domingo, julho 14, 2013

Manuel e Cecília - ADRIANA CALCANHOTTO

O GLOBO - 14/07

Um belo dia, Ciça, editora da Casa da Palavra, me liga pra saber se por acaso não teria eu alguma ideia para um livro infantil. Respondi num impulso: “olha, pior que tenho”, e foi assim que começamos

Antes que o jornal de hoje enrole o peixe de amanhã, peço aos compadres licença para puxar a brasa para a minha sardinha, rapidinho. Lancei, na Flipinha, em Paraty, um livro chamado “Antologia ilustrada da poesia brasileira para crianças de qualquer idade”. Sentia tanto a falta de um livro assim que resolvi fazê-lo eu mesma. Sou um rato de livrarias, entro em todas, fuço tudo, em qualquer país em que possa, por mais incrível que me pareça às vezes, me encontrar. Posso passar horas dentro de uma onde as palavras não exibem uma única vogal, ainda que prefira as de língua portuguesa. Começo geralmente pela seção infantil, não sei por quê, e não estou aqui para julgar o nível do que andam chamando de “literatura infantil brasileira”, embora, deixa pra lá. Sempre senti falta, nas prateleiras, de uma coletânea de alta poesia para crianças de qualquer idade que reunisse nossos grandes poetas, em ordem cronológica, para que se possa desfrutar dos ecos e das influências atravessando gerações, e uns desenhos. Como pode não existir esse livro, gente?, perguntava a mim mesma, prateleiras afora.

Um belo dia, Ciça, editora da Casa da Palavra, me liga pra saber se por acaso não teria eu alguma ideia para um livro infantil. Respondi num impulso: “olha, pior que tenho”, e foi assim que começamos.

Os poetas em domínio público não deram trabalho algum, como todo mundo pode imaginar. Os contemporâneos, diferentemente do que se poderia esperar, não deram trabalho nenhum também. Foram solícitos, sugeriram poemas, deram ideias, desembaraçaram cláusulas de exclusividade de seus contratos para poder participar — uns fofos, todos. Lêdo Ivo e Décio Pignatari nos deixaram durante o processo de realização do livro, mas não tivemos quaisquer problemas para obter as autorizações referentes. Porém, a antologia não tem poemas de Manuel Bandeira e Cecília Meireles, e, antes que os compadres se apressem a “mas ela é burra, é ignorante, é as duas coisas ou consegue a proeza de não se deixar maravilhar pelos dois enormes poetas?”, lamento, mas informo que não é porque os poemas não tenham sido autorizados que eles não estão no livro. É porque nunca obtivemos resposta alguma, depois de insistentes, desesperadas tentativas, as meninas da editora, a editora, o departamento financeiro da editora, eu, a organizadora do livro e que enviei duas vezes o mesmo e-mail. Ninguém nos retornou. “Sim”, “não”, “vai depender da grana”, “me erra”, “temos um contrato que nos impede”, “passa aí amanhã, peixe”. Nada. Silêncio, vácuo, e agora? Os dois poetas são imprescindíveis, incontornáveis, não existe a menor possibilidade de eles não estarem em uma antologia como esta, viram duas covas sem a reverberação de seus ecos nas gerações posteriores. O que seria a poesia de Vinicius de Moraes ou a de Carlos Drummond, se não houvessem lido os dois? Os dois poetas preferidos de Mario Quintana? As crianças ficarão sem entender um bocado do que aconteceu.

É falta de educação ou amadorismo não responder aos e-mails, sabemos, mas o pior é o desserviço prestado às crianças. Manuel Bandeira organizou ele mesmo uma antologia de poetas, de modo que o argumento, caso houvesse um argumentador, de que o poeta poderia não gostar de estar em reunião desse tipo, já podemos descartar.

Liguei para a minha advogada:

— Doutora Luciana, quero ser presa.

Doutora Luciana, impávida:

— O que foi que você fez?

— Nada ainda — respondi. — Só quero me entregar ao delegado confessando que estou cometendo o crime hediondo de publicar Manuel Bandeira e Cecília Meireles para as crianças sem ter autorização. Ou melhor, sem ter resposta alguma. Quem sabe para ser interpretado como “quem cala consente”, pois no fim indenizações serão sempre muito mais polpudas do que a venda de livros, e de poesia ainda por cima. Posso ir já de algemas para adiantar o serviço, tenho umas aqui em casa, forradas de pelúcia de oncinha. Chamamos a imprensa e, como numa obra qualquer de Sophie Calle, registramos publicamente a minha rendição. Meus amigos, sei que me levarão maçãs e livros. E os inimigos, chocolate.

Doutora Luciana, minha advogada:

— Você não vai ser presa, Adriana, o livro é que provavelmente vai. O crime é de violação de propriedade intelectual, crime de direitos autorais, sua editora vai ter que pagar um caminhão de dinheiro, e só. Isso não dá cadeia assim, inventa outro crime pra cometer e me liga.

Mas como assim, não tenho o direito de querer ser presa por confessar um crime cometido? Que esculhambação, hein? Violo o direito autoral, me entrego ao delegado, algemada mas vestida de Gilda Midani, e vou ver o sol nascer quadrado numa cela comum, que não fiz faculdade, com capacidade para 30 detentas, abrigando na realidade bem mais de 200 colegas. Prefiro, a lançar uma antologia de poesia para crianças de qualquer idade sem Manuel e Cecília. É inadmissível que, por conta de imbróglios de adultos, crianças percam a oportunidade de desde muito cedo ter noção da importância das vozes dos dois poetas no contexto histórico e estético da poesia brasileira. Justo eles, que escreveram e publicaram livros inteiros para elas e com isso inspiraram mais poetas a escrever também. Me prendam, por favor, quero cometer o crime, de lesa pátria, doloso e duplamente qualificado (praticamente um triplo carpado), e já ir respondendo por meus atos, que sou do Rio Grande, e a vida é curta.

Os dois magníficos poetas têm perambulado por coletâneas atuais, sugerindo que quem os representa lê uma hora ou outra a correspondência, mas aí precisei embarcar na turnê do Prêmio da Música Brasileira e achei que não seria o melhor momento para me encafifar no xilindró. Não seria visto como muito profissional da minha parte, e assim, felizmente, o livro está nas prateleiras, com poetas extraordinários, fundamentais, obrigatórios, mas sem os dois grandes líricos.

Assim, antes que o jornal de hoje seja separado para o cocô dos cachorros amanhã, agradeço comovida aos compadres que chegaram até esta frase, de meu incontinente desabafo. Pobres crianças. Pobres Manuel e Cecília. Pensemos em coisas boas.

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