quinta-feira, outubro 31, 2013

Bolsa Família, sem pai nem mãe - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 31/10


Programa federal surgiu numa rixa 'conservadora' e foi adotado com desconfiança pelo PT


NUMA VIDA PASSADA, o Bolsa Família foi um filhote da ira de Antônio Carlos Magalhães (ACM) contra o governo de FHC, na lonjura de 1999.

No presente não menos avacalhado do Brasil, a autonomia formal do Banco Central pode ser um rebento do desejo de Renan Calheiros de arrumar um ministério para um senador amigo.

A primeira fonte de financiamento segura para programas de renda mínima em escala considerável surgiu de uma campanha de ACM. O dinheiro para o Bolsa-Escola veio daí --e não era pouco.

Aliás, afora uns políticos petistas "moderados", pesquisadores universitários, economistas "neoliberais" e propagandistas do Banco Mundial, pouco se falava no assunto no país.

Calheiros, uma espécie de candidato a ACM de Alagoas, até ontem ameaçava votar um projeto que torna o Banco Central independente de palpites e pressões do governo, dando mandato para sua direção, coisa que causa horror a Dilma Rousseff. Como a presidente prometeu doar a sesmaria ministerial para o PMDB, parece que a lei da autonomia do BC fica para o ano que vem.

A gente se diverte: parte da nossa "modernidade" é filha da vingança do coronel. Por "modernidade" querem se dizer itens da já velhusca "primeira geração de reformas" liberais, coisa dos anos 1990 (independência do BC e programas "focados", limitados, de distribuição de renda).

ACM (1927-2007) foi um dos coronéis mais longevos e espertos, esteio da ditadura militar, governador da Bahia, figura de proa da Arena, do PDS e do PFL, presidente do Senado, ministro de Sarney.

Em 1999, começou a esculhambar o governo do aliado FHC, convertendo-se à causa dos pobres, por assim dizer. Lançou o projeto de um fundo de combate à pobreza, que financiaria alguma espécie de renda mínima para miseráveis. Queria salário mínimo equivalente a US$ 100. Etc.

Como disse um dia seu ex-aliado Fernando Collor, ACM a princípio deixou a esquerda perplexa e a direita indignada. Muita gente também fazia troça da coisa: ACM, figura da reação e do mandonismo, querendo cobrar mais imposto para distribui-lo a pobres. A elite quase toda e seus lobbies e associações eram contra a ideia.

O que se chamava então "equipe econômica" de FHC quase teve um troço com o plano de ACM. Administrava um país quase quebrado; sim, no fim das contas, o pessoal não ligava mesmo muito para pobres.

Para grande diversão da plateia, ACM dizia então que Pedro Malan jamais vira um pobre. Malan era o ministro da Fazenda, síntese das virtudes e dos vícios do tucanismo econômico. Justiça seja feita, apesar de todos os pesares, Malan tentava desesperadamente evitar que o Brasil estourasse suas contas e quebrasse de novo.

O PT a princípio desconfiou: "Não vamos combater a pobreza com o assistencialismo do ACM''. Mais tarde, alguns de seus senadores ajudariam a aprovar o fundo da pobreza, tais como Marina Silva, que de fato ajudou a melhorar o projeto de emenda constitucional, enfim aprovado no ano 2000. Por espírito de porco e desejo compartilhado de avacalhar FHC, petistas passaram a falar bem de ACM.

Não, ACM não foi o "pai" do Bolsa Família. Nem FHC e tucanos. Nem Lula. A gente hoje só veio para confundir, não para explicar.

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