REVISTA VEJA
Um lançamento editorial recente traz, sob o título de O Livro de Tiradentes (Penguin & Companhia das Letras), uma tradução do Recueil (Coletânea, em francês), acompanhada de preciosos ensaios coordenados pelo brasilianista Kenneth Maxwell, autor do fundamental A Devassa da Devassa, sobre o mesmo episódio. Não adiantou Tiradentes ter tentado se livrar do livro. Tão logo chegou a Minas, o oficial a que o confiou entregou-o às autoridades. O conteúdo era nitroglicerina pura. "Tratava-se de documentos revolucionários, que constituíam a primeira tentativa de condensar e afirmar princípios, direitos e deveres universais por meio de documentos constitucionais escritos", escreve Maxwell. O livro provava, como afirmou uma das testemunhas ouvidas na Devassa — o volumoso inquérito aberto contra os insurretos — que, em vez "da obediência que devem prestar a seus legítimos soberanos", os acusados acalentavam "a vontade de fazerem do Brasil uma República livre, assim como fizeram os americanos ingleses".
A Coletânea reunia a Declaração da Independência, os Artigos da Confederação e as constituições de seis das treze ex-colônias inglesas, além de documentos menores. A Constituição dos Estados Unidos não existia ainda, quando da edição do volume. Os Artigos da Confederação cumpriam, em seu lugar, o papel de regular a frouxa união entre as ex-colônias. Referências aos "americanos ingleses" são numerosas na Devassa — mais de noventa, segundo Maxwell. A maioria é atribuída a Tiradentes. O mais simples entre os cabeças de um movimento que reunia a elite local, ele não lia francês. Conhecia bem o livro, no entanto, decerto pela tradução e pelos comentários dos companheiros, como indica um episódio relatado nos autos: em meio a uma discussão, em reforço a seus argumentos, sacou da Coletânea e pediu ao interlocutor que lhe traduzisse o artigo da Constituição da Pensilvânia que tratava da eleição dos integrantes de um certo órgão da administração. Lido o tal artigo, segundo a testemunha que relata o episódio, Tiradentes "folheou muito o mesmo livro".
Os inconfidentes possuíam dois exemplares da Coletânea. O que estava com Tiradentes foi o primeiro a cair em poder das autoridades, causando tal impacto que se abriu um inquérito à parte. O exemplar, contendo numerosas anotações a tinta — provavelmente dos conspiradores —, foi anexado ao processo e depois da Independência permaneceu "dentro de um saco verde", junto com outros documentos, nos arquivos do Império, no Rio de Janeiro, até que, em 1860, se decidiu doá-lo à biblioteca que então se constituía no Desterro, nome de Florianópolis à época: Em 1984, a pedido do então governador de Minas, Tancredo Neves, o governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, devolveu-o a Minas. Agora figura no acervo do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, ponto final do destino, comum a outros livros, de peça de acusação a relíquia histórica, de maldição à glória.
O que se sabe de Tiradentes é o que está na Devassa. Ele não teve quem se debruçasse sobre sua biografia, quando ainda era tempo de colher depoimentos de quem o conheceu e recolher documentos que lhe dissessem respeito. Seu rosto não é conhecido. É sempre temerário, e arrisca soar demagógico, buscar num outro período histórico ilustrações do presente, mas que bem faria, à história do Brasil, se dispuséssemos de uma biografia de Tiradentes. A possibilidade de travar a produção de biografias que vige no Brasil de hoje contribui para a mutilação da história.