quinta-feira, dezembro 05, 2013

O moço de Benfica - CORA RÓNAI

O GLOBO - 05/12

Os melhores luthiers, vindos das melhores escolas europeias, não consertavam uma flauta como ele. Graças a isso, muitas flautas antigas, já aposentadas, voltaram a cantar pelo Rio


Era uma vez um moço que morava no subúrbio. Chamava-se Carlos Cesar e, na garagem de casa, montou uma pequena oficina onde consertava flautas. No começo atendia aos músicos das bandas militares que moravam na vizinhança mas, aos poucos, sua fama foi se espalhando pela cidade — e, logo, todos os flautistas do Rio de Janeiro passaram a bater ponto em Benfica. Mais um tempo, e flautistas de outros estados, atraídos pela fama do luthier, também passaram a enviar seus instrumentos para ele.

O problema é que toda flauta sofre um processo natural de desgaste. O forro das sapatilhas — que são aquelas chaves que os flautistas apertam com os dedos para tampar os buracos do cilindro e formar diferentes notas — perde a elasticidade e, com isso, deixa o ar vazar. A consequência é triste: desafinação total.

Forrar uma sapatilha, porém, não é para qualquer sapateiro. Ela tem que ficar tão bem adaptada ao corpo da flauta, mas tão bem adaptada, para que a vedação seja total e ar algum consiga escapar. A arte envolve jornal (faz isso com um iPad!), feltro e baudruche, ou tripa de peixe — o mesmo material que se usava em perfumaria para lacrar os vidros de essência.

— Quem foi que chegou à conclusão de que tinha que ser assim? — perguntei à Laura, que me contou essa história. — E por que justo jornal?

— Ninguém sabe. É uma tradição antiga.

— Mas quando as flautas transversas foram inventadas os jornais ainda não existiam...

— Mas as sapatilhas também não! As transversas do século XVII tinham uma única chave, de couro. As flautas só ganharam sapatilhas no século XIX.

Por algum motivo que não pretendo descobrir nesta encarnação, há pessoas que têm um talento fora do comum para combinar jornal, feltro e tripa de peixe, e o moço de Benfica era uma dessas pessoas. Os melhores luthiers, vindos das melhores escolas europeias, não consertavam uma flauta como ele. Graças a isso, muitas flautas antigas, já aposentadas, voltaram a cantar pelo Rio. Durante uma época, por sinal, ninguém mais na cidade teve medo de comprar flauta velha, porque era certo que o Carlos Cesar daria um jeito no instrumento.

— Ele era tão bom que, quando acabava um trabalho, tirava as molas das sapatilhas, apagava a luz da garagem e acendia uma lanterninha dentro da flauta. Não escapava nem luz, quem dirá ar!

Um dia, Laura foi a Benfica levar ou trazer uma dessas flautas combalidas, e o luthier lhe pediu um favor. Precisava comprar um feltro específico, usado pela Wm. S. Haynes, uma fábrica de instrumentos americana, porque não havia nada melhor no mercado. Como não falava inglês, pediu que ela entrasse em contato com os fabricantes.

Laura voltou para casa, escreveu para a fábrica, explicou quem era o Carlos Cesar e, algumas semanas depois, recebeu um pacote pelo correio. Era um metro de feltro, que a Wm. S. Haynes mandava de presente para o luthier de Benfica. Mas, quando viu o feltro, ele ficou muito desapontado.

— Não é esse o feltro que eles usam nas flautas, não — disse, assim que botou a mão no tecido. E mostrou à Laura um pedaço do outro, como comparação.

— Só que os dois eram exatamente iguais! — conta a Laura. — A cor era a mesma, o peso, a espessura... Não havia diferença nenhuma, mas o Carlos Cesar insistiu comigo para que escrevesse de novo para a fábrica. Tentei demovê-lo da ideia, disse que estava maluco, que os dois feltros eram iguaizinhos, mas ele não quis nem saber. De modo que escrevi novamente. Agradeci a gentileza deles, disse que estava até constrangida, mas que o nosso luthier teimava em dizer que o feltro que eles usavam nas flautas era diferente do que o que lhe haviam enviado. E, pelo sim pelo não, juntei duas amostrinhas.

Três semanas depois chegou a resposta da fábrica. Os diretores estavam abismados. O feltro era realmente diferente, um grande segredo de fabricação. Só que nunca ninguém, em lugar algum, jamais havia dado por essa diferença. Eles queriam conhecer o luthier que descobrira o segredo e o convidaram a visitá-los, com todas as despesas pagas.

De modo que lá se foi o Carlos Cesar para Boston, onde lhe ofereceram um emprego. Ele estava na dúvida se aceitava, os amigos daqui insistiram, e ele chegou a passar algum tempo lá, mas as saudades do Brasil foram mais fortes. Lá fazia frio, as pessoas eram fechadas, não tinha roda de samba...

Com o dinheiro recebido, o moço comprou algumas flautas velhas que, voltando ao Brasil, pôs nos trinques. Revendeu e, com o lucro, voltou de novo aos Estados Unidos, onde comprou mais algumas flautas velhas. E assim sucessivamente, até o dia em que, já de posse de um dinheirinho, percebeu que não precisava mais comprar flautas velhas. Passou a trazer flautas novas e, com o tempo, virou um dos maiores importadores de instrumentos do país.

Vendeu a casinha no subúrbio, foi embora do Rio e deixou uma legião de flautistas órfãos que, até hoje, falam dos seus feitos e admiram as flautas que ele consertou. De lá para cá apareceram muitos outros luthiers, todos razoavelmente bons no uso do jornal, do feltro e da tripa de peixe, mas nunca mais ninguém consertou uma flauta como o moço de Benfica

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