. No primeiro, a maioria do público era de cinquentões. No MoMA, havia quase só jovens. Do pop em diante, a arte diz mais aos jovens? As lições dos grandes mestres só encontram ressonância entre os velhos? O novo é o que restou?

A obra de maior impacto à mostra em Nova York nem bem obra é. “Cabeça de uma jovem”, estudo de Leonardo da Vinci para a tela “Nossa Senhora dos Rochedos” está numa mostra da Morgan Library. É inacreditável como Leonardo capta a finura de um rosto, suas perturbações e calma interior, sua história e a do tempo. Bernard Berenson chamou o estudo de “uma das melhores realizações de toda a história do desenho”. E Kenneth Clark, hiperbólico, disse que era o “mais belo do mundo”. Nas afirmações, os dois críticos lidam implicitamente com os conceitos de reprodução do real, beleza, descoberta, iluminação. São coisas que ficaram para trás, ao que parece: havia só uns gatos-pingados contemplando o rascunho de Leonardo.

Outra grande surpresa também está na Morgan. São cartas de J. D. Salinger a uma aspirante às letras, a canadense Marjorie Sheard, não recolhidas em livro. A fama de “O apanhador no campo de centeio” é quase só americana; o romance diz menos a nosotros das colônias. Mas Salinger escreveu numa carta: “Estive relendo ‘Anna Karenina’. Não é um livro tão bom quanto ‘Guerra e paz’, mas um trabalho bem mais engenhoso. Esse cara, Tolstoy. Acho que ele vai longe”. Tem sua graça, sobretudo em inglês (This man Tolstoy. I think he will go places).

No frio, fica-se mais tempo em restaurantes. Seguem-se sugestões de alguns deles, baseados em cinco critérios nada sofisticados: a comida é boa; as porções são fartas; custam menos de 60 reais por pessoa; ficam numa mesma vizinhança; aceitam esfomeados sem reserva.

De Robertis, pasticceria italiana onde há um canoli de se comer de joelhos, está vazio desde 1904, apesar de Kubrick ter filmado ali (1st Av, esquina com 11). Hanjoo, de churrasco coreano, serve tripas de sabores ignotos e intensos (St Marks Place). Só com a gordura do pato do Peking Duck House dá para enfrentar uma semana gélida na rua (Mott St). Mamoun’s é uma biboca onde um falafel divino sai por 15 reais (St Marks Place). O burrito com feijão preto do Dos Toros vale por um almoço e um jantar (4st Av com 13). No Yakitori Taisho vão apenas jovens da colônia nipo-americana, e sai-se de lá defumado da cabeça aos pés, como convém aos bons estabelecimentos do ramo dos espetinhos (St Marks Place).

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