sábado, setembro 21, 2013

Santo Antônio também foi gordo - MARLETH SILVA

GAZETA DO POVO - PR - 21/09

Alguns leitores ficaram tocados com a imagem de Nelson Rodrigues choramingando a falta de atenção de seu amigo Otto Lara Resende, que não o procurava, não telefonava nem escrevia. Contei na semana passada a historinha, que está em um livro da Clarice Lispector. Para quem acha que senhores de ar austero e currículo respeitável não choramingam, aqui vai mais uma. Alceu Amoroso Lima, uma sumidade da vida intelectual brasileira do século 20, em carta à sua filha Maria Teresa, no dia 11 de janeiro de 1969, escreve: “Tenho mágoa de ser gordo”. Aos 76 anos, o consolo de Amoroso Lima era saber que Santo Antônio também foi gordo.

A descoberta da obesidade de Santo Antônio é uma historinha divertida em meio a um livro denso. Diário de um Ano de Trevas (Instituto Moreira Salles) reúne as cartas que Alceu Amoroso Lima escrevia diariamente à sua filha, a monja beneditina Maria Teresa. A correspondência durou anos e já rendeu um livro anterior. Diário de um Ano de Trevas cobre o período que vai de janeiro de 1969 a fevereiro de 1970.

Antes de falar das trevas, vamos esclarecer de onde o pensador católico, crítico literário e professor, que usava o pseudônimo de Tristão de Ataíde, desencavou a informação sobre o excesso de peso de seu santo de devoção. Foi durante uma consulta à Biblioteca Nacional, onde revirava livros em busca de biografias do santo sobre o qual escreveria um artigo para a revista Manchete. Foi um consolo para o velho intelectual, que contou à filha: “Você bem sabe que um dos meus ideais, agora inatingíveis, seria voltar ao tempo de magro, que já fui e desbarrigado...”.

Maria Teresa, lá de seu isolamento, foi a memória do pai. Diríamos hoje que ela era o backup, o HD externo do escritor. Guardava tudo o que ele escrevia, cartas e textos para jornais, livros e discursos. Ele fazia das cartas uma espécie de diário. Anotava fatos corriqueiros e fazia reflexões importantes. As cartas de Alceu Amoroso Lima hoje têm um valor histórico, educativo. Guardam sua revolta, raiva até, diante da ditadura militar.

As trevas do título do livro são uma referência ao primeiro ano do AI-5, quando o governo militar arrochou a censura e a perseguição aos inimigos do regime. As palavras usadas por Amoroso Lima são fortes. O ministro Gama e Silva é “o inefável palhaço da Justiça”, o general-presidente Costa e Silva é “bocó”, os militares e civis que baixaram o AI-5 “apoderaram-se de uma pistola automática ou de uma metralhadora” achando que são donos do Brasil. Os empresários da época o deixavam enojado (“...o que se vê é o mais cínico materialismo reacionário e capitalista. A liberdade que lhes importa é apenas a dos bons negócios. E ainda criticam o marxismo por desdenhar dos ‘valores espirituais’.”). Por causa desse descontentamento e de suas convicções, ajudou militantes que sofreram perseguição.

Não se sabe o que respondia a madre Maria Teresa, confinada que estava na abadia de Santa Maria, em São Paulo. Talvez seu pai não necessitasse de muitas réplicas. Claramente ele precisava desabafar e a censura imposta aos jornais o emudecia. A angústia é permanente. Com o golpe de 64 completando 50 anos, é uma angústia importante de ser lembrada e compartilhada com as gerações que vieram depois e que não têm lembranças do que é viver em um regime de exceção.

Amoroso Lima morreria 14 anos depois daquele janeiro em que descobriu o sobrepeso de Santo Antônio, aos 90 anos, sem ver o fim da ditadura e sempre gordinho.

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