domingo, outubro 06, 2013

O Prêmio Nobel de Paz Interior - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 06/10

O governo queria acessar as mensagens criptografadas de todos os usuários da empresa. Ao contrário dos gigantes da internet, que abriram suas portas para dar acesso à NSA, Ladar Levison disse não



Semana tensa para quem está em casa à espera de ter o nome anunciado como vencedor de um dos Prêmios Nobel 2013. Amanhã se conhecerá o laureado de Medicina (ou Fisiologia). Na terça, o de Física. Na quarta, Química. E na sexta, o sempre mais estelar Nobel da Paz, único a lidar com algo de fácil compreensão para qualquer ser humano.

Só que, na prática, sabe-se, a paz é tudo menos um conceito fácil, muito menos universal. E os critérios da Comissão de Seleção são tão elásticos quanto as variações do conceito. Meio mundo não perdoa até hoje a omissão de Mahatma Gandhi da lista dos laureados, apesar de ele ter sido indicado cinco vezes consecutivas — a última delas poucos dias antes de ser assassinado. Outros podem estranhar que Adolf Hitler e Josef Stalin puderam, à sua época, constar da lista de indicados.

É que pelas regras da Fundação Alfred Nobel no rol de pessoas autorizadas a indicar candidatos caberia até mesmo o deputado federal Natan Donadon. Indicações podem ser feitas por membros do Congresso e do Governo de qualquer país, membros do Judiciário de Cortes Internacionais, reitores universitários, acadêmicos de entidades que promovem a paz ou de institutos de relações internacionais, detentores do Nobel, membros e ex-membros e ex-conselheiros do Comitê.

Traduzindo os critérios aos dias de hoje, caso um ministro do governo sírio sucumbisse ao ímpeto de indicar o líder Bashar al-Assad para desviar dele a acusação de uso de armas químicas contra a população, poderia fazê-lo.

Para a edição deste ano, o Nobel tem uma candidata de ouro, pois é merecedora de admiração universal: a adolescente Malala Yousufzai, baleada na cabeça pelo Talibã em 2009 ao teimar em frequentar a escola no Paquistão. Difícil imaginar que o Comitê deixe passar oportunidade tão rara de fazer reinar a paz em torno de uma escolha.

Bem mais polêmica promete ser a edição de 2014, que teve uma primeira indicação oficializada já esta semana: a do presidente russo Vladimir Putin, sempre certeiro na habilidade de cronometrar oportunidades. A indicação foi apresentada por uma entidade que se intitula Academia Internacional de Unidade Espiritual entre Nações do Mundo, com sede em Moscou, e representa uma dupla estocada no presidente americano Barack Obama. Além de justificar a escolha de Putin como premio a seu êxito “em transformar a ameaça de ataque militar dos Estados Unidos à Síria numa negociação de paz internacional”, deixa subentendido que o líder russo já fez mais do que Obama, laureado em 2009 sem ter feito nada além de chegar à Casa Branca como primeiro presidente negro.

Uma segunda candidatura em fase de construção roubaria a cena em 2014, se concretizada: a do analista de sistemas fugido da NSA, Edward Snowden. Snowden é um dos três finalistas ao Prêmio Sakharov de Direitos Humanos 2013, cujo vencedor será anunciado quinta-feira. Seus dois concorrentes são a menina Malala, franca favorita, e um grupo de dissidentes de Bielorussia presos em 2010.

O mero fato de Snowden ter chegado a finalista, como “lançador de um alerta mundial que arriscou a sua liberdade para ajudar a proteger a nossa”, indica o quanto a sua biografia está sendo reescrita com o passar do tempo. O Prêmio Sakharov foi criado em 1988 pelo Parlamento Europeu em homenagem ao cientista e dissidente soviético de mesmo nome, não para premiar a paz, mas a liberdade de pensamento.

Na mesma semana de expectativa às nobres honrarias uma curta notícia mais terrena por pouco não passa despercebida. Tem por protagonista involuntário um candidato ao Prêmio Nobre de Paz Interior — enfrentou gente graúda para poder dormir tranquilo.

Ele se chama Ladar Levison, é cidadão americano e em maio último encontrou o cartão de visitas de um agente do FBI embaixo da porta ao voltar para sua casa, em Dallas, no estado do Texas. Ao longo dos quatro meses seguintes defendeu como pode a Lavabit, sua pequena porém conceituada empresa de criptografia, das exigências de quebra de sigilo apresentadas pelos agentes da lei. O governo queria ter acesso à conta de e-mail criptografada de Edward Snowden, usuário da Lavabit, o que lhe era facultado pela legislação de exceção pós o atentado de 11 de setembro de 2001. Solicitações semelhantes já haviam sido feitas anteriormente envolvendo outros suspeitos, como um pedófilo, e Levison sempre as atendera.

Desta vez, contudo, os agentes exigiam muito mais. Queriam as ferramentas necessárias para acessar as mensagens criptografadas de todos os usuários da empresa. Àquela altura, já fora divulgado que Snowden usava o e-mail da Lavabit como garantia de confidencialidade e a clientela da firma tinha saltado de 40 mil para mais de 400 mil usuários.

Só que, ao contrário dos gigantes da internet que abriram suas portas para dar acesso à NSA, Levison disse não. “Ninguém precisa grampear uma cidade inteira para grampear o telefone de um só cara”, comparou ele em entrevista ao “New York Times”. Passou a usar de subterfúgios para não entregar o segredo.

Até que em agosto, esgotados todos os recursos, recebeu ordem judicial para entregar os códigos sob pena de uma multa diária de U$ 5 mil e percebeu-se sem saída. Antes de cumprir a ordem, porém, alertou todos os seus usuários e fechou a empresa que criara dez anos antes tornando de pouca serventia os códigos solicitados.

Uma campanha de arrecadação de fundos para ajudar nas despesas legais desse empresário de 32 anos, saudado como herói da internet, arrecadou 24 mil dólares no dia do lançamento. Pode ser menos do que o Nobel da Paz (1,2 milhão de dólares) e inferior ao Sakharov (50 mil euros) . Mas também merece ser aplaudido de pé.

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