quarta-feira, dezembro 25, 2013

O direito e a justiça - FRANCISCO BOSCO

O GLOBO - 25/12

No julgamento que levou a Portuguesa ao rebaixamento o primeiro prevaleceu sobre o segundo: foi legal, porém injusto


Nessa sexta-feira, o STJD dará sua decisão definitiva sobre o caso das escalações ilegais de jogadores da Portuguesa e do Flamengo, na derradeira rodada do “brasileirão”. Nos últimos dias surgiram fatores novos, que podem mudar a decisão inicial. Quero comentar aqui, entretanto, o primeiro julgamento, cujo veredito — é o que pretendo mostrar — foi legal, porém injusto. O rebaixamento da Portuguesa à série B, junto à manutenção do Fluminense na série A, foi, na melhor das hipóteses, fruto de um lamentável equívoco quanto ao que significam o direito e a justiça, qual a relação entre eles, e qual o papel de um juiz.

Direito e justiça são duas coisas fundamentalmente diferentes. O direito é universal e abstrato. A justiça é singular e concreta. Para que se exerça a justiça, é necessária essa instância generalizante do direito, manifesta sob a forma de rígidas leis, sem as quais a justiça corre o risco do arbítrio. Mas, por outro lado, para que se faça justiça é também necessário submeter os princípios gerais do direito e das leis aos casos singulares, com toda a sua complexidade. Por mais que as leis sejam detalhadas, elas nunca poderão conter, em si, a singularidade dos casos particulares, pois o singular é infinito (um tal livro de leis seria um borgiano volume contendo a análise combinatória de todas as possibilidades do universo). Por essa razão o direito — isto é, a lei — nunca pode conter, em si, a justiça. Em outras palavras, o mero cumprimento da lei não significa realização da justiça.

O sentido de justiça é basicamente formado pelas ideias de conformidade e equidade. A etimologia — do latim “justitia” — encerra os significados de “exatidão”, “justeza”, “equidade”. Fazer justiça é equiparar dois acontecimentos diferentes. Mas, atenção, diferentemente do que consigna o verbete no dicionário (no “Houaiss”), justiça não é a “conformidade dos fatos com o direito”, mas a conformidade de um fato com outro fato, mediada pelo direito. Justiça é comensuração de acontecimentos. O direito estabelece as diretrizes gerais para esse cálculo, mas só quem pode atualizar a matemática fina requerida por essa comparação entre acontecimentos diferentes é a figura do juiz. Sei que estou demasiado abstrato; voltemos ao particular.

A Portuguesa e o Flamengo escalaram ilegalmente um jogador, na última rodada, num jogo que, para eles, não valia quase nada (no caso da Portuguesa, seu adversário disputava ainda a ida à Libertadores). O tribunal, aplicando a lei, puniu os clubes com quatro pontos, em consequência do quê a Portuguesa foi rebaixada. Ou seja, uma infração ao regulamento cuja consequência era quase NADA foi punida com TUDO. Uma operação de comensuração cujo resultado é equiparar o nada e o tudo pode ser conforme à lei — mas é profundamente desconforme à justiça.

Diferentemente do que disseram alguns de seus participantes, o julgamento não fez prevalecer a “lei sobre a moral”, ou a “razão sobre a emoção”; fez sim prevalecer o direito sobre a justiça. Mas o direito, como mostrei, não é por si justo. O direito está a serviço da justiça. Ao contrário, os juízes do caso estabeleceram que o sentido último do processo é o direito (na verdade um meio) e não a justiça (que é o fim). Os juízes recusaram-se a julgar, logo recusaram-se a procurar a justiça. Não foram dignos da função que exercem. Mauro Cezar Pereira tem razão em dizer que, para agir assim, eles são dispensáveis.

É verdade que, se tivessem julgado o caso, e se decidissem por uma punição mais leve, que não acarretaria o rebaixamento, poderiam ferir o direito, e isso também não seria justo. Mas esse cálculo deveria ter sido posto em aguda discussão. Definir e tensionar o direito e a justiça; pesar, avaliar, comparar o evento e a punição; atravessar a aporia, e finalmente decidir. É esse o trabalho de um juiz. Ele deve estar de antemão ciente da natureza impossível da justiça — e enfrentá-la. Por que a justiça é impossível? Porque dois eventos singulares (infrações e punições) nunca serão rigorosamente iguais. Eventos são fenômenos tão complexos que não há justeza (como se diz de uma calça que nos serve perfeitamente) na sua equiparação. A justiça é a matemática impura dos eventos heterogêneos. Ela exige, como escreveu Derrida, “que se calcule o incalculável”. Um homem rouba um supermercado. O que fazer? Cortar-lhe a mão? O princípio do talião é apenas a tentativa de estabelecer uma matemática pura num campo — o da realidade — que só admite um cálculo inexato, uma matemática impura. Portanto é uma aproximação infinita a justiça. O rebaixamento da Portuguesa e a permanência do Fluminense na série A distanciaram-se infinitamente dela.

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