sexta-feira, novembro 22, 2013

Fukushima e Nescau geladinho - MICHEL LAUB

FOLHA DE SP - 22/11

Mesmo que existam fome, pobreza, dor e violência, o instinto nos presenteou com o otimismo da ação


Há uns 15 anos era mais fácil manter a privacidade. O trânsito era melhor. Fukushima era só o nome de uma usina nuclear no Japão. Também era possível telefonar a um serviço qualquer de atendimento, de bancos a operadoras de cabo e telefonia, e não ser moído existencialmente por pedidos de autenticação, prolixidade dos menus e analfabetismo dos atendentes.

A tecnologia é o uso que se faz dela, e seus efeitos são experimentados apenas quando transcendem a pureza dos laboratórios. A pergunta é se a melhora que a ciência traz para o cotidiano, projetando nossa percepção do futuro, é uma constante. Num dos ensaios de "Os Limites do Possível" (Portfolio-Penguin), André Lara Resende toca no tema ao fazer um apanhado das teorias econômicas, históricas e culturais que justificam a noção moderna de otimismo.

Citando autores como Matt Ridley, John Stuart Mill, John Gray e Stefan Zweig, o texto reflete sobre o que há de concreto ou apenas ideológico nessas correntes de pensamento. No sistema econômico de hoje, ser otimista ajuda no sucesso financeiro. Ninguém cria um produto se não acreditar, às vezes baseado apenas em intuição, que aquilo se tornará necessário e valioso.

O problema, escreve André Lara, é que os resultados dessas iniciativas nem sempre são de interesse coletivo. O mercado não serve para regular o uso que fazemos do que não tem preço individual e imediato, como os recursos naturais cuja escassez põe o planeta em risco. O mundo terminará em desastre se continuar na marcha atual. Um otimista como Ridley faria o contraponto dizendo que a tecnologia cria novos problemas e novas soluções.

Como sempre em debates do gênero, há argumentos para todos os lados. O cristianismo, com sua narrativa de redenção final, opõe-se à noção amedrontadora de que a história não tem sentido. Já o positivismo substitui o pensamento mágico por outro mito: o de que o progresso mudaria o fato de sermos "apenas mais um animal sobre a Terra". A religião sozinha deu na Inquisição e nas teocracias islâmicas. A ciência era muito prezada nos regimes de Hitler e Stálin.

Em termos menos extremos, não dá para endossar acriticamente o culto à razão surgido com o Iluminismo. Isso significaria ignorar o efeito colateral desumanizante de avanços tecnológicos como os da Revolução Industrial, sem falar nas guerras cujo número massivo de vítimas se deve à maior eficiência das armas.

Ao mesmo tempo, se aplicado de forma literal, o romantismo derivado que atribui ao meio ambiente uma pureza oposta à perversão da vida moderna impediria a existência de antibióticos, anestesia e --para enfrentar o aquecimento global-- ar-condicionado e Nescau geladinho.

Talvez a resposta do dilema esteja na esfera do indivíduo, cujos humores não são determinados apenas por história e cultura. Dois fatores que pesam aí, entre outros: sexualidade e equilíbrio químico que determina ou não ansiedade e depressão.

De minha parte, tenho implicância com o catastrofismo e sua presunção de superioridade intelectual (porque nos sentimos mais informados que os tolos crédulos) e moral (porque nos sentimos menos cúmplices das injustiças). Mesmo que existam fome, pobreza, dor e violência, sem falar na consciência do fim que nos acompanha desde sempre (em paralelo com a expectativa de vida que só aumenta), o instinto nos presenteou com o otimismo da ação.

Ou seja, ir em frente sem nos deixar intimidar ou paralisar pelo horror indiferente do universo. O que não significa forçar a barra argumentativa para transformá-lo em algo positivo. "É preciso ter esperança", escreve André Lara, "sem procurar razões para ter esperança".

Aceitar o paradoxo entre o impulso de sobrevivência, que é cândido e irracional, e a razão sombria, que nos informa o tempo todo sobre o vazio de tudo, é um bom meio-termo para quem não quer ter os passos guiados pelo Coelho da Páscoa --ponha ele os ovos ideológicos que puser.

O erro, conclui o autor do ensaio, seria misturar os conceitos: "Quando pretendemos (...) explicar o otimismo pela razão, traímos a razão. Quando a esperança se torna arrogante, traímos a esperança".

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