quinta-feira, novembro 07, 2013

Cara Fernanda Torres - MARIO SERGIO CONTI

O GLOBO - 07/11

‘Fim’, estreia de Fernanda Torres na literatura, revela uma romancista pronta e de proa


Estas mal digitadas são para dizer que o seu “Fim”, que chegará às livrarias nos próximos dias, é uma estreia extraordinária na difícil arte do romance.

Você já escreveu reportagens, artigos e roteiros, encenou uma peça de sua autoria, publica crônicas e colunas na imprensa. Faz isso com inteligência e empenho, desenvolveu um estilo singular em cada gênero. Como é inevitável na produção aos pedaços, ditada pela cadência industrial ou por encomendas, os resultados foram melhores aqui (artigos e colunas) e ali nem tanto (a peça). Mas em todos você vem afiando o gume da escrita. Destaca-se no panorama da imprensa pela ginga de aventura e cálculo. Ainda assim, “Fim” é um espanto.

Porque ele revela uma romancista pronta e de proa. O livro parte da agonia de cinco pobres diabos para flagrar o acafajestamento derradeiro da fauna de um bairro, Copacabana. A princesinha do mar é agora perua patusca, comprime as pelancas num legging de oncinha e vai à caça na academia. Não há nostalgia nem condescendência, muito menos discurseira escandalizada, cinismo, julgamento. É na trama, na prosa veloz, na voz dos personagens, na recusa ao lírico e na dicção sarcástica que Copa se dá a ver.

As fronteiras de “Fim” são o Posto Nove em Ipanema e uma garçonnière na Glória. Para um lado fica a jactância dos corpos malhados, o alarido da pederastia na Farme, o impacto dúbio de costumes supostamente liberados. Para o outro, um matadouro clandestino no velho estilo, porres e surubas que servem de corolário para o fiasco existencial. Em ambos, pó, fumo, lança, Viagra, manguaça, solidão e desespero. Um dos temas do romance, a bancarrota do hedonismo, aponta para o terceiro vértice geográfico do romance: Botafogo, o cemitério de São João Batista, a morte que tudo finda.

Como a devassidão de Álvaro, Silvio, Ribeiro, Neto e Ciro é narrada com ânimo sardônico, “Fim” é engraçado. Ele pende no começo para a comédia de costumes, que é reforçada pela linguagem pândega. Mas é uma impressão primeira e passageira. O romance avança com impiedade e ganha abrangência. O resultado não tem nada de entretenimento ou de alegoria caricatural. É uma obra de arte corrosiva, emparedada.

O universo de “Fim” é o de velhos de classe média, no qual o trabalho e a política inexistem como matéria de reflexão e saudade. O cotidiano é de consultórios, planos de saúde, farmácias, aposentadoria, hospitais, males do corpo. E também de males da alma, amor extinto, ressentimentos vários, afã pelo prolongamento da esbórnia, desamparo. Os dons reservados à velhice não são a sabedoria e a paz. Corpo e alma tombam cada qual para um lado na paisagem árida. Um dos seus bons achados foi contrapor o grave peso do enredo à leveza debochada da escrita. O procedimento sardônico é anti-ilusório, solapa o realismo ao qual o romance se filia.

A experiência de atriz lhe deve ter sido valiosa ao escrever o livro. A observação pontiaguda, a atenção a detalhes, a composição concreta das cenas, tudo isso propiciou a criação de personagens que transcendem os tipos pitorescos. Os integrantes da turma de Copa, na sua desagregação acelerada, preservam modos individuais, não são marionetes. É por meio daquilo que fazem, dos seus monólogos e diálogos, que a ficção é construída e a realidade, reinventada.

A história está rarefeita em “Fim”. A menção a eventos brasileiros coletivos é feita de passagem. Em dois momentos cruciais, contudo, a história dá sentido ao romance. Na primeira frase do livro, Álvaro amaldiçoa: “Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito d. Manuel I e sua corja”. Ele execra o passado colonial e ressalta a sua continuidade no chão mesmo de Copacabana, no solo precário do presente.

O segundo momento de irrupção da história na ficção está no fim de “Fim”. Nessas páginas é contado o destino do padre Graça. Ele enterrou a batina, abandonou o Rio e peregrinou ao léu pela nação por mais de um ano. Acabou num fim de mundo da Amazônia, casou com uma índia e combate “um demônio chamado civilização”. Padre Graça é um tanto padre Fernando, o protagonista de “Quarup”, romance de Antônio Callado que se passa nos dez anos que vão do suicídio de Vargas ao golpe militar. Na adaptação do livro para o cinema, você fez a personagem principal, Francisca, e o arremate de “Fim” revisita o romance de Callado. Quase no cinquentenário da ditadura, ele atualiza padre Fernando na desgraça do padre Graça. Os impasses da história permanecem; o mundo de Francisca é o nosso.

Você vem de uma família de atores, Nanda, é a sua flor firme e bela. Tem a profissão inscrita no nome, no sobrenome, no sangue. Mas a arte libertária da literatura é só sua. Que “Fim” seja o seu começo.

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