segunda-feira, novembro 04, 2013

Manual de sobrevivência - RICARDO MELO

FOLHA DE SP - 04/11

Quando alguém sugerir que a espécie humana é inviável, acredite. Mas conforme-se: é nela que estamos


Desconfie de quem ataca programas destinados aos pobres. O Bolsa Família mostra que garantir a sobrevivência, no sentido literal, é questão básica. Fora os dividendos políticos da empreitada.

Fique de pé atrás quando autores de tais proezas considerarem a missão cumprida. Depois que o sujeito mata a fome, com razão vai querer comer melhor, cuidar da família, estudar, subir na vida, compartilhar as benesses da tecnologia e do progresso. A meta não é democratizar o SUS, mas socializar o Sírio-Libanês. O governante incapaz de perceber isso está fadado a levar um susto com manchetes e ganhar o troféu Maria Antonieta. Ou achar que tudo se resolve com a sirene da polícia.

Quando um militante enaltecer o caráter democrático do partido dele, pergunte há quanto tempo os integrantes da base se reuniram, quem eles elegeram e como seus dirigentes foram escolhidos. A má notícia: dificilmente algum vai satisfazê-lo. A boa notícia: você não é obrigado a optar por nenhum. Tampouco a votar, desde que pague uma multa simbólica. Recomenda-se ainda virar a página quando políticos do mesmo partido, sabidamente adversários, começam a trocar elogios. Costuma ser o sinal de que vem pela frente uma enxurrada de dossiês.

Caso tenha algo importante a tratar, leve em conta, mas nunca se deixe seduzir pelo posto ou cargo do interlocutor. Há procuradores que, apesar do nome, procuram, procuram, mas dizem que são incapazes de encontrar a pasta certa na hora de investigar roubalheiras em trens e metrôs. Existem ainda consultores que, no passado, contracenaram com uma inflação de 80% ao mês e hoje ganham rios de dinheiro dando lições de moral em economia --sem contar os que ficaram ricos da noite para o dia enquanto baldeavam entre gabinetes brasilienses.

Cuidado com as armadilhas do vernáculo. Antes, patrão era patrão, empregado era empregado. De repente, todos viraram colaboradores. Certo que uns andam de Porsche; outros, a maioria, de Mercedes --este, o busão mesmo. Mas quem liga para isso? Quem sabe um dia você chegue lá, desde que tenha um bom sobrenome ou rale sem parar. Abrir um banco ou uma igreja são alternativas.

Também antigamente, trabalhador era demitido e virava desempregado. Hoje o sujeito descobre que seu posto deixou de ser necessário por motivos de reestruturação, sua função foi descontinuada e ele, veja só, foi premiado com a procura de novos desafios. Só esqueceram de mudar o nome do diabo do fim do mês.

Para ser educado, faça cara de sério quando políticos, empresários ou frequentadores de colunas sociais fingirem espanto com fraudes de fiscais imobiliários ou empreiteiras. Não esqueço até hoje do lamento unânime de gente poderosa quando Fernando Collor, em boa hora, foi enxotado do Planalto. "Dez por cento, tudo bem, mas o cara tá querendo trinta, quarenta! Assim não dá."

Até por isso, desconfie sempre de aumento de impostos à esquerda e à direita. Óbvio que, no capitalismo, ninguém é tonto para apostar em alguma paz social sem que os que ganhem mais paguem mais. Até Warren Buffet, ele mesmo, o bilionário, defendeu taxação maior para os ricos. O problema é saber para onde está indo a receita do imposto. E, pelo menos no Brasil, o habitual é que ela acabe no bolso de uns poucos --nunca no nosso.

Quando alguém sugerir que a espécie humana é inviável, acredite. Mas, a seu gosto, conforme-se com o fato: é nela que estamos. Viver do próprio trabalho e lutar contra a injustiça social talvez amenize o dilema.

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