O GLOBO - 02/11
‘Vesgo, beiçudo (...) além de ser gago e totalmente incapaz de expressar-se.’ O gênio tão amado não podia ser mais feio
O mais popular artista plástico inglês chama-se apenas Banksy, um grafiteiro. Nos últimos dias, os jornais de lá não pararam de falar sobre sua primeira passagem por Nova York, rendendo até editorial do “New York Times”, o principal jornal do país. No Brasil, que eu saiba, só Elio Gaspari escreveu sobre ele.
Banksy não é um grafiteiro como Basquiat ou Blek le Rat, em busca de novas formas visuais que os museus ainda recusam como arte. Ele nem tem o talento transgressor desses dois e de outros como os paulistas Osgemeos. Muito menos o visionarismo de Andy Warhol, que inventou uma cultura com suas Marylins, sopas e bananas.
O artista inglês grafita com spray, sem muitas cores, utilizando técnica de gravura oriental. Seus temas dependem de onde grafita. Exemplo típico é o grafite de um homem triste, mão no bolso, a outra com um buquê cujas flores despencam, a esperar em vão, encostado à real porta fechada de uma casa noturna de Manhattan. Sua última façanha foi comprar um quadro convencional de paisagem e pintar sobre ele um oficial nazista a contemplá-la, denominando a obra “A banalidade da banalidade do mal”. Rendeu uma fortuna num leilão beneficente.
Num domingo de outubro, Banksy expôs seus quadros numa banca do Central Park, em Nova York, sem anunciar quem era e do que se tratava. Em qualquer galeria, cada quadro daqueles valeria uns 50 mil dólares, mas ele vendia por apenas 60 dólares a peça. Só três passantes compraram os quadros expostos, sem se dar conta do real valor do que estavam comprando.
Não acho que isso seja prova de ignorância dos novaiorquinos, nem da desimportância da obra de Banksy. Quando Manet, pai do impressionismo, exibiu seu famoso “Olimpia” no Salão de Artes de Paris, só faltou ser apedrejado pela imprensa, pelos estudantes de belas artes e pelas senhoras de família que cobriram com lençóis o nu de seu personagem. O mesmo aconteceu com Pablo Picasso, mestre do cubismo e das vanguardas do século 20. Em 1937, sua “Mulher que chora” chegou a ser chamada de “a coisa mais horrorosa já pintada no mundo”.
A beleza não é um padrão uniforme estabelecido na eternidade. Mesmo na tradição grega, que nós adotamos na cultura ocidental, não era sempre assim. Segundo Umberto Eco, “temos uma imagem estereotipada do mundo grego, nascida das idealizações criadas no período neoclássico (...) o neoclassicismo idealizou os antigos, esquecendo que eles nos legaram também imagens de seres que eram a própria encarnação da desproporção, a negação de qualquer cânone”.
Esopo, por exemplo, o grande fabulista moral da antiguidade, cujo prestígio atravessou os séculos, sempre foi pintado, de artistas anônimos a Velázquez, como está descrito em texto do primeiro século: “Repelente, nojento, barrigudo, com a cabeça pontiaguda, atarracado, corcunda, braços curtos, vesgo, beiçudo (...) além de ser gago e totalmente incapaz de expressar-se.” O gênio tão amado não podia ser mais feio.
O herói é sempre aquele que ama. Ou só é belo quando ama. Quando, em 1933, no filme de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, King Kong se apaixona por Fay Wray até se deixar fuzilar no alto do Empire State, os monstros ficaram livres para amar. A beleza é uma convenção, muitas vezes ditada pelas necessidades do tempo e do lugar. Para os moradores do planeta Júpiter, o gás escuro e pesado que envolve sua atmosfera deve ser, de tão belo e indispensável à sua vida, uma prova de que Deus existe.
Há pouco, na novela das 9, o enfermeiro Daniel se encantou pela enfermeira Perséfone, moça adorável, porém, mais gorda do que o suportável pelos amigos do noivo. Como a beleza é uma convenção, nada impede que amanhã as mulheres gordas como Perséfone voltem a parecer belas, como queriam o barroco clássico, o teatro do século 19 e o Botero contemporâneo. A beleza é o resultado de um acordo social ou de uma intensa propaganda de quem se interessar por ela. O poder e o dinheiro ajudam a promover o gosto que ainda não é o nosso.
Portanto, minha senhora, se o espelho indelicado acusá-la de gordinha, denunciando-lhe umas gordurazinhas a mais, empenhe-se em dieta e ginástica, ou espere paciente pela próxima onda da moda. Quem sabe, descobriremos então que o enfermeiro Daniel era um homem à frente de seu tempo, um homem de vanguarda.
Fico assombrado com a euforia com que se anuncia e se comenta a derrocada de Eike Batista. Claro, se seus negócios não deram certo, ele tem mesmo que pedir a tal recuperação judicial e ressarcir a quem deve, sobretudo aos cofres públicos. Não sou muito fã do capitalismo brasileiro, acho que podíamos construir uma democracia mais socialmente justa no Brasil. Mas, se o regime do país é o capitalismo, um capitalista de respeito tem mais é que tentar ganhar dinheiro.
Porém, Eike não ficou só no sonho infantil de ser o mais rico do mundo. Com sua fortuna, colaborou com a sociedade criando o generoso complexo de Porto do Açu, despoluindo a Lagoa Rodrigo de Freitas, financiando as UPPs, patrocinando desportistas, dando recursos para filmes como “5XFavela, agora por nós mesmos” (concebido, escrito e realizado por jovens cineastas moradores de favelas cariocas, que não foi beneficiado por nenhum edital de empresa estatal e não seria feito se não fosse o empresário). Quantos milionários brasileiros se comportam assim?
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