sábado, outubro 05, 2013

A democracia e suas brechas - ALBERTO DINES

GAZETA DO POVO - PR - 05/10

“É a pior forma de governo, salvo todas as demais.” Quem ofereceu esse diagnóstico sobre o sistema democrático foi um campeão no combate contra o nazifascismo, a mais infame tirania: Winston Churchill, em 11 de novembro de 1947, há quase 66 anos.

Os seis ministros do Tribunal Superior Eleitoral que vetaram a criação de mais um partido, a Rede Sustentabilidade, cumpriram estritamente o ritual da legalidade: a ex-ministra e ex-senadora Marina Silva não conseguiu o número mínimo de assinaturas exigido pelos estatutos eleitorais. Faltaram 50 mil. A letra da lei não pode ser desrespeitada, esta é uma cláusula pétrea do Estado de Direito.

Os radicais do Partido Republicano que controlam a Câmara dos Deputados dos EUA têm o direito de impedir o aumento do teto da dívida pública, de exigir a revogação do plano de saúde do presidente Obama, de levar o país ao calote e a uma recessão ainda maior que a de 2008. Foram eleitos num pleito livre, controlam uma das câmaras legislativas e o equilíbrio entre os poderes é um dos pilares do sistema representativo.

E, no entanto, estes dramáticos episódios exibem de forma clara e perturbadora as penosas contradições da democracia quando a obediência às leis nas instâncias máximas passa ao largo das ilegalidades e aberrações instaladas em sua base.

O símbolo da justiça deveria mudar: mais apropriado substituí-lo pela jarra de água para lavar as mãos. Os meritíssimos do TSE alegam que não cabe a eles verificar a validade das assinaturas; o questionamento dos cartórios eleitorais deve ser feito de baixo para cima – pelos líderes da agremiação que pretendem fundar ou pelos eleitores cujas assinaturas foram embargadas. Correto: porém, o mesmo sistema cartorial e a máquina burocrática onde se aninha acabam de aprovar, sem restrições, em uma incrível coincidência, a criação de dois partidos, o Pros e o Solidariedade, um deles ostensivamente pró-governo, o outro intransigentemente solidário com o poder.

Uma minoria fanática, irresponsável, pode levar uma poderosa democracia como a americana à beira do abismo. Os radicais do Tea Party abominam o Estado, endeusam o mercado, acreditam que só ele é capaz de reparar injustiças. A maioria dos despossuídos e remediados sabe que não é verdade, sujeitam-se. A chantagem que a direita está fazendo com o presidente Obama ao exigir que abra mão da implantação do seu plano de saúde em troca da ampliação do teto da dívida é uma das maiores imoralidades que a democracia já ofereceu.

André Malraux, brilhante intelectual, combatente antifascista em diversas frentes e ministro da Cultura da França, na mesma época também debruçou-se sobre os sistemas políticos: “Vi as democracias intervirem contra quase tudo. Menos contra os fascismos”. Ele sabia o que dizia: viu o fascismo triunfar na Espanha e entregar a França ao facínora Hitler.

A derrota de Marina Silva e de seus “sonháticos” diante dos pragmáticos não é propriamente ideológica. Candidata à Presidência pela Rede, a ambientalista evangélica – tão intransigente em matéria de ética e coerência que não consegue adaptar-se ao jogo político – teria condições de enfrentar a herdeira do imbatível Lula da Silva.

A democracia dará a última palavra. Se não agora, para 2014, certamente em 2018. Churchill e Malraux, nos seus respectivos ceticismos, não levaram em conta a inexorabilidade do calendário eleitoral.

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