quinta-feira, novembro 07, 2013

A reinvenção do passado - FÁBIO GIAMBIAGI

Valor Econômico - 07/11

A mudança retroativa do indexador das dívidas é um novo prego no caixão da combalida credibilidade do Brasil


Sou obrigado a postergar o tratamento dos temas demográficos que vinha desenvolvendo para tratar da mudança retroativa (sic) do indexador das dívidas subnacionais e o consequente aumento do endividamento federal, para perdoar quase R$ 25 bilhões de dívida da prefeitura mais rica do país. Na Guerra Fria, quando os cientistas soviéticos se encontravam entre os melhores do mundo e em circunstâncias em que o herói de um tempo podia virar traidor depois, um deles declarou que "in my country, the most difficult thing to foresee is the History". Com o mesmo espírito mordaz, Pedro Malan diria a sua famosa frase de que "no Brasil, até o passado é incerto".

Agora estamos diante de nova tentativa de mudar o passado. Uma das lendas dos primórdios de nossas finanças públicas foi Sílvio Rodrigues Alves, que municiava a equipe econômica de dados nos anos 80 e a quem tive a honra de conhecer no começo da minha carreira. Um dia perguntei a ele: "Se hoje, com a internet divulgando tudo, conduzir a economia já é difícil, como vocês faziam na época do Simonsen, quando a disponibilidade de informações era uma fração ínfima dos números de que dispomos hoje?", ao que ele respondeu, fazendo o gesto de molhar um dedo na língua e levantá-lo para sentir a direção do vento.

Desde aqueles anos caóticos, o país se beneficiou de muitos avanços em matéria de ordenamento das contas. Resumidamente, cabe citar a melhora das estatísticas, a criação da STN, o fim da conta movimento, a extinção do orçamento monetário, a eliminação das funções de fomento do Banco Central, a exigência de autorização legislativa prévia para todas as despesas, a estabilização de 1994, o ajuste de 1999, a Lei de Responsabilidade Fiscal, etc. Uma geração de funcionários públicos dedicou 15 a 20 anos de sua carreira a esses aprimoramentos institucionais.

Infelizmente, esse esforço de duas décadas vem sendo minado nos últimos anos. A combinação de redução do superávit primário, descumprimento de metas, utilização de descontos na contabilidade fiscal, abuso da contabilidade criativa e impropriedades conceituais como a criação de um Fundo Soberano de acumulação de ativos num país com uma dívida bruta de 60 % do PIB, afetou gravemente nossa reputação. Nesse contexto, a mudança retroativa do indexador das dívidas é um novo prego no caixão da nossa já combalida credibilidade.

O Artigo 35 da Lei de Responsabilidade Fiscal diz que "é vedada a realização de operações de crédito entre um ente da Federação... e outro... ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente". Não sou formado em direito, mas sei ler português. Com esse arranjo ardiloso, a União aumentará a sua dívida e a prefeitura de São Paulo diminuirá a dela, no valor de aproximadamente R$ 25 bilhões. Para que? Para beneficiar a prefeitura mais rica do país. Por que? Porque o prefeito prometeu o que não tem recursos para fazer. Como? Revogando o passado e mudando o indexador "para trás". Se isso não é refinanciamento, então estamos na República da Novilíngua.

Isso equivale a que um inquilino diga para o proprietário que "ao longo dos últimos 10 anos, paguei uma média de R$ 3 mil por mês de aluguel. Vou mudar e transformar isso em R$ 1.400 por mês. Portanto, você me deve R$ 1.600 por mês que paguei a mais durante 120 meses. Me dá R$ 192 mil". Trata-se de uma agressão à lógica, de uma aberração formal e de um absurdo econômico. A base do progresso é que o passado é um dado. Se ele pode mudar, a insegurança jurídica que isso cria será um fator de perturbação de qualquer cálculo econômico. Quem se aventurar a enterrar seu capital numa concessão de 30 anos levará em conta tal fato na sua avaliação de risco.

Contabilidade criativa, reindexação retroativa, possível criação de 180 municípios, orçamento impositivo, aumento do déficit etc. O quadro fiscal se deteriora a olho nu. Só não vê quem não quer. Que depois o Brasil não se queixe se for rebaixado pela S&P e pela Moody's.

O Ministro da Fazenda disse para Míriam Leitão que a razão de ser da mudança proposta é que o problema é que "São Paulo paga e a dívida não diminui". Ganha uma fotografia autografada pela Velhinha de Taubaté quem acreditar que o mesmo argumento seria utilizado se o prefeito fosse de outro partido.

Mudar o indexador retroativamente é algo que lembra o cronista Ivan Lessa, que no passado, envergonhado do país (ao qual chamava de "Bananão") desistiu do Brasil e optou pelo auto-exílio. A impressão compartilhada com muitos amigos é que a tarefa de virarmos um país maduro vai ficar para nossos filhos. É triste. Em 30 anos de profissão, aprendi que o pêndulo da História vai e volta. Daqui a uma ou duas décadas, outras pessoas recolocarão as coisas no lugar. O problema é para os que estamos no segundo tempo da existência, que vivemos a desordem econômica pré-1994 e hoje vemos as bases da estabilidade serem corroídas gradualmente, nesse processo. Como se diz na língua de Cervantes, "se nos va la vida".

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