sábado, outubro 12, 2013

Algo de podre - ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR

FOLHA DE SP - 12/10

Quando uma novata assume o cargo mais importante do país, os princípios são logo esquecidos


Em uma sequência especialmente nauseante, a chefe decide que um de seus colaboradores mais íntegros precisa ser enquadrado. Andava meio rebelde, contestava as linhas de comando. Seria bom tomar um susto.

"O que temos contra ele?", pergunta a mulher ao marqueteiro de quem não desgruda um segundo.

"Quase nada", diz o estrategista. Só uma fofoca: que, apesar de político verde, ele coleciona carros antigos, do tipo de que bebe dez vezes mais gasolina que os atuais. Até importou um Cadillac anos 50 de Cuba, onde as banheiras ainda rodam.

"Vaze isso para a imprensa", ordena a chefe.

As consequências são devastadoras. O fato de a notícia não ser exatamente nova, de já ter saído antes, pouco importa. O colaborador, homem reto, tem a vida pessoal e profissional destruída pelo pecadilho do Cadillac. E por obra da chefe a quem servia tão fielmente.

A chefe é Birgitte Nyborg, primeira-ministra fictícia da Dinamarca, personagem central de uma série de TV fascinante, chamada "Borgen". O subordinado que ela apunhalou é um de seus ministros, Amir Dwian, do Partido Verde.

Em 2012, "Borgen", produção da emissora dinamarquesa DR, fez muito sucesso na BBC de Londres. Mesmo com legendas, coisa a que o público de fala inglesa está pouco acostumado.

Também chamou a atenção da crítica americana, quando foi exibida em canais alternativos por lá. Chegou a passar no Brasil, no cabo, mas quase ninguém percebeu.

A boa notícia é que as duas primeiras temporadas saíram em DVD nos EUA. Ficou fácil achar na internet.

"Borgen" gira em torno de Birgitte Nyborg, interpretada pela magnética Sidse Babett Knudsen, 45, cujo sorriso caloroso é capaz de derreter as mais renitentes geleiras.

Nyborg comanda um partido pequeno, o Moderado, que apoia causas fofas e politicamente corretas: condenam leis duras de imigração, querem a saúde cada vez mais pública, defendem o estado de bem-estar social típico da Escandinávia, pretendem preservar a natureza.

A trama começa em uma crise do regime parlamentar. Nenhum dos dois maiores partidos, o Trabalhista e o Conservador, consegue formar um gabinete. Entregar o posto de primeira-ministra à novata Birgitte Nyborg, líder dos moderados, surge como solução conciliadora.

Se "Borgen" fosse uma série tradicional, mais próxima do padrão americano, mostraria o embate da militante íntegra conta o pântano da política tradicional.

Mas não é o que se vê. Um pouco desajeitada no começo, Birgitte rapidamente pega o jeito do cargo e faz aquilo que políticos fazem: trai companheiros, esquece quase todos os princípios, guia-se pela obsessão de manter o poder a qualquer custo. Tem seus dramas de consciência, mas são poucos e passam logo.

A seu lado, inseparável, o marqueteiro Kasper Juul. Figura misteriosa, ele é ex-namorado da principal apresentadora do maior canal da Dinamarca, a jovem, combativa e estonteante Katrine Fønsmark. "Ex" talvez não seja a melhor definição, já que Kasper e Katrine vivem uma relação de idas e vindas.

Birgitte, a primeira-ministra, tem marido e dois filhos (um menino de oito anos e uma menina de 13). O marido é um executivo importante, que, muito escandinavamente, vinha passando os últimos anos em casa, a cuidar das crianças, para que a mulher se dedicasse à política. Não demora muito para tudo isso ruir. A vida pessoal de Birgitte se transforma em pesadelo.

O marqueteiro Kasper --que talvez nem se chame Kasper-- esconde o passado "white trash" e um histórico de abuso doméstico quando criança. Foi justamente por ser tão envolto em segredos que a deusa Katrine Fønsmark o abandonou pela primeira vez.

Katrine, mesmo bela e famosa, vive só, em um apartamento bagunçado de estudante. De vez em quando, se entrega ao primeiro desclassificado que vê pela frente. De vez em quando volta para Kasper.

Birgitte, Kasper e Katrine são os três pilares que sustentam a narrativa densa e cadenciada de "Borgen".

A luz é sempre angulosa (estamos perto do polo Norte, afinal). Vive-se de modo impensável para brasileiros --a primeira-ministra continua morando em sua casa de classe média, reuniões ministeriais só têm 16 pessoas (incluindo assessores), os políticos não roubam e muitos deputados vão trabalhar de bicicleta. Os diálogos fluem com naturalidade, sem a concisão forçada de tantas séries americanas.

"Borgen", e a produção dinamarquesa em geral, não são televisão como a conhecemos. São uma outra TV. Preste atenção.


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