quarta-feira, setembro 25, 2013

Direitos linguísticos - MARCO LUCCHESI

O GLOBO - 25/09

Não mais “o milagre de uma língua única”, mas o de sua multiplicação



A agenda intercultural da América Latina deve se orientar para um conhecimento maior das línguas de nosso continente. Não como favor, mas como demanda que promova uma democracia consistente, uma democracia coral, de timbres variados, de que todos façam parte.

Um ponto de partida multilíngue, que se incline para a cultura do encontro e da hospitalidade dos povos indígenas. Se no Brasil, não há latim nas escolas, tampouco se aprofundam rudimentos de tupi antigo.

Penso em Lima Barreto e no quanto seria importante não nos esquecermos de que se praticam pouco menos de trezentas línguas hoje em nosso país.

Urge delinear o trânsito cultural da América Latina, quais seus interlocutores realmente comprometidos com projetos multilaterais, que não se resumam a circuitos sem emoção, sem contraste, meramente econômicos e, portanto, voláteis, em nuvens de capital, erráticos e velozes.

Deve-se condenar com firmeza a hegemonia linguística, que impede a integração das línguas, valendo-se de uma gramática única, desligada da beleza do encontro, que demoniza as línguas nativas e seu território, sobretudo este, como faz a bancada ruralista e seus aliados no Congresso, para quem os índios dispõem de terra excessiva, em detrimento do cultivo da soja, que seria, esta sim, a única commodity capaz de salvar a economia brasileira. Cada coisa em seu lugar, alguém chegou a dizer, com a seguinte frase lamentável “a soja na terra e o índio no museu”.

Eis por que a demarcação precisa ser imediata, e que não falte coragem ao poder executivo e sensibilidade, mínima que seja, por parte do judiciário. Não há outra forma para a equação do patrimônio imaterial da língua com o capital simbólico da terra, tão imbricadas se mostram, dentro de uma cultura da hospitalidade, que é a única que o Congresso tem obrigação de implementar.

Alguns livros recentes me parecem essenciais, na defesa de nossas línguas, como “Rio Babel”, de José Ribamar Bessa e a antologia da poesia brasileira, organizada por Sergio Cohn, “Poesia.br”, com um volume dedicado aos cantos ameríndios.

Esse me parece um indício crucial de um processo de mudança na renovação dos currículos nas escolas, incluindo-se um conjunto de disciplinas breve e compacto.

Não mais “o milagre de uma língua única”, mas o de sua multiplicação, em todos os rincões do Brasil, que precisa desconstruir, nos livros didáticos, a ideia aparente de uma torre de Babel.

É preciso descer as escadas da torre, no corpo sinuoso de nossa língua portuguesa, que olha escandalosamente para o futuro.

A poeta paraguaia Susy Delgado publicou Caminho do órfão, em guarani e espanhol, onde se integram e misturam ambas as línguas, como se mandasse um aviso: “outras formas deste caminho interminável, que cada dia mais se parece a uma Babel desértica.”

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