O Estado de S.Paulo - 31/12
Umas multinhas aqui, outras acolá. Pior, desleixo em obrigar membros da família a perfilhar suas próprias infrações no meu carro. E lá se vai a carteira por uns tantos meses. Vencido o prazo de abstinência, há que penar 30 horas de reciclagem. Uma experiência edificante e educativa!
Sendo impossível confiar nas autoescolas, o Detran usa as impressões digitais de professor e aluno ao início e ao fim da aula. Tudo controlado por um formoso computador. Ou seja, descentralizado e controlado. Ao menos para leigos, o sistema é blindado. Há realmente que gastar 30 horas na autoescola. Se o objetivo é punir os pecadores e convencê-los a tomar mais cuidado, o sucesso é incontestável. Parabéns ao Detran. O castigo é de uma chatice infinita, espantosa perda de tempo. Aprendi a lição.
Como a prova é a mesma para obter a carteira de habilitação, fiquei pensando na lógica do sistema. De início, por que obrigar alguém a fazer autoescola, se há uma prova no Detran? Depois de fazer três simulados foi fácil, o exame mescla conhecimentos úteis, decoreba e cretinices, com predomínio das últimas.
No meu último exame de habilitação, nos EUA, havia que estudar um livreto de 20 páginas (metade sobre direção defensiva). O livro brasileiro tem 162 páginas. Pela lógica, deveríamos ser motoristas exemplares, conhecendo todas as regras do trânsito, primeiros socorros, cidadania e direção defensiva. Como nossa taxa de acidentes fatais é espantosa, reduzi-los deveria ser o foco obsessivo do curso. Mas as provas oferecem uma indigestão de banalidades e inutilidades. Por que o Detran não contrata os serviços profissionais de quem sabe formular provas?
O melhor capítulo é o de primeiros socorros, eminentemente útil considerando quantos se estraçalham nos acidentes. Mas a formulação das perguntas é canhestra. Admitamos ser útil saber que o acidentado morre se tiver uma parada cardíaca. Mas por quantos minutos? E por quanto tempo apertar um nariz que jorra sangue? Os médicos se lembrarão desses números?
O capítulo de cidadania é uma total perda de tempo. Sólidas pesquisas demonstram que perorações e sermões têm impacto nulo sobre o comportamento. De que adianta dizer aos motoristas que sejam gentis?
Os vídeos exibidos na autoescola são lastimáveis. Se dirigir é lidar com o movimento, por que não passam de uma sucessão de telas estáticas? Além disso, têm erros técnicos.
Quem formulou a prova ama definições legais. São essenciais para a polícia, mas inúteis para outros mortais. Por exemplo, veículo de carga é caminhão, carroça ou carrinho de mão? Veículo de tração é semirreboque, reboque ou caminhão trator? Qual a definição exata de uma carroça? E de uma "estrada"? E de lote "lindeiro"? Como se chamam as mensagens incorporadas às placas? Charrete transporta carga ou pessoas? Qual documento o guarda não precisa exigir ao autuar um veículo? Qual a habilitação para transporte escolar? E para cargas perigosas? Quantos dias tem a autoridade de trânsito para julgar uma infração? Qual a medida administrativa na apreensão de um veículo? Qual o nome do órgão que cuida da qualidade do ar? Qual órgão tem câmaras temáticas?
Há perguntas para o fabricante do veículo. Por que deveríamos saber qual o equipamento de segurança obrigatório em reboques e semirreboques? Quanto de monóxido de carbono expele um veículo a álcool? Outras são para as autoescolas. Quantos acompanhantes são permitidos durante as aulas de direção?
Pensemos bem, conhecer tais resposta aumenta a segurança?
Abundam perguntas tolas e pegadinhas, como a diferença entre "camioneta" e "caminhoneta". Gestos de sinalizar são chamados de "automatismos" ou "direção segura"? Como se denomina a distância entre um veículo e outro? Como é a placa de uma estância hidromineral? Desenho de boi na placa anuncia exposição agropecuária, matadouro ou rodeio? Quantos lados tem uma placa R-1?
E as ambiguidades? Uma placa com pedestre cruzando significa "passagem sinalizada para pedestres", "travessia de pedestres", "passagem para pedestres"? Qual a diferença entre "mão dupla adiante" e "mão dupla à frente"? Uma pergunta sobre preferências de passagem oferece quatro alternativas razoáveis (portanto, só decorando). O pedestre tem prioridade se for idoso, se o sinal para pedestres estiver verde ou quando está na faixa de segurança?
Há questões erradas: "Qual a força que joga o veículo para dentro da curva?". O atrito dos pneus é a força centrípeta, mas só impede a ação da centrífuga. Que elemento do motor "recebe o impulso direto do sistema de partida"? Todos os elementos móveis são solidários, a pergunta é tola. O uso incorreto dos freios provoca comportamento "inseguro", "arriscado" ou "sobre-esterçante"? Deslindar tais charadas semânticas importa para a segurança do trânsito?
Talvez o conhecimento potencialmente mais útil seja direção defensiva. Infelizmente, o conteúdo é pobre, predominando perguntas que requerem decorar listas de princípios e definições. Pouco se aprende para a vida real. Deveria haver instruções exaustivas do que fazer em caso de derrapagens, obstáculos na pista, entrada em curvas com velocidade excessiva e outras situações críticas para a segurança. Isso, sim, salva vidas. Aliás, por que a "direção corretiva" é considerada "de alto risco"? Diante de uma situação crítica pode ser a que reduz o risco.
Pesquisas americanas mostraram que motociclistas com curso de direção defensiva sofrem só um quarto dos acidentes. Por que o livreto não explica as técnicas de frenagem, com o equilíbrio certo entre o freio traseiro e o dianteiro? O mesmo sobre técnicas para entrada e saída de curvas? Por que é preciso inclinar a moto para reduzir o ângulo da curva? Em quantos metros é possível parar uma moto trafegando a xis quilômetros por hora?
Escolhendo ao acaso uma prova simulada, de 30 perguntas, apenas 4 lidavam com conhecimentos que aumentam a segurança. Por que será que o Detran quer exercitar a memória e a paciência dos motoristas, em vez de tentar reduzir acidentes?
Disse tudo! CPI das autoescolas neles. Não deveria haver nenhuma obrigatoriedade de auto escola. ´\e tudo de uma inutilidade ululante.
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