domingo, julho 14, 2013

Dilma, a solitária - EUGÊNIO BUCCI

REVISTA ÉPOCA

A solidão do poder, tratando-se de Dilma Rousseff, é um presídio. Ou, pior, é uma cela incomunicável. A presidente da República já não consegue fazer contato com seus auxiliares, com os parlamentares, com os partidos, com as centrais sindicais, com as ruas - e, principalmente, com a nação. Disciplinada, ela insiste. Marca reuniões com um grupo restrito de ministros, consulta-se eventualmente com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, amiúde, segue as orientações dos profissionais de marketing a seu serviço. E nada dá certo. Como se fosse uma náufraga, perdida numa ilhota em alto-mar, a chefe do Estado brasileiro lança garrafas sobre as ondas, e suas mensagens não encontram o destinatário. Raramente, vão bater no destinatário errado. Sem respostas positivas, ela não vislumbra o que a espera. Sua solidão é sólida como a rocha e enigmática feito a esfinge.

Há um diagnóstico fácil para esse quadro clínico: a falta de comunicação que acometeu o Palácio do Planalto resulta do isolamento que se abateu sobre a presidente. Desesperados, então, seus assessores tentam até o fim, como na canção de Roberto Carlos. Num lance de aparente ousadia, tentam aproximá-la do povo que se manifesta nas ruas e, de novo, erram a mão. Bolam comunicados contundentes, inventam propostas salvadoras, lançam campanhas de televisão e, outra vez, nada funciona. O círculo da presidente não se deu conta de que o naufrágio a que ela ainda sobrevive não é fruto do isolamento, mas o contrário: o isolamento político teve início no naufrágio da comunicação. A ilha deserta em que Dilma se vê confinada não foi a causa da incomunicabilidade. Foi, isto sim, a consequência. Agora, aumentar a dose de comunicação errada não resolverá nada; a comunicação errada apenas piorará as coisas, como o mês de junho deixou claro.

Foi bem revelador o que aconteceu há duas semanas. Diante das passeatas que transformaram as ruas das cidades brasileiras em rios de gente indignada, a presidente da República resolveu falar em rede nacional de televisão. Numa das mais desajeitadas jogadas de marketing da história recente do país, deu respostas a perguntas que ninguém tinha feito. Chamou para si um amontoado de problemas que ninguém achava que fossem problemas dela. Conclamou "pactos" a que ninguém quis aderir. As reclamações dos protestos falavam das tragédias concretas da vida prática: transporte público aviltante, saúde pública miserável, educação deformante e gatunagem do dinheiro público. Dilma respondeu a todas com uma abstração complexa: a reforma política, acrescida de plebiscito e constituinte exclusiva. Esta última, o centro da fala presidencial, soçobrou nas 24 horas seguintes. O plebiscito morreu há poucos dias, na semana que passou. Quanto à reforma política - necessária, por certo, gravemente necessária, mas que não era reivindicação de nenhum dos protestos -, ficou a ver navios nas proximidades da ilha deserta. Não se sabe no que vai dar, já que tudo agora depende do Congresso Nacional.

No que era acessório, Dilma emplacou uma coisa ou outra, é verdade. Propôs chamar a corrupção de crime hediondo, e isso pegou. A história dos royalties do petróleo para a educação e saúde parece que também colou. De resto, os artifícios contábeis de bilhões para isso e aquilo foram percebidos como o que de fato eram: artifícios contábeis.

Se a presidente deu respostas descabidas a perguntas não formuladas pelas ruas, não foi por não saber falar. Foi, antes, por não saber ouvir. Para certas situações, acompanhar obstinadamente os índices de popularidade não basta. Para entender com rapidez os anseios e as aflições dos habitantes das cidades médias e grandes, não basta decifrar pesquisas de opinião. Para isso, os governantes precisam simplesmente saber conversar com gente que anda de ônibus, com médicos e pacientes da rede pública e até mesmo com deputados e senadores. É aí que entra esse componente insondável e insubstituível da administração pública: o talento político. O bom político se caracteriza por essa particular habilidade para a comunicação, que envolve o gosto pela conversa, a arte de motivar pessoas e a vocação para liderar. A comunicação do Palácio do Planalto errou a mão definitivamente quando desistiu de ser política, no sentido mais alto da palavra, e se contentou em ser técnica, matemática e meramente publicitária.

Daí vem a solidão da presidente, uma solidão que cobra caro. Dilma talvez não disponha da moeda para pagar seu próprio resgate.


Crise de sensatez - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 14/07

Não resta dúvida de que o universo, por suas dimensões, está para além da compreensão humana


É possível que o que vou dizer nesta crônica espante o leitor como espantou a mim, ao pensá-lo. É que nunca o pensara antes, nem supunha que tal pensamento me ocorresse um dia, a sério. Foi o seguinte: pensei que é melhor ser louco que sensato, como sou.

Refiro-me ao louco de fato, não estou usando de metáfora, como quando se diz "Fulano é loucão". Nada disso, falo do cara que ouve vozes e acredita que o porteiro do prédio sequestra meninas, mata-as, cozinha-as em grandes panelas que tem em sua casa e as come. Refiro-me ao sujeito que é pirado mesmo, necessitando de internações e remédios. Doido varrido.

Mas por que isso, por que achar que ser doido é melhor do que ser normal? Simplesmente porque o doido inventa a existência como lhe apraz, sem dar bola para o que nós outros chamamos de realidade.

Não é só isso, porém, ou melhor, isso não é o principal motivo de minha opção preferindo a loucura à normalidade. A razão mesmo é que a visão dita normal não explica a realidade, irredutível a ela.

Por exemplo, alguém é capaz de dizer por que existe o mundo em vez de nada? Ninguém sabe a resposta a essa pergunta. E outra: houve um tempo em que nada existia, antes de haver o universo? É impossível imaginar um tempo em que nada existia. Ou seja, a sensatez não explica a existência e muito menos a não existência.

Veja bem, essas perguntas são feitas por gente sensata, ou seja, quem as formula é quem pretende reduzir a existência do mundo a explicações objetivas e compreensíveis. Quem não quer entender, não faz perguntas. Isto é, só os sensatos as fazem; os loucos, não. Se fazem algumas perguntas, são outras, insensatas, e as respostas que encontram são mais loucas ainda.

Não consigo impedir que certas perguntas me perturbem. Por exemplo, o sistema solar mais próximo da Terra está a uma distância de 4,3 anos-luz, ou seja, a distância que a luz percorre à velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. Como nenhuma nave pode viajar à velocidade da luz, porque se desintegraria, viraria luz, jamais algum habitante da Terra poderá chegar àquele sistema solar. Mesmo que viajasse a 300 mil quilômetros por hora, levaria séculos para chegar lá. O que dizer dos sóis que estão a 1 milhão ou 2 milhões de anos-luz? Ou seja, o universo existe apenas para ser contemplado por nós, de longe.

Mas é o de menos. Pensa só nisto: o nosso sistema solar, com todos os planetas que o constituem, e os satélites e tudo o mais, equivale a 2% da massa total do Sol, que é uma estrela de quinta grandeza; quer dizer, não é das maiores.

Só na Via Láctea, há bilhões de outros sóis e, no universo, há bilhões de galáxias infinitamente maiores que a Via Láctea, com bilhões e bilhões de sóis. Dá para entender isso? Pode alguém achar que a mente humana é capaz de explicar um troço como esse, que excede toda e qualquer possibilidade de abranger e compreender? Não resta dúvida de que o universo, por suas incomensuráveis dimensões, está para além da compreensão humana. Concorda comigo ou não? Claro que concorda. Se não concorda, o doido é você.

Mas, tudo bem, esqueça as galáxias e me explica a existência desta pequenina aranha que surgiu presa ao filtro de parede na minha cozinha. Ela é minúscula e sua teia tão tênue que nem sequer consigo vê-la. Só sei que a teia existe porque a aranha não poderia estar suspensa no ar sem nada em que se apoiasse.

A aranha não é igual à barata nem ao rato, já que, além do mais, são maiores que ela, têm outra forma e não produzem teia, que, quase invisível, é uma armadilha mortal para os insetos. Foi a aranha quem bolou essa armadilha, quem a inventou? Se não foi ela, quem foi então? Não me diga que foi Deus, porque essa é a resposta que facilmente explica tudo.

A verdade é que não dá para entender, a existência não tem explicação, e o que não tem explicação é absurdo. Absurdo para quem, sensato como eu, quer entendê-la.

Já o louco não busca explicações sensatas. Inventa alguma tão absurda quanto o próprio universo. Enfim, a existência é a existência, não precisa de lógica. E é, por isso mesmo, maravilhosa.

Manuel e Cecília - ADRIANA CALCANHOTTO

O GLOBO - 14/07

Um belo dia, Ciça, editora da Casa da Palavra, me liga pra saber se por acaso não teria eu alguma ideia para um livro infantil. Respondi num impulso: “olha, pior que tenho”, e foi assim que começamos

Antes que o jornal de hoje enrole o peixe de amanhã, peço aos compadres licença para puxar a brasa para a minha sardinha, rapidinho. Lancei, na Flipinha, em Paraty, um livro chamado “Antologia ilustrada da poesia brasileira para crianças de qualquer idade”. Sentia tanto a falta de um livro assim que resolvi fazê-lo eu mesma. Sou um rato de livrarias, entro em todas, fuço tudo, em qualquer país em que possa, por mais incrível que me pareça às vezes, me encontrar. Posso passar horas dentro de uma onde as palavras não exibem uma única vogal, ainda que prefira as de língua portuguesa. Começo geralmente pela seção infantil, não sei por quê, e não estou aqui para julgar o nível do que andam chamando de “literatura infantil brasileira”, embora, deixa pra lá. Sempre senti falta, nas prateleiras, de uma coletânea de alta poesia para crianças de qualquer idade que reunisse nossos grandes poetas, em ordem cronológica, para que se possa desfrutar dos ecos e das influências atravessando gerações, e uns desenhos. Como pode não existir esse livro, gente?, perguntava a mim mesma, prateleiras afora.

Um belo dia, Ciça, editora da Casa da Palavra, me liga pra saber se por acaso não teria eu alguma ideia para um livro infantil. Respondi num impulso: “olha, pior que tenho”, e foi assim que começamos.

Os poetas em domínio público não deram trabalho algum, como todo mundo pode imaginar. Os contemporâneos, diferentemente do que se poderia esperar, não deram trabalho nenhum também. Foram solícitos, sugeriram poemas, deram ideias, desembaraçaram cláusulas de exclusividade de seus contratos para poder participar — uns fofos, todos. Lêdo Ivo e Décio Pignatari nos deixaram durante o processo de realização do livro, mas não tivemos quaisquer problemas para obter as autorizações referentes. Porém, a antologia não tem poemas de Manuel Bandeira e Cecília Meireles, e, antes que os compadres se apressem a “mas ela é burra, é ignorante, é as duas coisas ou consegue a proeza de não se deixar maravilhar pelos dois enormes poetas?”, lamento, mas informo que não é porque os poemas não tenham sido autorizados que eles não estão no livro. É porque nunca obtivemos resposta alguma, depois de insistentes, desesperadas tentativas, as meninas da editora, a editora, o departamento financeiro da editora, eu, a organizadora do livro e que enviei duas vezes o mesmo e-mail. Ninguém nos retornou. “Sim”, “não”, “vai depender da grana”, “me erra”, “temos um contrato que nos impede”, “passa aí amanhã, peixe”. Nada. Silêncio, vácuo, e agora? Os dois poetas são imprescindíveis, incontornáveis, não existe a menor possibilidade de eles não estarem em uma antologia como esta, viram duas covas sem a reverberação de seus ecos nas gerações posteriores. O que seria a poesia de Vinicius de Moraes ou a de Carlos Drummond, se não houvessem lido os dois? Os dois poetas preferidos de Mario Quintana? As crianças ficarão sem entender um bocado do que aconteceu.

É falta de educação ou amadorismo não responder aos e-mails, sabemos, mas o pior é o desserviço prestado às crianças. Manuel Bandeira organizou ele mesmo uma antologia de poetas, de modo que o argumento, caso houvesse um argumentador, de que o poeta poderia não gostar de estar em reunião desse tipo, já podemos descartar.

Liguei para a minha advogada:

— Doutora Luciana, quero ser presa.

Doutora Luciana, impávida:

— O que foi que você fez?

— Nada ainda — respondi. — Só quero me entregar ao delegado confessando que estou cometendo o crime hediondo de publicar Manuel Bandeira e Cecília Meireles para as crianças sem ter autorização. Ou melhor, sem ter resposta alguma. Quem sabe para ser interpretado como “quem cala consente”, pois no fim indenizações serão sempre muito mais polpudas do que a venda de livros, e de poesia ainda por cima. Posso ir já de algemas para adiantar o serviço, tenho umas aqui em casa, forradas de pelúcia de oncinha. Chamamos a imprensa e, como numa obra qualquer de Sophie Calle, registramos publicamente a minha rendição. Meus amigos, sei que me levarão maçãs e livros. E os inimigos, chocolate.

Doutora Luciana, minha advogada:

— Você não vai ser presa, Adriana, o livro é que provavelmente vai. O crime é de violação de propriedade intelectual, crime de direitos autorais, sua editora vai ter que pagar um caminhão de dinheiro, e só. Isso não dá cadeia assim, inventa outro crime pra cometer e me liga.

Mas como assim, não tenho o direito de querer ser presa por confessar um crime cometido? Que esculhambação, hein? Violo o direito autoral, me entrego ao delegado, algemada mas vestida de Gilda Midani, e vou ver o sol nascer quadrado numa cela comum, que não fiz faculdade, com capacidade para 30 detentas, abrigando na realidade bem mais de 200 colegas. Prefiro, a lançar uma antologia de poesia para crianças de qualquer idade sem Manuel e Cecília. É inadmissível que, por conta de imbróglios de adultos, crianças percam a oportunidade de desde muito cedo ter noção da importância das vozes dos dois poetas no contexto histórico e estético da poesia brasileira. Justo eles, que escreveram e publicaram livros inteiros para elas e com isso inspiraram mais poetas a escrever também. Me prendam, por favor, quero cometer o crime, de lesa pátria, doloso e duplamente qualificado (praticamente um triplo carpado), e já ir respondendo por meus atos, que sou do Rio Grande, e a vida é curta.

Os dois magníficos poetas têm perambulado por coletâneas atuais, sugerindo que quem os representa lê uma hora ou outra a correspondência, mas aí precisei embarcar na turnê do Prêmio da Música Brasileira e achei que não seria o melhor momento para me encafifar no xilindró. Não seria visto como muito profissional da minha parte, e assim, felizmente, o livro está nas prateleiras, com poetas extraordinários, fundamentais, obrigatórios, mas sem os dois grandes líricos.

Assim, antes que o jornal de hoje seja separado para o cocô dos cachorros amanhã, agradeço comovida aos compadres que chegaram até esta frase, de meu incontinente desabafo. Pobres crianças. Pobres Manuel e Cecília. Pensemos em coisas boas.

O apaixonado jamais adia encontro - FABRÍCIO CARPINEJAR

ZERO HORA - 14/07


Quem está apaixonado não desmarca encontro.

Cancela trabalho, família, viagem, mas não suspende compromisso.

Assume prejuízo, enfrenta chefia, suporta calado todos os dissabores, mas não abre mão. Não nega o que foi firmado.

Mesmo que tenha trocado o mês ou se confundido com a data, assume o erro como acerto e segue em frente. Troca de turno com colega, compra amigos, arruma atestado médico.

Quem está apaixonado jamais desmarca encontro. Nem altera horário. Não tem coragem de pedir para que seja mais cedo ou mais tarde. Não é capaz de reivindicar 10 minutos a mais ou a menos. Não mexe no assunto. Não adapta planos. Não negocia prazos.

Aceita a data como um desígnio. Uma audiência de Justiça. Uma convocação da Receita Federal. Se não for, tem a sensação de que será preso, condenado por esnobar o amor.

Não brinca com a autoridade do encontro. Receia que não aconteça de novo, não arrisca zombar do destino. Não oferece chance ao azar. Teme um imprevisto, penteia o calendário, apressa o relógio e o coração.

Vive o transe de ser feliz, a hipnose de não pensar em um segundo plano. Quem está apaixonado não arranja desculpa, inventa saídas.

Quem está apaixonado não se presta a solicitar fiado, paga à vista. Só aquele que realmente não sente saudade é que adia encontro. Se o café é sempre postergado é que falta vontade.

Adiar compromisso é sinal de desamor. Não precisa de mais nenhuma prova. Não há aquele interesse máximo, aquela tara, aquela dependência.

O sujeito pode ter uma justificativa nobre: imposição do emprego, doença, tragédia. Nenhum pretexto servirá para remendar a esperança.

Não se mexe em encontro entre apaixonados. Deixa para adoecer depois, deixa para morrer depois.

Se alguém liga para reagendar sacrificou a paixão. É aviso fúnebre, é velório da voz. Significa que não está realmente a fim. Demonstra que tem um interesse passageiro, efêmero, pouco sério.

O apaixonado enlouquece com a simples hipótese de não ver mais o outro. Não vai estragar a importância do enlace, diminuir a expectativa, mostrar desapego.

Eu fiquei imensamente eufórico ao lembrar que nunca desmarquei nada com minha mulher, Juliana.

Fui me gabar para ela: - Amor, jamais cancelamos nenhum encontro entre nós, não é legal? Juliana me analisou com desconfiança:

- Fabrício, a gente só teve um encontro e não mais nos desgrudamos.

Eu percebi que a tática para não sofrer com atrasos e remanejos é permanecer junto desde o primeiro beijo. E não se soltar mais.

Foi o que eu e Juliana fizemos. A paixão é um sequestro. O amor é quando pagamos o resgate.

O capitão Horácio - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

ESTADÃO - 14/07


Tive um caso com o capitão Horácio por anos. Até resolver me curar

— Esta é a minha esposa, Rute...

— Humm. Simpática. — Ela é uma mulher fantástica. Estamos casados há 25 anos.

— E estes são...— Os filhos. Gustavo e Leinha. Foi a Leinha que nos deu a única neta. Olha só, que amor...

— Que beleza!

— Maria Rita. Três anos. A queridinha do vovô.

— E este?

— Ah, este é o capitão Horácio.— Capitão Horácio?— O amor da minha vida.

— O quê?— Do tempo em que eu era homossexual. Tivemos um caso durante sete anos, até eu resolver me curar.

— Você era homossexual e se curou?— Sim. Foram sete anos intensos com o capitão Horácio, mas senti que aquilo não era pra mim.

— E como você se curou?— Não foi fácil. Procurei psicólogos, psicanalistas, grupos de apoio, orientação religiosa... Finalmente me sugeriram que experimentasse a homeopatia.

— Homeopatia?!— Chá de cipó amarelo. — E deu certo?— Tiro e queda.— Esse chá...

— Tomo todos os dias, depois do almoço. O cipó amarelo vem da Amazônia. Os índios tomam desde pequenos, para prevenir.

— Mas...você carrega uma foto do capitão Horácio na carteira...

— Foi um período importante na minha vida, que eu não quero esquecer.— E como foi a separação?

— Amigável. Ele era uma pessoa muito distinta. Espiritual. E atlético, maratonista. Ou era, quando nos conhecemos.

— Não foi um rompimento traumático, então?

— Não. Ele entendeu minha posição, nos despedimos... E nunca mais se viram?

— Nunca. Não sei que fim ele levou. Ou que cara tem hoje. Certamente não é mais a da foto.

— Quer dizer que existe cura para o homosexualismo? — Existe. As pessoas ficam fazendo pouco desse deputado Feliciano, mas existe. Chá de cipó amarelo da Amazônia. Dou a receita para quem quiser.

— E é tiro e queda?

— Tiro e queda.

Escapismo - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 14/07

Pedro Almodóvar, ao optar escancaradamente pela comédia nesse seu “Amantes passageiros”, disse que era natural querer rir das coisas, quando a Espanha está com problemas tão difíceis de resolver

Quando eu escrevia crítica de cinema em Salvador — e só andava com cinéfilos — a gente ouvia sempre que, durante a depressão dos anos 1930, Hollywood se voltou para as comédias: era um modo de fugir da realidade sombria. Pedro Almodóvar, ao optar escancaradamente pela comédia nesse seu “Amantes passageiros”, disse que era natural querer rir das coisas, quando a Espanha está com problemas tão difíceis de resolver (embora ele tenha enfatizado o aspecto alegórico da trama em que um punhado de gente não sabe onde vai parar). O filme foi mal recebido pela crítica, tanto aqui quanto na Espanha natal — e, quem sabe, em outras paragens —, mas eu fui assistir e gostei.

Não diria que tenho motivos para defendê-lo criticamente. Apenas gostei de como ele é filmado. As cores são fotografadas de modo incrivelmente elegante. O movimento de câmera que vai da visão do avião de meio-perfil (e em contre-plongé) até a espiral que gira no centro da turbina é muito bonito — e essa firmeza de composição, por incrível que pareça, se mantém por todo o filme. É verdade que a gente ri mais no que resulta engraçado em meio aos melodramas do diretor do que nesta comédia que finge gritar “eu sou uma comédia” desde as primeiras imagens. Digo que finge porque a estilização irrealista e as caracterizações caricatas são pensadas para dar esse grito, mas o gosto refinado com que elas são realizadas (um ultracolorido diferente do ultracolorido dos outros filmes de Almodóvar) o amortece. Não de todo — e seguramente não de modo desagradável. Ao contrário: os debruados das poltronas do avião e das roupas dos aeromoços compõem sempre visões relaxantes e doces ao olhar. Mas a unidade com que isso se mantém através do filme, invadindo ruas e casas de Madri, aonde a película desce através de telefonemas de passageiros que falam com amantes em terra (na parte que talvez seja a mais quente de um filme suavemente frio), não ajuda a produzir gargalhadas.

Estou em Curitiba, onde acabo de fazer show num teatro muito bom de acústica. Depois saí para jantar com os caras da banda. Na TV do restaurante (é muito comum hoje em dia restaurantes terem aparelhos de televisão nas salas) vi imagens de pneus sendo queimados em estradas, líderes do MTST e da Força Sindical dando entrevistas, reincidência de truculência da polícia carioca, nesta quinta-feira de greve geral. Os pensamentos que se esboçavam em minha mente diante dessas imagens me faziam lembrar da tese do escapismo do cinema diante de crises. Pensei em Almodóvar e no que senti diante do filme dele. Mas pensei no sucesso de “Minha mãe é uma peça”, filme muito mais engraçado do que o do meu amigo espanhol, que vem reafirmando a tendência do público brasileiro para fruir comédias. Terá tal tendência prefigurado uma crise que parecia não existir faz um mês? Que, na verdade, parecia impossível de eclodir? Nada no filme de Pedro me deixou triste. Não é um bom filme, mas, mais importante, não é um filme mau. É bondoso. Mas tudo me deixa alegre no filme de André Pellenz. As risadas espontâneas que ele provoca, o sucesso que faz, a surpresa que é ver Paulo Gustavo fazer uma mulher na telona e nunca o fato de ser um cara travestido se sobrepor à credibilidade das situações, mesmo as mais naturalistas. E Niterói! Que beleza ver Niterói tão poeticamente captada num filme! Fiquei emocionado e me lembrei de quando conheci Paulo Gustavo, por intermédio de Luana Piovani, atuando ao lado de Fábio Porchat. E, bem depois, de quando vi “Minha mãe é uma peça” ainda no teatro, aonde fui mais de uma vez com meu filho Tom, que era ainda bem pequenininho e adorava o espetáculo (hoje ele tem 16 anos: já foi ver o filme e me disse que gostou e achou engraçadaço). Tudo isso me enternece. Se é para escapar das preocupações que a pergunta sobre a entrada dos sindicatos e dos grupos sociais organizados na onda de protestos põe para os políticos, as novas cores de Almodóvar servem de calmante, mas as falas da mãe niteroiense (e de seus irresistíveis filhos, amigos, parentes, ex-marido e desafetos) nos arrancam da cadeira e nos sacodem (no sentido pernambucano da palavra) os grilos fora.

No caso Ecad, só digo que Fernando Brant, na reunião, sentou-se com conforto, ao lado da advogada que foi com ele, em posição central, com visão ampla de todos os que estavam na sala. Inverdade o que ele diz quanto a isso no texto que espalhou. Eu já disse isso a ele. Tendo agora a crer que a ida de minha turma a Brasília afina mais com o clamor das ruas do que contrasta com ele. Mas não quero tratar aqui de coisas complicadas. Só quero pensar em Paulo Gustavo, Niterói, Tom e o cinema que faz rir

Estepe - ANTONIO PRATA

FOLHA DE SP - 14/07

A ideia de manter um texto reserva foi do meu pai: 'Vai que a sua mulher te abandona e tudo o que sai são lágrimas?'


Esta não é a crônica que deveria estar aqui: é uma crônica estepe. Se você a está lendo, ludibriado leitor, é porque a outra furou, ou melhor, eu furei e, nesta semana, por razões que desconheço, deixei de entregar minhas maltraçadas ao jornal.

A ideia de manter um texto reserva, bem guardado no porta-malas da redação, foi do meu pai: "Vai que, justo no dia de mandar a coluna, acaba a luz? Vai que te surge uma pedra no rim? Vai que a sua mulher te abandona, você senta pra trabalhar e tudo o que sai são lágrimas e letras do Tim Maia? Deixa uma crônica prontinha com as redatoras, pra uma emergência. Vai por mim".

Eu fui, ou melhor, estou indo: hoje é dia 22 de agosto de 2011 e aqui me encontro, enchendo este estepe com o parco ar de minha inspiração, de modo que nenhum prego, buraco ou pedra no meio do caminho me impeça de, no futuro próximo ou distante, levá-los com segurança e conforto de uma margem a outra desta página.

Hoje de manhã, quando decidi me dedicar à empreitada, senti aquele pequeno orgulho cívico de quem acaba de marcar uma visita de rotina ao dentista ou manda lavar a caixa-d'água, mas aos poucos, enquanto escrevo, percebo a alegria da cautela se escondendo sob a nuvem preta do temor: só consigo pensar no que terá acontecido para que eu tenha deixado de enviar a crônica.

Lembro do dia, faz uns três anos (ou seis? Ou 49?), em que fiz um seguro de vida. Lembro do sorriso estúpido do gerente ao anunciar que, em caso de morte, o "prêmio" seria de R$ 200 mil. "Taí um prêmio que eu não quero ganhar", eu disse, ao que ele me respondeu, seriíssimo: "Não, não, no caso você não ganha nada, quem ganha é o beneficiário". Pensei em simular uma indignação, em exigir que a quantia fosse depositada nos bolsos do meu traje mortuário, tendo o gerente, pessoalmente, o cuidado de disfarçar a bufunfa com algumas flores do caixão, mas respirei fundo e só assinei ao lado do xizinho, um pouco incomodado por saber que eu valia mais morto do que vivo.

Céus, veja o poder daquela nuvem negra: comecei com uma queda de energia e, quatro parágrafos adiante, estou sete palmos abaixo da terra. Não é para tanto. Seria de muito mau gosto o jornal publicar este texto se eu tivesse batido as botas. Donde concluo, aliviado, que se você, póstero leitor, estiver lendo agora a palavra "carambola", seja em 2012, 2021 ou 2043, é porque não morri. Talvez esteja no escuro, talvez tenha uma pedra no rim, quem sabe minha mulher me abandonou e eu me encontre na rua da amargura, bebendo Cynar com Fanta Uva e cantando "Me Dê Motivos", mas estou vivo.

Estou vivo e preso ao dia 22 de agosto de 2011. Vocês estão vivos e deslizando rumo ao futuro, como pinguins sobre placas de gelo. Ó aí, lá vou eu querendo ser trágico de novo. Deixa disso, Antonio: se o futuro é insondável, seja ao menos um pouco otimista. Ok, serei: quem sabe este texto está sendo publicado porque anteontem ganhei o Oscar de melhor roteiro e, numa ressaca de Dom Pérignon, fui incapaz de escrever uma linha? É isso. Semana que vem eu conto como foi a festa e como resisti às insistentes cantadas de Scarlett Johansson, que, mesmo sessentona e um pouco acima do peso, ainda bate um bolão. Até.

Reformas, metamorfose e o rato - SUELY CALDAS

O Estado de S.Paulo - 14/07

Na transição do governo FHC para o de Lula houve um raro consenso entre os dois ex-presidentes: a necessidade de completar as reformas estruturais para modernizar o País, afastar entraves ao progresso, dar eficácia e celeridade ao funcionamento do Estado e da economia privada, fomentar investimentos e alargar caminhos na direção do desejado crescimento sustentado, longo e contínuo. FHC teve o mérito de dar a partida, mas suas reformas foram meia-sola, tímidas e incompletas. Lula começou com gás, disposto a levá-las em frente. Num primeiro momento, a trabalhista e a previdenciária; depois viriam a tributária e a mãe de todas - a reforma política. A previdenciária avançou quase nada, a trabalhista marchou de ré, a tributária não saiu do lugar e a política ele nem tocou. Dilma simplesmente descartou todas. As reformas foram murchando até desaparecerem da cena, esquecidas e abandonadas. Mas os problemas que a falta delas gera continuaram vivos, fazendo estragos, travando o progresso econômico.

Elas foram lembradas na semana passada, quando dois organismos internacionais - o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgaram mais uma das sucessivas previsões de queda para o PIB do Brasil e identificaram nas reformas a saída indispensável e mais rápida para dar vida longa ao crescimento econômico. A ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, logo reagiu: "Dispensamos sugestões e receituários do FMI", afirmou, recorrendo ao velho método do PT de desqualificar o interlocutor quando quer se livrar do assunto. É certo que o FMI também precisa ser reformado e atualizado, mas a necessidade das reformas no Brasil é tão óbvia que sua negação desqualifica o funcionário que a propõe. Se o próximo presidente não levar adiante as reformas no primeiro dia do mandato, o PIB brasileiro vai continuar navegando na mediocridade.

Prioridade invertida. O governo Dilma parece uma metamorfose ambulante. Em várias entrevistas, no início do ano, o secretário do Tesouro, Arno Augustin, defendeu a redução da meta fiscal: o governo precisava de mais dinheiro para suas necessidades de gastos. Em menos de seis meses mudou radicalmente o discurso: a meta fiscal precisa ser cumprida porque a prioridade é controlar a inflação. Ainda no governo Lula, Dilma criou o critério de que vence quem oferecer a tarifa mais baixa nos leilões de serviços públicos, condenou sem dó nem piedade e eliminou o critério de arrecadação de dinheiro para o Tesouro, dos leilões de FHC. Pois bem, o bônus de assinatura mínimo para o Campo de Libra, na região do pré-sal, será de R$ 15 bilhões, acima do que defendia a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e R$ 5 bilhões a mais do que previa o mercado. Objetivo: arrecadar dinheiro para cumprir a meta fiscal do ano. Por trás da metamorfose está a tentativa de recuperar prestígio e credibilidade perdidos em meio a truques e enganações na contabilidade das contas públicas, em que ninguém mais acredita. Na leva, impõe novo castigo à Petrobrás, que terá de desembolsar mais R$ 4,5 bilhões de seu desfalcado caixa este ano.

A montanha e o rato. Diante da intensa propaganda que antecedeu o anúncio de greve geral e multidões nas ruas, das manifestações organizadas pelas centrais sindicais restou a sensação de que a montanha pariu um rato. A greve foi raquítica e as multidões sumiram. Com dinheiro para gastar em publicidade e carros de som para gritar, as centrais conseguiram reunir 10 mil pessoas no Rio de Janeiro, menos de 4% das 300 mil que a garotada levou para as ruas em junho. Ficou claro que, nas comemorações do 1.º de Maio, o que atrai os trabalhadores são o palco e o show de artistas e cantores. Sem eles, o poder de mobilização dos sindicatos é nulo. Que ao menos reflitam: que diabos está acontecendo?

Fim do "foro privilegiado" favorece a corrupção - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 14/07

É sempre necessária estreita atenção no encaminhamento dos incontáveis projetos de lei em tramitação pelo Congresso. Como há muitos lobbies em trânsito, mudanças em textos podem tornar imprestável um projeto ou até mesmo produzir efeitos não imaginados pelo próprio autor da lei. Em tempos normais, este cuidado já é imperioso; agora, em que Câmara e Senado seguem uma "agenda positiva", supostamente para ouvir as "vozes das ruas", numa maratona de aprovação de projetos, a atenção precisa ser redobrada.

A pressa para se acabar o "foro privilegiado" na Justiça para políticos em cargos eletivos e autoridades em geral é um desses casos que necessitam de extrema cautela, pois o resultado pode ser outro: garantir a impunidade de corruptos poderosos. A proposta favorável ao julgamento de políticos e autoridades pelos trâmites normais, a partir da primeira instância, é moralizadora apenas na aparência. Ela se fundamenta na lerdeza com que o Supremo costuma - ou costumava - tratar esses processos. Este, porém, é um problema menor diante do que pode acontecer se a emenda do fim do foro privilegiado tramitar no Congresso sem maiores debates e esclarecimentos.

Não se deve esquecer que uma das manobras da defesa dos mensaleiros foi tentar desmembrar o processo, para transferir os réus sem foro privilegiado à primeira instância judicial. Na prática, seria decretada a absolvição de todos pela simples prescrição das penas, devido à conhecida lerdeza do Judiciário e ao emaranhado de leis e ritos, sempre bem aproveitado por competentes advogados, mestres em usar o passar do tempo para manter impune a clientela de colarinho branco.

A ONG Transparência Brasil alerta, inclusive, que, aprovada esta emenda sem o julgamento dos embargos do mensalão, o processo cairá para a primeira instância. Assim como os do deputado Paulo Maluf e todos os demais que tramitam nas altas Cortes, em obediência à regra do foro especial.

Vale recordar, como prova de que a ausência de foro dito privilegiado favorece o crime, que, pouco antes de ser julgado no STF pela tentativa de homicídio contra Tarcísio Burity, seu antecessor no governo da Paraíba, o deputado tucano paraibano Ronaldo Cunha Lima renunciou e fez o processo começar do zero. Livrou-se ali de qualquer condenação. Outro aspecto da norma é proteger atuais e ex-autoridades de perseguições políticas por meio da Justiça, engendradas no próprio Judiciário ou no Ministério Público. Como exemplo é sempre citado o caso da campanha de procuradores ligados ao PT contra o presidente Fernando Henrique e seu governo.

Se a intenção é acabar com a impunidade de poderosos em geral, e não só deles, faz-se melhor aperfeiçoando os ritos de tramitação de processos na Justiça como um todo e, no caso específico, cobrando, como faz o CNJ, o cumprimento da Meta 18, a de julgamento de casos de improbidade administrativa em todos os tribunais.

Uma fábula do protesto de junho - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 14/07

'Povo das ruas' vai se olhar no espelho quando invadir o Castelo do Tudo-Que-Está-Aí

A QUEIXA VELHA sobre impostos excessivos em troca de serviços públicos ruins tornou-se uma fórmula chocha que tentou traduzir a "voz das ruas". Fez par com a "crise de representação" ou "os políticos não me representam".

Somados, os dois lemas sugerem que no fim desse arco-íris com sete tons de cinza ("tudo que está aí", "políticos") há um pote de ouro a ser aberto e dividido para o bem geral.

No que vai dar um protesto que marcha para abrir as cadeias da Bastilha (o "governo") e descobre que há lá só uma dúzia de presos, em vez de milhares de vítimas dos "políticos" da corte de Versalhes?

Talvez os impostos não sejam tantos assim. Ou melhor: os impostos não são recolhidos com o fim de prover "serviços públicos de qualidade".

Os impostos federais pagam aposentados, salários e aposentadorias dos servidores, juros da dívida, benefícios sociais para miseráveis e coisas como seguro-desemprego. E o dinheiro acabou. O resto, para bancar "educação, saúde e transporte de qualidade", é muito pouco e já é deficit, financiado com dívida.

Tal sistema é feito de camadas arqueológicas do conflito social, aberto ou camuflado. Servidores, que inventaram o Estado e o jeito brasileiros de desenvolvimento (1930-1985), se criaram benefícios nem tão privilegiados assim, mas muito superiores ao do padrão médio de vida (tal Estado também bancou a criação da grande empresa nacional e beneficiários dela, a velha classe média).

Parte do INSS, benefícios para miseráveis e outras melhorias advindas, aos poucos, com a Carta de 1988 foram um remendão que mantém um mínimo de estabilidade sociopolítica num país pobre que tenta ser democrático em um regime de extrema desigualdade e violência. Sem isso, viveríamos em tumulto constante ou coisa pior.

Os juros da dívida remuneram a poupança das famílias muito ricas, ricas e remediadas ("fundos" de banco, por exemplo. No grosso, quem tem alguma poupança recebe juros da dívida).

De onde vem a dívida? Ficou enorme no esforço de estabilizar a economia (acabar com a hiperinflação, anos 1990) sem causar ruptura política ou social maior. Continuou a crescer com deficit para manter o sistema funcionando.

A inflação foi um meio de acumular capital para o Brasil desenvolvimentista, de concentração de renda, de bens para a "nova classe média" dos anos 1960-70 (outro meio de acumular capital, também tirado dos pobres, foi a repressão pura, pau nos trabalhadores peões).

Na fábula dos protestos de junho, o povo das ruas invade a Bastilha ou Versalhes e, sim, descobre que "políticos" e seus clientes (empresas e ricos) levam algum extra.

Mas, lá no fundo do castelo, o povo das ruas vai descobrir que, no grosso, paga para si mesmo, para seus avós aposentados, para acalmar miseráveis, para o subsídio da sua casa ou bens de consumo. Vai descobrir que, enfim, recebe de volta quase tudo que paga, de modo distorcido e desigual, decerto; quem recebe menos é o povo dos cafundós de cidades e sertões.

O povo das ruas vai descobrir que o pote de ouro é pequeno; que redividi-lo vai exigir conversa ou conflito. Talvez descubra que boa parte do ouro não está no castelo estatal.

No fundo desse castelo do "tudo que está aí", enfim, tem um espelho.

O preço dos erros - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 14/07

Como foi mesmo que o Brasil chegou nesta situação? A inflação está alta; o crescimento, baixo; os empresários estão suspendendo emissões e captações; os juros, subindo; a expectativa, piorando; o real, perdendo valor. Na economia, há um preço a pagar pelos erros, e o governo errou demais. Não é o fim do mundo, não há uma crise iminente, mas as escolhas equivocadas não ficaram impunes.

Há incertezas no mundo, mas o pior passou e não é a crise externa que explica o quadro que os economistas já começam a definir como de estagflação, essa palavra feia e pesada que na vida real é o que estamos vendo: o país cresce pouco, e a inflação permanece alta. Os Estados Unidos discutem o ritmo da recuperação econômica já em curso, e a projeção para a Europa é de crescer, ainda que pouco, no ano que vem.

As agências de risco colocaram o Brasil em perspectiva negativa, o que significa um risco de, no médio prazo, o país ser rebaixado. A balança comercial deteriorou-se rapidamente e teve déficit na primeira metade do ano. O saldo comercial será positivo, mas pequeno. O déficit em transações correntes se aprofundou.

O governo reagiu à crise de 2008 plantando os problemas que o país está colhendo agora. A crise chegou aqui como uma onda forte, derrubando o crescimento e ameaçando inúmeras empresas com operações de derivativos cambiais. O primeiro movimento foi para salvar essas empresas, induzindo fusões das maiores que atuavam no mesmo setor. O Banco Central aumentou muito a oferta de liquidez para evitar que aquele evento se transformasse numa crise de crédito. Bancos foram resgatados através do Fundo Garantidor de Crédito em operações muito controversas. Tudo foi justificado como a forma de contornar os efeitos aqui da eclosão da pior crise da história recente.

Mas a reação seguinte foi pior. Era natural que o governo incentivasse a economia, que entrou em recessão em 2009. Mas o problema foi a escolha e a permanência dos instrumentos de estímulo que foram equivocados e continuam em uso.

O governo adotou uma coleção interminável de pacotes setoriais que ampliaram os gastos e criaram subsídios para estimular o consumo. Uma das formas de injetar incentivos à economia foi através dos bancos públicos. Foi recriado o pior do chamado "desenvolvimentismo" e da expansão monetária através da relação incestuosa entre bancos públicos e Tesouro. Tudo isso esteve em voga no governo militar e produziu a crise que a democracia debelou.

A partir de 2008, aumentou-se a estatização da economia, retomou-se o deletério processo de escolha de campeãs nacionais, foi reinstalado o balcão de favores para distribuir desonerações aos setores escolhidos. A inflação passou a ser escamoteada por truques e subsídios como o que zerou a Cide e manteve o preço da gasolina congelado por vários anos. A indústria automobilística foi a grande beneficiária dos incentivos fiscais. O uso de estatais para controlar a inflação está descapitalizando as empresas, principalmente a Petrobras. Isso apequena os investimentos e pode afugentar o investidor privado das concessões.

Num primeiro momento, o estímulo ao consumo funcionou, produzindo a bolha de crescimento de 2010 que elegeu a presidente Dilma Rousseff. Desde então, a inflação mudou de patamar, ficando mais perto do teto da meta. Os pacotes foram perdendo a capacidade de gerar crescimento. Os ciclos de recuperação ficaram mais fracos e mais curtos.

Para esconder o estrago, feito nas bases da política fiscal, o governo escolheu o pior caminho: usar truques contábeis para adulterar os indicadores das contas públicas. Todos juntos produziram o seguinte estrago: ninguém mais acredita em alguns dos números fiscais brasileiros, como superávit primário e dívida pública líquida.

Intervenções excessivas na regulação e a ocupação política das agências reguladoras aumentaram a insegurança jurídica, dificultando os investimentos. O crescimento baseado apenas no consumo alimentou a inflação e endividou as famílias. Não será impossível corrigir essas distorções, mas exigirá do país um esforço que deveria estar sendo dedicado a superar outros obstáculos. Os erros que estão cobrando seu preço são erros velhos. A história ensina que deveriam ter sido evitados.

Criatividade Iltda. - HUMBERTO WERNECK

O Estado de S.Paulo - 14/07

Até agora não apareceu alguém interessado em levar (de graça, repito) o direito de usar a marca - Queijos & Quejandos - que inventei para uma improvável loja de laticínios. Em compensação, a crônica da semana passada, portadora do generoso oferecimento, suscitou uma penca de contribuições para minha lista de pessoas jurídicas com nomes bizarros, numa comprovação de que não sou o único a gastar o tempo com bobagens divertidas. Entre muita gente mais, tenho a companhia do Marcus, que de Belo Horizonte faz saber: existe lá uma loja que se chama Bin Laden Bombas Hidráulicas. Foi também na capital mineira que o escritor catarinense Victor da Rosa topou com a academia de musculação Bonsuor.

Começo a desconfiar, aliás, que em matéria de esquisitices onomásticas Minas Gerais é imbatível. Mencionei aqui uma Desentupidora Rola Bosta em Belo Horizonte - e eis que veio a Tania acrescentar detalhes: com a bandeira do saneamento básico e o nome eleitoral Tomaz Rola Bosta, o desentupidor em questão tentou abrir caminho na política, candidatando-se a vereador e deputado estadual. Não rolou.

Já a Beatriz mandou foto de uma funerária de Belo Vale, MG, que, a julgar pelo nome - Porta do Céu -, não enterra quem tenha morrido em pecado. Aos demais, promete cobrir "qualquer preço com 50% menos". Da também mineira Nova Lima, o Luís Augusto dá notícia de uma Alfaiataria Aguia de Ouro. Não, não faltou acento agudo: é "aguia" mesmo, teria dito o dono, virtuoso das agulhas.

Mas voltemos à Tania, colecionadora de bizarrias outras que as mineiras. Em Cochabamba, na Bolívia, ela fotografou o açougue especializado em aves El Pollo Pintudo. Mas pode parar com essa malícia aí: seria apenas "O frango boa-pinta". Nesse departamento, o Douglas informou que a Casa de Carnes Jocasta, citada na crônica anterior, ficava perto do prédio onde o famigerado Chico Picadinho, dado a retalhar mulheres, fatiou uma de suas primeiras vítimas. "Picadinho e açougue", arrematou o Douglas, "tudo a ver!". Quanto ao Mario Viana, descobriu no Centro de São Paulo o que pode ser "o primeiro açougue de reencarnações": a Casa de Carnes Eu Voltei.

Também foi fartamente lembrada a carne humana andante e rebolante, sobretudo quando aconchegada num motel. A referência que fiz a tais playgrounds sexuais levou leitores a informar que por todo o Brasil pululam motéis Cê que Sabe. Menos, suponho, no Rio Grande do Sul, onde o linguajar gaúcho mandaria escrever na fachada: Tu que Sabe. Alguém sugeriu que na saída dos estabelecimentos assim denominados se coloque uma placa, para o caso de as coisas não terem corrido a contento: "Cê que Quis..."

A Mirella contou que em Fortaleza há dois motéis, um em frente ao outro, cujos nomes parecem dialogar: "Vamos?" "Cê que Sabe". De Guarulhos me fizeram saber de um que, mesmo se chamando Virtual, acolhe o sexo presencial, inclusive em banda larga, para cujos trâmites se pode acessar as suítes Office, Virtua e Windows.

Mais de um gaiato (eis o que não falta) informou sobre motéis com nomes tão inusuais que o cronista houve por bem checar, para concluir que não passam de invencionices. Ainda assim, merecem registro, com os respectivos lemas, o Leilão ("Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três..."), o Maria Antonieta ("Aqui também você perde a cabeça") e o Sushi ("Onde o apressado come cru").

No que tange a outros prazeres do corpo, o globe-trotter Ralf contou que em Bilbao, no País Basco espanhol, há um refinado e concorrido Café Restaurante Bosta. Acionado em Madri, o repórter brasileiro Felipe Pamplona esclareceu: em idioma basco, a palavra quer dizer "o cinco". Faz sentido: a casa, que não só ao Ralf cheira bem, fica no nº 5 da Alameda Rekalde.

Em São Paulo, o Melchíades acrescentou a Au Au Miau Etc. e Tal à lista das pet shops arroladas pelo cronista, enquanto o Álvaro desencavava uma Demolidora Tremor e uma Edison Celulares. De Curitiba, o Luís Henrique contou que na mocidade, não tão distante assim, ia agarrar moças no drive in H'rros. Para não encompridar ainda mais o rol dos nomes pitorescos, fechemos com o leitor Osvaldo, que me revelou a existência, em São Paulo, do Aqui Jazz - salão de cabeleireiro que tem como vizinhos dois cemitérios, o de Vila Mariana e o Israelita. "Mais bizarro, impossível", diz o Osvaldo.

Tem certeza, Osvaldo?

Estilo Galo Doido - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 14/07

A dúvida é se, no Mineirão, o Atlético-MG vai jogar no estilo Galo Doido ou no estilo normal


A emocionante classificação do Atlético-MG para a final da Taça Libertadores continua muito comemorada. Os desmaios e infartos nas arquibancadas, os pedidos de estátua para o ótimo goleiro Victor, o tratamento de heróis dado aos jogadores e a imagem de Cuca, de joelhos, antes de desabar no chão, soaram como se já fosse a conquista do título.

Entre tantos motivos para o Atlético-MG chegar à final, o maior é o estilo Galo Doido, nome dado por alguém e incorporado pela torcida.

Meses atrás, quando era grande o pessimismo com a seleção, já com Felipão, escrevi, com mistura de ironia e de crença, que a única solução para um time inferior ganhar a Copa seria criar um forte laço afetivo com a torcida e tentar jogar em um estilo mais passional, sul-americano, sufocando o adversário, como faz o Atlético, no Independência.

Foi o que ocorreu na Copa das Confederações e que poderá ser repetido no Mundial. A seleção brasileira, no estilo Galo Doido, mistura de correria, raça e de técnica, com blitz desde o início do jogo, assustou e inibiu os adversários.

A diferença é que o Atlético-MG usa mais o jogo aéreo.

O problema dessa estratégia é que só funciona bem em momentos especiais e em casa. Não é um projeto sustentável para o futuro nem dura por muito tempo. E não dá para ser herói todos os dias. O Atlético é exceção, já que, no Independência não perde há mais de ano, desde a reinauguração. São 38 jogos.

A base científica do estilo Galo Doido é pressionar quem está com a bola em todo o campo. Começou com a Holanda, em 1974, foi abandonada como rotina, a não ser em algumas equipes, como o Milan, na década de 1980, dirigido por Arrigo Sacchi, e nos melhores momentos do Barcelona, com Guardiola.

Nos últimos dez anos, muitos times europeus tentam jogar assim, pelo menos parte do jogo. Só recentemente, começou a ser feito no Brasil, mas sem a loucura do Galo.

Os volantes brucutus, pesados e que atuavam muito atrás, protegendo os zagueiros, estão sendo substituídos pelos volantes mais leves e rápidos, que correm atrás, até tomar a bola, como Josué e Pierre.

Fora do Independência, o Galo é outro time, joga outro futebol, mais contido, normal. As pessoas excessivamente normais tornam-se também problemas e são chamadas, pela psicologia, de normopatas.

Muitos times também são assim, não passam dos limites, nunca transgridem. A dúvida é se, na final, no Mineirão, o Atlético-MG, mesmo com uma torcida maior, vai atuar no estilo Galo Doido ou no estilo normal, tradicional.

Existe uma música e/ou um saber popular de que todas as pessoas têm um direito a um momento de loucura na vida. Os times também.

O Galo experimentou e gostou tanto, que assumiu a loucura, mas só no Horto.

"Caiu lá, tá morto."

Sobre visitas de extraterrestres - MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 14/07

Será razoável supor que tenham feito o esforço para chegar até aqui e se esconder como luzes nos céus?


Estou passando a semana na Amazônia como parte das celebrações de dez anos da Fapeam (Fundação de Amparo à Pesquisa da Amazônia) e a convite da Secretaria do Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Fora o deslumbre da grande diversidade da fauna e flora local, a visita ao encontro das águas do rio Negro e do rio Solimões e um certo choque em ver a enorme industrialização junto aos rios, um assunto que parece ser de grande interesse local é a possibilidade de que misteriosas luzes nos céus sejam espaçonaves de origem extraterrestre.

Vamos investigar a possibilidade de que seres extraterrestres tenham algum interesse pelos céus da Amazônia ou mesmo pela Terra em geral. Antes, um pouco de astronomia.

O grande desafio de viagens interestelares são as distâncias gigantescas. O Sol está a aproximadamente oito minutos-luz da Terra. Ou seja, a luz, viajando a 300.000 km/segundo, demora oito minutos para cobrir os 150 milhões de quilômetros até aqui.

Digamos que queremos visitar o sistema estelar mais próximo da gente, na constelação do Centauro. São quatro anos-luz. Viajando na espaçonave mais veloz que temos, a 50.000 km/h, demoraríamos cerca de 100 mil anos para chegar lá!

Obviamente, se alguma inteligência extraterrestre existe, se desenvolveu tecnologia que não temos a menor ideia do que seja, capaz de viagens próximas da velocidade da luz, e se tem interesse em nos visitar, a viagem demoraria muito tempo. Talvez mandem arcas que viajam por muitas gerações pelo espaço, com vidas inteiras passadas dentro delas. Onde estão?

Será razoável supor que tenham feito esse esforço todo para chegar aqui e se esconder, meras luzes misteriosas nos céus? Em 1950, o físico Enrico Fermi fez um cálculo simples, mostrando que, se inteligências capazes de viagens interestelares existem na nossa galáxia, teriam já tido tempo de sobra para colonizá-la. "Onde estão eles?", perguntou-se.

Esse é o Paradoxo de Fermi: nossa galáxia tem 10 bilhões de anos e 100.000 anos-luz de extensão. Vamos supor que uma inteligência surgiu em algum canto um milhão de anos antes da gente, o que é bem razoável, considerando que a galáxia tem 200 bilhões de estrelas e possivelmente trilhões de planetas e luas.

Esses seres do planeta Yczykx têm espaçonaves que viajam a velocidades de 10% da velocidade da luz. Ou seja, em um milhão de anos, poderiam ter viajado de ponta a ponta da galáxia, incluindo várias passagens pela Terra. Se tivessem surgido não um, mas 10 milhões de anos atrás, poderiam ter colonizado a galáxia inteira. E certamente não nos contataram de forma direta e clara.

Portanto, ou vieram, não gostaram e foram embora, ou estão aqui, mas têm uma tecnologia de invisibilidade que elude nossos sistemas de detecção, ou nos criaram como um experimento genético que seguem de longe, como num zoológico, ou, o que é mais provável, nunca vieram aqui ou vieram e não deixaram nenhum sinal.

Das várias explicações para luzes estranhas nos céus, as mais plausíveis --fenômenos atmosféricos, balões de pesquisa etc.--, mesmo que menos dramáticas, são muito mais realistas.

Dilma e o 'nosso projeto' - JOÃO BOSCO RABELLO

O Estado de S.Paulo - 14/07

Há indicações de que a presidente Dilma Rousseff, fiel ao seu estilo de não dar o braço a torcer, prepara a reforma ministerial em prazo que a desvincule de conselhos recebidos nessa direção.

Não seria assim "coisa nossa", como desejam seus principais aliados, PMDB e PT, mas uma decisão pessoal que preserve a autoridade política da presidente, desidratada pela vertiginosa queda nos seus índices de aprovação.

Como na máxima forjada pela política mineira, nem tão rápido que pareça fuga e nem tão devagar que comprometa a estabilidade do mandato. Certamente aguarda as definições de ministros candidatos a governos estaduais, que deverão ocorrer até setembro, para dissociá-la da crise, e não admiti-la como resultado d a má gestão do governo.

O tempo, nesse caso, conspira menos contra o êxito da mudança ministerial do que as dúvidas que permanecem quanto à requalificação que possa gerar. Tal efeito não se obtém apenas com a troca de nomes, mas com a revisão do modelo personalista que responde, em grande parte, pelo insucesso da gestão.

Em que pese se tratar de um dos piores ministérios dos últimos tempos, a insuficiência da atual equipe é agravada pela falta da mínima autonomia indispensável a qualquer gestor. Um ministério submisso não será, em qualquer tempo, eficiente, e apenas sugere a intolerância à controvérsia interna indispensável ao êxito de um projeto de governo.

Mas, a começar pela dificuldade de se enxergar no governo algum projeto (dele tudo que se sabe é o pronome possessivo "nosso", com o qual o PT o distingue), não se encontra entre seus próprios aliados algum que acredite na possibilidade de a presidente abrir mão do controle obsessivo por tudo o que se passa nos gabinetes ministeriais e de impor seu ponto de vista sobre cada minúcia.

E nem de flexibilizar suas convicções, principalmente as relativas à economia, que a fazem refém de equívocos como o de considerar que a submissão às leis de mercado se traduz em capitulação ideológica e pessoal. E é na economia que reside o principal problema do governo, como indica a anterioridade da inflação como causa da queda nos índices de aprovação.

Perfis à altura do desafio de reacreditar o governo não se disporão a emprestar sua credibilidade e qualidade sem autonomia e, provavelmente, não se orientariam pelo projeto de reeleição que estimula ações populistas.

Antes de consolidar sua candidatura para 2014, a presidente tem que salvar o atual mandato, cujo êxito mínimo é que a credenciará ao próximo. O que impõe priorizar o primeiro e abdicar do segundo - o "nosso projeto" -, como bússola para as decisões do presente.

O Snowden bolivariano - MAC MARGOLIS

O Estado de S.Paulo - 14/07

No modesto quarto no primeiro andar de um prédio comercial, o asilado político ajeita-se como pode. Há 14 meses, seu mundo restringe-se a um cômodo de 20 metros quadrados na embaixada de uma nação amiga, mobiliado com uma cama, escrivaninha e frigobar. O banheiro é compartilhado. Tomar sol, apenas pela fresta da janela. Como todo refugiado, resta-lhe a escolha ingrata: entregar-se às autoridades ou aguentar firme até que consiga passagem para outra pátria.

Não é Julian Assange, o fundador do WikiLeaks, que para evitar sua extradição para Suécia se pôs à mercê da Embaixada de Equador em Londres. Tampouco me refiro a Edward Snowden, o bisbilhoteiro americano que derramou segredos da espionagem de Washington e acabou confinado no aeroporto de Moscou.

O relato acima é de Roger Pinto, o Snowden bolivariano. Quem? Perguntaria o leitor. Esquecido nas manchetes e nos malabarismos diplomáticos dos dois refugiados mais célebres do planeta está o drama do boliviano que, desde maio de 2012, está preso na Embaixada do Brasil, em La Paz. Guardadas as proporções, seu caso é emblemático para América Latina, ainda sob o luar do finado caudilho Hugo Chávez, e um problemão para a diplomacia regional.

Senador pelo Departamento de Pando, leste da Bolívia, Roger Pinto é conservador, rico, politicamente articulado e um crítico implacável do governo do presidente Evo Morales. Oposicionista do bloco Convergência Nacional, já integrou um movimento pela independência administrativa e fiscal de um naco tropical do país. A proposta não vingou, mas conseguiu provocar urticária no governo de Evo.

Para piorar, Roger também acusou um integrante do governo de envolvimento com o narcotráfico internacional. Em seguida, ele se tornou alvo de uma chuva de processos, acusado de delitos dos mais diversos, desde corrupção a doações irregulares para uma universidade.

Entre petições e impropérios - e muitas ameaças de morte -, o senador optou pela retirada e bateu à porta da embaixada brasileira. Disse que era um perseguido político e pediu asilo. Brasília, corretamente, o concedeu e ficou por isso mesmo.

Pela Constituição boliviana, todo cidadão tem o direito de pleitear o asilo. No entanto, nos meandros da Carta redigida a dedo pelo partido governante, não há regras nem normas claras para conceder o salvo-conduto. Sem ele, a concessão de asilo cai no vazio. Eis o labirinto de Roger, um asilado entre quatro paredes.

Evo rebate a crítica com um argumento familiar. O senador não seria nenhum prisioneiro político, mas um criminoso comum. Logo, só cabe ao réu render-se à justiça. O argumento soa razoável, não fosse o magistrado boliviano togado pela mesma cartilha bolivariana.

Segundo a Fundação Nueva Democracia, que defende os direitos humanos na Bolívia, a Justiça virou joguete na mão do governo. Apenas nos últimos quatro meses de 2012, o grupo contabilizou 11 casos de suspensão ou de destituição de autoridades democraticamente eleitas, 21 casos de perseguição judicial por motivações políticas e 5 casos de suspensão de autoridades judiciais por causas políticas.

Segunda a Nueva Democracia, são "flagrantes violações de direitos humanos" atribuídas à atuação dos órgãos de segurança, ao Ministério Público e às autoridades da Justiça. Nas palavras de Jorge Quiroga, ex-presidente boliviano, "não se pode oferecer a um americano detido em Moscou o que não se cumpre com um boliviano em La Paz".

Aí está o fio condutor que une Roger Pinto a Edward Snowden e Julian Assange. Heróis ou bandidos, escolha você. Certamente, todos devem explicações pelos seus atos perante a Justiça. Mas que Justiça?

Entre bandidos e mocinhos - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 14/07

Bons tempos aqueles em que essas práticas eram consideradas desonrosas. Tempos soterrados com os escombros do WTC



Promessas de campanha eleitoral tem a confiabilidade das grandes realizações do camarada Kim Jong-un. Ainda assim elas geram expectativas, motivam e podem resultar em votos. Tem vezes que até mesmo o candidato acredita nessas promessas de ocasião.

Na arrancada de 2008 rumo à Casa Branca, foi a vez de Barack Obama. Ele soou bastante confiável ao sair em defesa de uma tribo específica – a de quem denuncia abusos do poder público. ”Não raro a melhor fonte de informação sobre desperdício, fraude e abusos [do governo] é um servidor público disposto a denunciar violações”, disse à época. ”Atos de patriotismo e coragem deste tipo ...deveriam ser incentivados ao invés de serem reprimidos”.

Na tarde de sexta-feira passada, depois de uma existência de 20 dias no limbo jurídico do aeroporto internacional de Cheremetievo, em Moscou, Edward Snowden capitulou. Pediu asilo temporário na Rússia até conseguir rumar para algum pouso definitivo.

À primeira vista, foi uma derrota cabal para este ex-técnico terceirizado da Agência de Segurança Nacional americana (NSA em inglês), que há quatro meses domina o noticiário internacional e preocupa tanto aliados como adversários dos Estados Unidos. Contudo, o julgamento que a História fará de Snowden como responsável por um dos maiores vazamentos de segredos da História , ainda sequer começou. Nada garante que a avaliação da era Obama, neste episódio, não venha a ser bem mais funesta do que a do whistleblower.

Ed Snowden mal completou 30 anos de idade. Hoje, ele tem mais a temer de um julgamento no país presidido por Barack Obama do que o ex- analista militar Daniel Ellsberg, que em 1971 forneceu ao New York Times, ao Washington Post e a outros 16 jornais um fatal baú de documentos secretos sobre o envolvimento americano na Guerra do Vietnam.

Ellsberg tinha então 40 anos e quem mandava na Casa Branca era o Republicano Richard Nixon. Durante 13 dias daqueles tempos sem internet, o delator fugiu da justiça americana enquanto copiava e distribuía manualmente a papelada tóxica. Concluída a missão, entregou-se às autoridades, pagou fiança , foi solto no mesmo dia e passou a responder em liberdade às acusações: conspiração, violação de segredos de Estado e espionagem. Durante os dois anos do processo, jamais teve a palavra ou a liberdade de ir e vir cerceadas. Ao final, o caso foi arquivado porque o governo Nixon autorizara um assalto ao consultório do psiquiatra de Ellsberg, em busca de sua ficha clínica. E também por ter grampeado ilegalmente o telefone do acusado.

Bons tempos aqueles em que essas práticas eram consideradas desonrosas. Tempos soterrados, porém, junto com os escombros das Torres Gêmeas derrubadas no ataque do 11 de setembro de 2001. Desde então o país é regido pelo Patriot Act, destinado a proteger a nação contra tudo e contra todos. Neste novo país o destino de Snowden remete menos a Daniel Ellsberg dos anos Nixon do que aos tempos da Guerra Fria.

Foi num dia de junho de 1960 que dois analistas da mesma National Security Agency embarcaram num vôo em Washington e desembarcaram como desertores, muitas escalas e meses depois, na capital da então União Soviética. Chamavam-se William Martin e Bernon Mitchell, tinham amplo conhecimento das entranhas da NSA e decidiram fugir para o campo inimigo para denunciar o que classificaram de mentiras sistemáticas do governo americano. Foram manchete no mundo todo. “Nenhum episódio do passado e provavelmente do futuro terá impacto maior sobre o sistema de segurança da Agência”, avaliou à época um estudo feito pela própria NSA sobre as consequências daquela delação.

O ex-presidente Harry Truman sugeriu que os dois fossem fuzilados. Dwight Eisenhower, que ocupava a Casa Branca, os considerou “traidores”. E a NSA se esmerou em inventar que ambos eram gays, movidos por “desvios sexuais”. Só recentemente, graças ao acesso que teve a documentos até então sigilosos, um repórter americano pôde retificar os perfis dos acusados. Ambos tiveram um final de vida pouco glamoroso sob as asas do regime comunista.

“Quando você revela segredos de Estado, mais cedo ou mais tarde o medo vai tomar conta de você”, diz com conhecimento de causa Peter Van Buren. Funcionário do Departamento de Estado por 23 anos, voluntário para servir no Iraque em 2009, ele não silenciou sobre o que vivenciou por lá durante a chamada Operação de Reconstrução. Seu livro “We Meant Well – How I Helped Lose the Battle for the Hearts and Minds of the Iraqi People (em tradução livre, “Nossas intenções eram boas – Como ajudei a perder a luta pelos corações e mentes do povo iraquiano”) teve como consequência imediata deixá-lo paranoico, segundo ele mesmo conta. Outro delator, John Kiriakou, um ex- agente do serviço de inteligência americano (CIA) que expôs a prática de tortura autorizada desde o 11 de setembro, cumpre pena de 30 meses numa penitenciaria da Pensilvânia.

Em carta aberta a Snowden, publicada esta semana, o Republicano Kiriakou alerta: “Em circunstância alguma colabore com o FBI (a policia federal dos Estados Unidos). Os agentes vão mentir e te enganar. Eles irão deturpar suas palavras e te fazer cair na armadilha do patriotismo. O FBI é o inimigo, é parte do problema, não a solução”.

Neste clima turvo entre mocinhos e bandidos, o caso Snowden está apenas começando.

Revolucionários ou burgueses? - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 14/07

Olhares estrangeiros sobre protestos no Brasil e no mundo chegam a conclusões contrapostas


Dois acadêmicos estrangeiros, de posições contrapostas, chegam a conclusões igualmente contrapostas --mas, curiosamente, ambas verossímeis-- a propósito dos protestos no Brasil (e no mundo). O que não significa que sejam verdadeiras, já que paira um imenso ponto de interrogação sobre as manifestações.

Refiro-me a artigos do esloveno Slavoj Zizek, popstar da filosofia, para a "London Review of Books", e do cientista político Francis Fukuyama, famoso por ter decretado "o fim da história" com o triunfo definitivo do capitalismo e da democracia liberal, este para o "Wall Street Journal".

Para Zizek, os protestos são anticapitalistas. "São todos reações a facetas diferentes da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global de hoje é no sentido de um expansão ainda maior do império do mercado, combinada com o progressivo fechamento do espaço público, a redução dos serviços (saúde, educação, cultura) e uma gestão sempre mais autoritária do poder político", escreve.

Não é difícil, de fato, ler os protestos no Brasil com essa lente. Pediram melhores serviços públicos, entre eles os de saúde e educação, e uma reforma política que desse aos mortais comuns um papel de maior protagonismo ante um poder político fechado em si mesmo.

Resta saber se são protestos contra o capitalismo como sistema, como crê o esloveno, ou contra abusos que podem ser remediados sem jogar o sistema em si no lixo.

De todo modo, é igualmente aceitável a conclusão de Zizek de que as manifestações são uma "tomada de consciência de que a forma atual da democracia representativa não é suficiente para combater os excessos do capitalismo e, portanto, a democracia deve ser reinventada".

Não deixaria de ser uma revolução.

Fukuyama não vê revolução, mas "fermentos":

"O elemento em comum nas recentes desordens na Turquia e no Brasil, como também na Primavera Árabe de 2011 e nos contínuos protestos na China, é a ascensão de uma nova classe média global. Onde quer que se tenha afirmado, essa classe média provocou fermentos políticos, mas quase nunca tem sido capaz de determinar por si só mudanças duradouras".

O cientista político duvida que seja diferente agora.

Ao contrário de Zizek, Fukuyama não vê anticapitalismo, mas o seu oposto no perfil dos manifestantes:

"Grande número de estudos conduzidos em vários países, entre os quais algumas pesquisas do Centro Pew e dados da Pesquisa Mundial sobre Valores da Universidade de Michigan, demonstram que pessoas com nível de instrução mais alto atribuem maior valor à democracia, à liberdade individual e à tolerância com estilos de vida diferentes."

Ou, posto de outra forma, os manifestantes seriam "burgueses que reclamam não só segurança para a própria família, mas também liberdade de escolha e mais oportunidades".

No fundo, é aquela velha história de que tudo depende da cor das lentes com as quais se olha algum fenômeno.

O ritual do esperneio - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O Estado de S.Paulo - 14/07

Pode ser que, diante da rápida sucessão de acontecimentos notáveis que temos testemunhado, meu assunto deste domingo já haja caducado, apesar da importância que lhe deram. Tudo agora é soterrado num passado cada vez mais próximo do presente e o famoso de hoje é o anônimo de amanhã, assim como a novidade tecnológica já sai obsoleta das prateleiras e as modas passam antes mesmo de pegar de todo. Nas últimas semanas, a velocidade de certos eventos chega a ser atordoante, para quem está, por exemplo, acostumado ao ritmo quelônio do Congresso Nacional e seu toque de bola no meio do campo, sem nunca chegar ao gol, mesmo porque o bicho já está garantido, quer haja gol, quer não haja. Até a renomada semana de três dias foi pressurosamente esquecida, uma coisa em que a gente só acredita porque viu na televisão.

A despeito disso, talvez alguém ainda lembre todo o alarido em torno da espionagem americana, na internet e nas comunicações por satélite. Embora certamente venha a sair das manchetes em breve, deve permanecer por aí ainda algum tempo, porque há todo um ritual a cumprir, uma coreografia de aparente complexidade, mas na verdade bastante simples. Consiste, basicamente, em fazer declarações e assumir posturas que todo mundo sabe serem inócuas, hipócritas, mentirosas ou tudo isto junto. Como existem, de uma forma ou de outra, precedentes para esse tipo de situação, já está disponível um estoque de reações mais ou menos padronizadas. Não há um só dos diretamente envolvidos que não saiba tratar-se de uma encenação, mas ela é levada adiante. Faz parte, imagino eu, do que muitos consideram ridículo, na condição humana.

Os protestos dos atingidos são feitos em discursos, pronunciamentos à imprensa e solenes reações diplomáticas. O fingimento começa em agir-se como se a espionagem tivesse sido inventada ontem e apenas os americanos a praticassem. É provável que a espionagem americana seja a mais bem aparelhada e a mais universal, mas as outras potências também espionam, embora, na hora da reclamação, isso seja deixado de lado, por complicar demais a coreografia. As médias e pequenas potências, as impotências e as miuçalhas também espionam o que podem, às vezes bem mais do que se concebe ou se teme. E a espionagem, inclusive comercial e industrial, sempre rolou solta.

O segundo fingimento é o de que fazer discursos e pronunciamentos adianta alguma coisa. Não adianta nada e ninguém ignora isso, mas, a depender das circunstâncias, podem ser feitos discursos inflamados e até cheios de xingamentos, pode-se bradar em defesa da soberania nacional e pode-se recorrer a organismos internacionais. Uma queixa na ONU, outra na OEA, outra aqui, outra acolá. E daí? De novo, todo mundo sabe que não vai dar em nada, mas essa parte do baile é aplicadamente dançada, entre vozes graves, cenhos franzidos e feições aguerridas. Ninguém esquece que os Estados Unidos não estão perguntando "não gostou, vai encarar?", mas estão pensando; sempre pensam - e é natural, ponhamo-nos honestamente no lugar dos americanos.

Segue outra parte da função. O espião nega que espionou e há quem respire aliviado. Mas acaso algum espião, ou patrocinador de espiões, admitiria espionar? Negar parece parte inerente dessa milenar atividade. Em seguida, vem um ato complementar, às vezes contrito, em que o espião faz que está aflitíssimo e morto de preocupação por causa das reclamações, pronunciamentos e recursos diplomáticos. Pede que desculpem qualquer coisa, diz que seu coração é todo do espionado, põe-se à disposição para explicações, convida para jantar, renova juras de amor eterno e, naturalmente, continua a espionar, só que com as cautelas ensinadas pela experiência. E todos os que podem continuam a espionar uns aos outros da melhor e mais disfarçada forma possível.

A não estou chamando ninguém de mentiroso, só estou pensando, pensar não ofende. Da mesma forma que os espiões negam espionar, ter espionado ou querer espionar, as grandes empresas americanas da internet, notadamente sites de busca, redes sociais e serviços de e-mail "gratuitos", nunca iriam confessar a transferência de dados a seu governo. Essas empresas fornecem serviços que o usuário otário acha que são de graça, mas são em troca de um volume de informações valiosíssimo. Somente os cruzamentos de dados estatísticos que elas podem fazer num piscar de olhos lhes dão um poder inestimável, pois é espantosa e aumenta a cada dia a quantidade de dados pessoais que entra na internet, geralmente fornecidos voluntária e até sofregamente pelos alvos de espionagem. Essas grandes empresas sabem qualquer coisa - como, para fazer uma gracinha, embora seja também uma possibilidade concreta, as identidades dos carecas míopes que residem em Copacabana em apartamentos de dois quartos e bebem cerveja no fim de semana. O governo americano sabe que eles sabem tudo isso e muito mais. Então, Deus que perdoe os que mal pensam, mas dá vontade de dizer a essas empresas "mordam aqui".

Não é à toa que os americanos querem pegar Edward Snowden, o autor das denúncias de espionagem. Não creio que isso acontecesse agora, mas ao longo de sua história, já enforcaram muitos que foram julgados traidores e na Guerra Fria torraram outros na cadeira elétrica, além de hoje manterem gente encarcerada e torturada sem julgamento ou culpa formada, eles não brincam muito em serviço. Não se enforca uma empresa e é óbvio que ela não quer ser traidora da pátria, não há dinheiro nem futuro nisso. Se estão decididos a encaçapar Snowden, pensem no prejuízo que uma empresa recalcitrante sofreria. Nada de básico, na espionagem reinante, foi ou será alterado, a não ser para aperfeiçoá-la. E além disso, a privacidade já morreu e não sabe, nada mais é segredo. Mas podemos continuar a espernear, por enquanto.


Moacyr e Franz - LUIS FERNANDO VERISSIMO

O GLOBO - 14/07

Participei de um evento em homenagem ao Moacyr Scliar na semana passada, e li este texto:

O Moacyr declarou que sua maior influência literária foi Franz Kafka e a influência está evidente em muitas das suas histórias, principalmente nos contos. Como as histórias do Kafka e como, no fundo, toda a literatura judaica tradicional ou moderna, as histórias do Scliar têm um tom de parábola, de ensinamento bíblico, se você conseguir imaginar uma Bíblia sem religião. São parábolas sem uma moral no fim. Têm a forma de uma narrativa didática, inspiradora ou aterrorizadora, mas sem uma clara lição final.

O Scliar e o Kafka têm em comum não apenas o fato de serem ambos judeus urbanos com um pendor para o fantástico e o insólito, mas por compartilharem desta compulsão, característica da cultura judaica, de contar histórias que significam mais do que elas mesmas, histórias que significam outras histórias, escondidas, e brincam com analogias e símbolos antigos desta cultura. E, sendo os dois judeus seculares, também compartilham da dualidade inerente à condição judaica, a obrigação atávica de respeitar o que o crítico Harold Bloom chama de “judaísmo normativo”, cuja expressão mais óbvia é o sionismo, sem sacrificar sua independência criativa e sua liberdade de pensamento.

Mas se o Moacyr e o Kafka são parecidos, cada um escrevendo sobre a sua respectiva aldeia metafórica, Praga e o Bom Fim, Praga no rescaldo do império Austro-Húngaro e o Bom Fim representando o mundo inteiro, são diferentes num ponto importante. O Moacyr queria que suas parábolas seculares fossem entendidas, mesmo que não concluíssem com uma lição moral e só produzissem no leitor o prazer da leitura.

Kafka não só não queria ser entendido como não queria nem ser lido, tanto que à beira da morte pediu ao seu melhor amigo que destruísse toda a sua obra. Felizmente, o amigo foi mais leal à posteridade do que ao Kafka. A posteridade do Moacyr, a permanência da sua arte e o prazer do seu texto nunca dependeram da decisão de ninguém. Estarão assegurados enquanto houver vida inteligente sobre a Terra. Como, aliás, prova o evento desta noite.

Ueba! Obama espiona corno! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 14/07

E eu não sou contra a vinda de médicos cubanos. O problema é: quem vai ficar cuidando do Fidel? Rarará!


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E os dois babados da semana: "Dilma dá um SUSto nos médicos". E "Brasil é alvo de espionagem dos EUA!".

Grandes novidades! Descobriram a pólvora. Se você não sabe onde largou a chave do carro, a CIA sabe! Vocês ficam escrevendo merda na internet, os americanos estão lendo tudo.

Socorro! O Obama vai descobrir que eu sou fã do Gusttavo Lima. Ai, que vergonha! E o Obama tem a lista de todos cornos do Brasil!

E um amigo no Facebook: "Querido presidente Obama, espero que aquilo que eu fiz com a minha secretária ontem fique só entre nós três". Rarará!

E um outro: "Querido presidente Obama, a minha mulher vai mesmo pro cabeleireiro três vezes por semana ou é migué dela?".

E a manchete do Piauí Herald: "Após espionar Galvão Bueno, agente da CIA pede asilo na Venezuela". Deve ter ficado louco, camisa de força.

E uma amiga quer saber se o Obama consegue decifrar um texto do Bial! E um outro quer saber: "Obama, ONDE ESTÁ O WALLY?". O Obama espiona o mundo todo, mas não sabe onde está o Wally! E toda vez que você entrar no Twitter e no Facebook, diga bom dia ao Obama. "Bom dia, Obama." E pra Michelle também, não seja mal-educado!

E a saúde? Dilma deu um SUSto nos médicos. "Maaaantega, manda esse médicos pro Amapá."

E eu não sou contra a vinda de médicos cubanos. O problema é: quem vai ficar cuidando do Fidel? Rarará! E eu não sou contra a vinda de médicos portugueses. O problema é a língua: menino é puto e fila é bicha. E vão instalar marcapasso no pé! Rarará!

E se eu estivesse doente no interior do interior do Ceará, eu iria querer um médico humano. Tanto faz se paulistano, cubano e até marciano! Até ET serve!

E os dois anos no SUS? Há controvérsias! Um leitor quer que os políticos sejam obrigados a usar o SUS por dois anos para que também sejam humanizados. O Sensacionalista acha que os médicos deviam aproveitar os dois anos do SUS para aprender caligrafia.

E o Mercadante virou clínico geral? Dá pitaco em tudo! Papagaio de pirata da Dilma, a Grande Chefe Touro Sentado. Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

Cadê minha boquinha - CELSO MING

ESTADÃO - 14/07

Desde 5 de dezembro, quem realizou cirurgia bariátrica (redução do estômago) tem direito a meia porção e/ou a desconto correspondente em qualquer restaurante de Campinas (Lei Municipal 14.524).
Em março, o ex-ministro Maílson da Nóbrega observava na revista Veja que, "pela mesma lógica, os restaurantes deveriam ser autorizados a cobrar o dobro dos obesos".
Esse caso de Campinas é uma ilustração de um estado geral de espírito e de cultura que há décadas permeia a sociedade brasileira. Segmentos de todos os tamanhos da população estão sempre à procura de uma vantagem especial dos governos.
Como já analisado pelo comentarista da Agência Estado, Fernando Dantas, é o fenômeno que o professor Samuel Pessoa, da Fundação Getúlio Vargas, chama de "país da meia-entrada".
São aqueles que se beneficiam das pensões vitalícias por morte; são os idosos que podem rodar no metrô e nos ônibus sem terem de pagar tarifa; os estudantes ou os aposentados que pagam meia-entrada no cinema; é o empresário que sempre espera subsídios para sua indústria e reservas de mercado para seus negócios; é a categoria dos jornalistas que arrancou uma lei que autoriza a se aposentar aos 30 anos de trabalho e não aos 35; é o chefe político que se julga no direito de usar jatos da FAB para ir a casamentos de amigos ou, então, no direito a financiamentos preferenciais da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, que ele pagará, ou talvez não, quando der...
Muitos desses benefícios são justos ou encontram plena justificativa técnica. De mais a mais, os mecanismos de decisão política estão aí para arbitrar esses e outros direitos adquiridos.
O problema é que "no país da meia entrada" todos querem algum benefício equivalente, sem levar em conta que, justos ou injustos, esses benefícios acabam sendo pagos por aqueles que não podem escapar da fatura. Só é possível cobrar tanta meia-entrada no cinema ou em outras coisas da vida, se para os demais a entrada inteira custar mais, para compensar o que deixar de ser arrecadado. O passe livre, tanto quanto a educação pública e a saúde básica, não sai degraça. O contribuinte acaba sendo chamado a dar cobertura para essas despesas.
Não é possível democratizar plenamente boquinhas e meias-entradas sem democratizar também as contas a pagar.
No cruzamento dessas faturas, a aritmética é inexorável, com uma agravante: esses processos de expansão de benefícios e de cobranças adicionais geram subsídios cruzados de baixa transparência. E, em tudo isso, sempre se criam distorções que, por sua vez, criam outras.
É como aquela rede de mecanismos de compensação de perda de renda (indexação), criada no tempo da megainflação. Eram os hábitos do dinheiro quente, que exigiam compras concentradas no dia do recebimento do salário (antes das remarcações de preços) ou impunham reajustes automáticos, de preferência diários, que tentavam proteger patrimônio e renda. A corrida para não perder demais da inflação se encarregava de realimentá-la, traste do qual a economia brasileira ainda não se livrou totalmente. O tiro mais certeiro nessa roda viva foi a criação da Unidade Real de Valor (URV), que transformou em moeda a própria indexação da economia.
Como reduzir a avalanche das meias-entradas a uma proporção aceitável é uma questão e tanto. Nenhum economista brasileiro se dedicou a criar uma URV para acabar com isso. Nenhum político apresentou projeto para disciplinar a concessão de tantas boquinhas.

Os excessos da pensão por morte - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 14/07

Se gastássemos menos com pensão por morte, haveria recursos para dobrar os investimentos públicos


É comum a visão de que o consumo do governo é elevado. Uma primeira reação a esse fato é concluir que, dada a premente necessidade de aumentar gastos para melhorar os serviços públicos, como exigido pelas manifestações populares, é preciso reduzir o consumo do governo para que sobrem recursos. Estes, por sua vez, seriam usados para aprimorar a qualidade dos serviços públicos.

O erro na conclusão acima é que, ao tratarmos do consumo do Estado, pensamos que essa modalidade de gasto público é análoga ao consumo individual. As famílias consomem bens finais. Se houver necessidade, o consumo é cortado. Reduzem-se as idas a restaurantes, cinemas e teatros, gastos em férias etc.

O leitor poderia contra-argumentar, observando que alguns gastos da família não têm a natureza de consumo de bens finais, mas seriam mais bem caracterizados como consumo de bens intermediários, necessários à execução de alguma tarefa.

Por exemplo, os preços das passagens de ônibus que os estudantes pagam para o trajeto entre a casa e a escola e que os pais despendem para a jornada entre o lar e o trabalho não podem ser reduzidos. A não ser, claro, que aceitemos que os estudantes parem de estudar e os trabalhadores parem de trabalhar.

O consumo público tem a natureza de um insumo intermediário, assim como a passagem de ônibus do deslocamento de um trabalhador ao local de trabalho. A diferença é que, enquanto na família essa parcela de insumo intermediário é uma parte menor dos gastos, no governo ela é responsável por quase todo o consumo --e é por isso que é tão difícil cortar este último.

Um componente importante do consumo público é o pagamento de aposentadorias e pensões por morte para o funcionalismo. Esse item deve ser considerado consumo do governo porque são gastos públicos diferidos no tempo de servidores. Esses gastos são necessários para que o setor público consiga prover os serviços de saúde, educação, Justiça e segurança.

É claro que se pode questionar se salários e benefícios previdenciários do funcionalismo no país são excessivos. Mas é preciso não esquecer que esse custo foi determinado em processos legítimos de barganha em uma sociedade democrática. Reduzi-lo, portanto, implica uma batalha política de enorme dificuldade. A não ser, claro, que se pense em mudar a regra do jogo, proibindo greves no setor público, por exemplo --mas aí é outra história.

Em alguns casos, porém, como as pensões por morte, o despropósito dos benefícios é tão evidente que talvez seja menos difícil enfrentar a luta para reduzi-los. Aliás, isso se aplica também ao setor privado.

Na verdade, um dos exemplos mais contundentes de por que o consumo do governo é tão elevado no Brasil é justamente o programa de pensão por morte do funcionalismo. Mas o mesmo também pode ser dito do gasto do setor público com as pensões por morte do setor privado.

Nesse caso, não se trata de consumo do governo, mas de transferências. De qualquer forma, tudo faz parte da despesa do Estado.

O Brasil gasta com pensão por morte, no setor público e no privado, cerca de 3% do PIB. Países com a pirâmide etária equivalente à nossa gastam 0,5% do PIB.

Temos, consequentemente, excesso de gasto nessa rubrica do Orçamento de 2,5 pontos percentuais do PIB, quando se faz uma comparação internacional.

O investimento do setor público no Brasil, nos últimos 20 anos, sempre esteve abaixo de 2% do PIB. Se, portanto, gastássemos o normal, para um país como o nosso, na rubrica pensão por morte, haveria recursos para dobrar o investimento público realizado nas últimas décadas. Evidentemente, nossas metrópoles seriam lugares bem mais aprazíveis de viver.

Gastamos mais do que outras sociedades porque nossos critérios de elegibilidade à pensão não têm limitação: não dependem da diferença de idade entre os cônjuges, de haver ou não filhos para criar, de o cônjuge trabalhar ou não, ou de ter ou não fonte própria de receita.

Adicionalmente, se for servidor público, a pensão é igual ao valor integral do salário do funcionário da ativa.

Ou seja, esse componente do gasto público é elevado por causa da legislação, e não da maior ou da menor competência do gestor público do momento. E a legislação foi decidida pelo Congresso Nacional.

O desafio da gestão pública - AMIR KHAIR

O Estado de S.Paulo - 14/07

As manifestações nas ruas e praças trouxeram, além da revolta com o sistema político, cobrança por melhorias na área social. Isso pode envolver mais recursos, obrigando o setor público a trabalhar com maior eficiência e eficácia nas suas despesas. Em artigo anterior, prometi tratar da gestão pública visando a racionalização das despesas, pois há muito a fazer nessa área. Com os mesmos recursos à disposição é possível atender mais e melhor as demandas da população.

Infelizmente, o que se assiste é a pressão dos governantes por mais recursos para atender à pressão social. Nesses dias, governadores e prefeitos foram a Brasília para pressionar o governo federal por mais transferências de recursos. Em resposta, o governo cede alguma coisa, mas aquém das reivindicações.

Mas, de onde saem esses recursos adicionais? Saem de mais endividamento do governo federal, pois suas contas são historicamente deficitárias ao ter de pagar despesa monumental de juros. Em 2011, foram gastos 5,7% do PIB com juros, e o País, na comparação internacional, só foi ultrapassado pela Islândia, com 6,2%, pois esse pequeno país faliu e passa por situação delicada.

Ao elevar a dívida, cresce a despesa com juros subtraindo os recursos existentes. Assim, quanto mais passa o tempo, piora a situação do setor público, na ciranda de pressão e resposta que vem ocorrendo.

Se não dá para elevar ainda mais a alta carga tributária, resta usar bem os recursos existentes. A primeira providência para isso compete ao governo federal. Pode deixar de desperdiçar recursos com juros, pois é ele que define a taxa de juros que paga ao mercado.

Para ter noção desse desperdício, o setor público gastou no período 2002/2012, em média, 6,33% do PIB com juros, o equivalente hoje a R$ 300 bilhões! Nesse período, manteve a Selic entre as mais altas do mundo. Neste ano, apesar do fraco crescimento, e de nenhum país elevar a taxa básica de juros, o Banco Central continua elevando a Selic. Com isso o governo federal dá tiro no próprio pé e perde argumento de falta de recurso.

Os R$ 300 bilhões desperdiçados a cada ano dariam para ter saúde, educação, habitação, assistência social, transporte e segurança em patamares muito superiores de atendimento e qualidade. Os investimentos em infraestrutura teriam permitido reduzir os gargalos da situação existente, que é importante trava ao desenvolvimento.

Em segundo lugar em importância, após os juros, para contribuir a uma gestão superior é a transparência dos gastos. Apesar de ter melhorado a legislação sobre a transparência, é quase impossível avaliar como se dão os gastos nos Estados, municípios e nos poderes Legislativo e Judiciário. Os dados oficiais da Secretaria do Tesouro Nacional sobre as contas de Estados e de municípios está parada em 2011! Com o avanço da transparência, será possível avaliar se a despesa com determinada finalidade está dentro de um padrão considerado satisfatório, dificultando o superfaturamento nas compras, nos serviços e nas obras contratados.

Chama a atenção serem raras as avaliações sobre as despesas de Estados e municípios, aparecendo apenas as do governo federal. Vale destacar que os Estados e municípios foram responsáveis, em 2011, por 64% da despesa não financeira do setor público. Isso pode dar a impressão que as análises possam ter mais motivações políticas do que técnicas. E isso independentemente de quem ocupa o poder federal.

Trato, por razões de espaço, sinteticamente apenas as duas maiores despesas de Estados e municípios: pessoal e serviço de terceiros, que representaram, em 2011, 59,5% da despesa total nos Estados e 69,7% nos municípios.

Pessoal. A despesa com pessoal é a maior no setor público. Em 2011, representou 45,4% da despesa total nos municípios, 47,7% nos Estados e 19,8% no governo federal. Normalmente, pouca atenção é dada à mesma pelos governantes, a não ser nos momentos em que o funcionalismo reivindica reajuste salarial. Quem arca com as despesas de pessoal, como todas as demais, é a população, com os tributos que paga. Assim, é necessária transparência dos salários e benefícios que recebem os servidores como pré-requisito para qualquer decisão de alteração desses itens. A seguir, algumas sugestões.

O absenteísmo é normalmente elevado no serviço público, especialmente pela concessão de licenças médicas imotivadas. Os servidores que se afastam do serviço sobrecarregam os que trabalham e elevam o número de servidores. Para a redução do absenteísmo, é necessário ter um sistema que o apure periodicamente para cada órgão do governo, tornando pública a informação, e deve ser estabelecido um índice máximo de absenteísmo, e nenhum órgão pode ser atendido, caso queira contratar mais servidores estando acima do índice máximo.

Outra despesa se dá na relação quantitativa entre chefias e subordinados de cada sessão. É comum encontrar relações de um chefe para um ou dois subordinados. Isso ocorre pela política de conceder vantagens ao servidor por gratificações de funções de chefia. A reorganização administrativa poderá permitir estruturas hierarquicamente mais enxutas, com menor número de diretorias, departamentos e seções, com serviços afins integrados e com o nível adequado de servidor por chefia.

A confiabilidade da folha de pagamento deve ser periodicamente avaliada para evitar: a) funcionários fantasmas e; b) erros na aplicação das metodologias de cálculo dos diversos componentes dos vencimentos e descontos de cada servidor. Algumas consultorias revelam que isso pode proporcionar economias superiores a 10% na folha de pagamento.

Para a gestão de pessoal ser eficaz, é necessário que o quadro de servidores de qualquer órgão esteja ocupado com pessoas que trabalham efetivamente no mesmo. É comum a cessão de servidores entre órgãos dentro de um mesmo Poder, entre poderes e entre níveis de governo. Isso impede a apuração de custos e a gestão de pessoal. Estimo que a adoção dessa providências pode proporcionar uma economia de 20% nas despesas com pessoal.

Serviço de terceiros. Constitui a segunda despesa em importância nos Estados e municípios. Representou, em 2011, 11,8% da despesa nos Estados e 24,3% nos municípios.

Nos municípios, o maior custo é com a limpeza pública (coleta de lixo e varrição de vias e logradouros públicos). É um setor de baixa concorrência, sujeito à formação de cartéis por região e importantes financiadores de campanhas eleitorais municipais.

Pode-se encontrar contratos que superdimensionam o valor dos serviços e as faturas dos serviços realizados podem estar superdimensionadas, sendo necessária auditoria para a apuração do custo real e fiscalização rigorosa da execução. Infelizmente, isso não ocorre na maioria dos casos. Caso haja gestão competente nos principais contratos, com controles de execução e auditorias periódicas de custos, é possível economias da ordem de 20% nos serviços de terceiros. A gestão bem feita pode liberar e aproveitar melhor o recurso extraído da população em prol dela e muito se pode fazer para avançar nessa questão.